Por: Jonas | 22 Outubro 2013
A decisão presidencial é de uma aberrante crueldade: o chefe de Estado autorizou o retorno da menina, mas “apenas dela”, sempre e quando a adolescente apresentar “uma solicitação para retornar e a continuar estudando”. Os interesses eleitoreiros em jogo.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada no jornal Página/12, 20-10-2013. A tradução é do Cepat.
Um golpe político estratégico, de uma desumanidade tendenciosa que torna o socialismo francês uma caricatura de si mesmo. O presidente francês, François Hollande, anunciou na televisão que permite o retorno a França da adolescente Leonarda Dibriani, a jovem kosovar de 15 anos, expulsa em início de outubro, junto com seus pais e seus cinco irmãos, em condições controvertidas. A decisão presidencial é de uma aberrante crueldade: o chefe de Estado autorizou o retorno da menina, mas “apenas dela”, sempre e quando a adolescente apresentar “uma solicitação para retornar e continuar estudando”. Hollande tomou uma decisão descarada e dolorosa: que a jovem escolha entre a França e sua família. Numa entrevista ao canal BFM, Leonarda Dibriani o respondeu quase de imediato: “Não irei sozinha para França, não abandonarei minha família. Não sou a única que frequenta a escola, tem também meus irmãos e minhas irmãs”.
Leonarda Dibriani foi expulsa da França depois de mais de quatro anos morando com sua família na França e assim que se esgotaram todos os meios para legalizar a situação. A expulsão era legal, mas o debate se iniciou quando se soube que a polícia foi buscá-la no ônibus escolar no qual viajava junto com todos os seus companheiros de sala de aula. “Não esperava isso de Hollande, acredito que o presidente não viu bem nosso relatório. Não fez bem seu trabalho. Não tem coração para acolher esta família? Não tem piedade?”, perguntou a jovem. Piedade? Como terá piedade com os inocentes? A piedade só existe para os impunes. O que François Hollande possui, sim, é uma clara ideia dos interesses políticos que estão em jogo: a extrema-direita impôs sua agenda a todo o espectro político nacional. As pesquisas a coloca em primeiro lugar nas eleições europeias e municipais do próximo ano, e este caso serve para demonstrar que ser socialista não equivale a ser brando com os imigrantes. As pesquisas respaldam essa ação. Uma pesquisa realizada por I Tele e Le Parisen mostra que 65% dos franceses são contra o retorno de Leonarda e de sua família. Um caso exemplar, para dar o exemplo, no qual sai favorecido o ministro francês do Interior, Manuel Valls. Este responsável socialista segue os passos do ex-presidente Nicolas Sarkozy. O outrora chefe de Estado forjou sua popularidade e sua legitimidade política durante os anos em que ocupou o Ministério do Interior e fez dos estrangeiros seu trampolim eleitoral.
Em sua intervenção, François Hollande apresentou um pacote de medidas que incluem uma disposição para que “um aluno nunca mais seja detido no contexto escolar”, bem como o reforço da política em matéria de asilo, com o objetivo de que os trâmites sejam agilizados. Contudo, a máscara já caiu. A chamada esquerda faz e diz o mesmo que a direita, apesar de ter prometido o contrário. O socialismo vive de suas recordações e as vende bem durante as campanhas eleitorais, mas governa com a mesma mão que a direita. Esta separação entre os valores e a ação real martiriza a consciência de muitos líderes socialistas. Em matéria de imigração, basta olhar para os chamados “centros de retenção administrativa”, onde se detém os estrangeiros antes da Justiça decidir sua expulsão, para constatar a regressão da social-democracia. As audiências judiciais ocorrem nesses centros localizados ao lado dos aeroportos. Um deles, o de CRA du Mesnil Amelot, foi construído no final de uma das pistas do aeroporto Charles de Gaulle. O ruído dos aviões já é uma antecipação da sentença. Trata-se, de fato, de um deslocamento dos tribunais que desemboca numa espécie de Justiça especial para os estrangeiros. O projeto pertence à maioria conservadora, que perdeu as eleições no ano passado. Sua efetivação final ficou sob a responsabilidade da social-democracia.
A questão da imigração se tornou um quebra-cabeça impossível de montar. As peças se misturam numa infinita confusão de valores, de medos, de oportunismos políticos, de populismos modernos, de incapacidade em ditar regras claras. A sociedade quer muros, fronteiras e proteção. A distância administrativa entre as intenções e as situações tangíveis é abismal. Um estrangeiro que pretenda que sua família se una a ele, precisa esperar mais de dois anos a resposta do Estado e, inclusive, aqueles que possuem direitos adquiridos os veem pisoteados pela administração. Os trâmites para obter ou não o asilo político demandam dois anos de espera, sempre incertos em relação ao seu resultado final. A desigualdade é a norma.
O caso de Leonarda Dibriani sintetiza todo o drama vivenciado em torno dos estrangeiros. Leonarda, de maneira injusta, era indefensável diante de uma opinião pública que escutou dizer, por parte de seus líderes políticos de esquerda e de direita, que os ciganos eram criminosos. A proposta do chefe de Estado é disparatada. Pedir para uma adolescente que escolha entre viver na França ou ficar com a sua família carece de sentido humano e político. Hollande foi criticado por todos os setores. De seu próprio partido, o primeiro secretário do PS, Harlem Désir, desejou que a jovem pudesse retornar com sua família para concluir seus estudos na França. O partido de esquerda criticou uma proposta qualificada como “cruel e abjeta”. O deputado ambientalista Noël Mamère a julgou uma “ignomínia”, ao passo que a Rede de Educação Sem Fronteiras (RSF) acusou Hollande de ter “falado na televisão para desmembrar uma família”. A direita, logo, responsabiliza-o de fragilizar a autoridade do Estado ao propor o retorno de Leonarda Dibriani. As ONGs e os professores argumentaram que a proposta de Hollande era “hipócrita”. A síntese é impossível: pela falta de clareza, de coragem política e de pedagogia sadia. E porque há muito tempo que o tema da imigração passou a ser espaço da indecência, ponto nevrálgico da cura de legitimidade da extrema-direita, míssil destrutor que destroça as maiorias ou as possibilita, que coloca uns contra os outros, divide, contamina, perverte. Território interminável do abjeto, onde os pretendentes do poder constroem sua credibilidade pública. Acusar os muçulmanos de roubar o croissant das crianças francesas durante o Ramadã, os africanos de outra coisa, os ciganos de ladrões, os latinos já não se sabe nem do que, é um investimento eleitoral calculado. A história de uma adolescente se tornou um caso de Estado. Tantos e tantos anos de enaltecimento vão desembocar numa tragédia política, moral e humana.
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Caso Leonarda. Golpe político carregado de cínico oportunismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU