A ruptura entre o "Jesus histórico e o Cristo da fé, como se fosse possível separá-los", consequência da "crítica racionalista aplicada a todos os âmbitos do saber" a partir do século XVIII, se transformou em um novo dogma teológico, que distingue "a história em oposição à fé; o verdadeiro Jesus seria o 'Jesus histórico' em contraste com o 'Cristo da fé' eclesial". Entretanto, "o Cristo da fé cristã não foi nem pode ser uma abstração separada do Jesus da história. Tudo o que a fé cristã afirma de Jesus o afirma da história concreta desse homem de Nazaré", explica o ex-provincial dos jesuítas do Brasil, Carlos Palácios, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 2010, na edição 336 da Revista IHU On-Line, intitulada Jesus de Nazaré. Humanamente divino e divinamente humano, a qual republicamos a seguir.
No Natal, os cristãos celebram a encarnação de Deus no mundo através do nascimento do menino Jesus. Sobre o verdadeiro sentido desta data, Palácios esclarece: "Desde os primórdios, a fé cristã considerou um desvio herético negar que Jesus tivesse vindo 'na carne', como diz S. João. Para os primeiros cristãos era tão importante reconhecer Jesus como Filho de Deus do que confessá-lo vindo na carne e plenamente humano. Inseparavelmente. Por ser algo decisivo para a imagem e a experiência cristã de Deus, assim como para compreender o ser humano à luz de Jesus Cristo".
Segundo ele, a pergunta que sobre quem é Jesus "é inseparável do que ele suscitou e deu a viver, ou seja, do que dizem dele os que o seguem". E acrescenta: "O 'Reino de Deus' não era uma teoria; nos 'atos e palavras' de Jesus, Deus tocava as pessoas nas situações mais concretas da vida (o que os evangelhos chamam as curas miraculosas). Eram 'sinais' do que poderia ser a vida humana em sociedade se Deus fosse de fato o 'senhor da vida', se a vida humana fosse organizada segundo o que Deus sonha para os seus filhos e filhas (reinado de Deus)".
Pe. Carlos Palácio (Foto: Portal Jesuítas Brasil)
Carlos Palácio é professor e pesquisador de teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE -, em Belo Horizonte. É autor de vários sobre livros, especialmente, sobre cristologia. Palácio cursou Filosofia em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, e Teologia na Bélgica (Lovaina) e, posteriormente, em Roma, doutorando-se em Cristologia.
A entrevista foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 05-07-2010,
IHU On-Line - Do ponto de vista histórico, quem foi Jesus?
Carlos Palácio - Digamos, em primeiro lugar, que ninguém se atreveria hoje a pôr em dúvida a existência histórica de Jesus, (como foi o caso em séculos passados). O interesse pela sua figura histórica não tem cessado de aumentar nas últimas décadas. As principais fontes literárias para conhecer Jesus são os evangelhos, que não são “biografias” no sentido moderno, mas oferecem as coordenadas básicas – temporais, geográficas e históricas – para situá-lo. Há igualmente testemunhos fora do âmbito cristão como os do historiador judeu Flávio Josefo, os de escritores romanos como Tácito, Suetônio e Plínio o Jovem, cujas referências têm grande valor documental. Muito valiosos igualmente para o conhecimento do contexto da vida de Jesus são os resultados das pesquisas arqueológicas e as diversas abordagens sociológicas e antropológico-culturais da figura de Jesus, como também a aproximação entre Jesus e o judaísmo propriamente dito. Não seria, pois, exagerado dizer que hoje possuímos mais dados sobre a pessoa de Jesus do que os cristãos do primeiro século. A partir desse acúmulo de informações e de um ponto de vista estritamente histórico hoje é possível esboçar com segurança os principais traços da figura histórica de Jesus e do seu itinerário, desde a data do seu nascimento (entre os anos 6 e 4 antes da nossa era) até a sua execução na cruz "sob Pôncio Pilatos" (provavelmente em abril do ano 30).
Jesus era um judeu da Galiléia; provinha de Nazaré, uma aldeia na qual foi criado e que lhe deu o nome pelo qual era conhecido: Jesus de Nazaré. Sua língua materna era o aramaico, com as características daquela região (Pedro, por exemplo, foi reconhecido na casa de Caifás pelo seu sotaque). Em Nazaré viveu Jesus a maior parte da sua vida, filho de artesão e trabalhando com toda probabilidade no mesmo ofício do pai. Por volta dos 30 anos teve contato com o movimento religioso em torno de João Batista; foi no Jordão que teve uma experiência espiritual decisiva na sua vida que o levou a abandonar a sua família em Nazaré e a começar uma atividade itinerante como profeta que anunciava o “reino de Deus”. Durante três anos escassos Jesus percorreu caminhos e povoados da Galiléia, com incursões na Samaria e passagens por Jerusalém. A sua maneira de falar de Deus como “Abba”, paizinho, e de proclamar o que ele designava como “Reino de Deus”, chamou poderosamente a atenção dos seus contemporâneos. Era uma “boa notícia” que dava novo sentido à vida das pessoas. O povo percebia que a sua “autoridade” não vinha dos livros, mas da coerência com o que ele vivia. O “Reino de Deus” não era uma teoria; nos “atos e palavras” de Jesus, Deus tocava as pessoas nas situações mais concretas da vida (o que os evangelhos chamam as curas miraculosas). Eram “sinais” do que poderia ser a vida humana em sociedade se Deus fosse de fato o “senhor da vida”, se a vida humana fosse organizada segundo o que Deus sonha para os seus filhos e filhas (reinado de Deus).
A fama e autoridade de Jesus cresceram rapidamente entre o povo que o admirava e um grupo reduzido de discípulos que o seguia. Mas esse impacto despertou logo suspeitas entre as autoridades religiosas dos judeus, tanto na Galiléia como em Jerusalém. A animosidade contra Jesus foi crescendo até que, por ocasião de uma festa da Páscoa, as autoridades judaicas confabularam contra ele diante do poder político romano até conseguirem a sua execução. Historicamente, é importante notar que logo depois da morte de Jesus o movimento daqueles que seguiam o seu caminho, os cristãos, anunciaram por todo o império romano que esse Jesus, morto em mãos dos romanos, vivia; e disso eles eram testemunhas. Para um conhecimento aprofundado de Jesus é tão ou mais importante o testemunho e a interpretação dos seguidores de Jesus do que os dados que possa levantar a pesquisa historiográfica. De fato a pergunta de quem é Jesus é inseparável do que ele suscitou e deu a viver, ou seja, do que dizem dele os que o seguem. Por isso, os escritos do Novo Testamento, reconhecidamente “testemunhos de fé pós-pascal”, são igualmente importantes fontes literárias e históricas para o conhecimento de Jesus.
IHU On-Line - Qual a interpretação mais marcante que se fez da história real de Jesus?
Carlos Palácio - A interpretação da pessoa de Jesus que se impôs na história cristã (que é a história do cristianismo universal) é a interpretação da fé cristã que os discípulos proclamaram à luz da páscoa: esse homem Jesus é o “Cristo”, isto é, um ser enviado e “ungido” por Deus, o próprio Filho de Deus, a expressão humana, encarnada, do próprio Deus (do que Ele é para nós) e da resposta que um ser plenamente humano como Jesus pôde dar a Deus. Durante muitos séculos, praticamente dois milênios, essa síntese entre fé e história foi vivida de maneira espontânea e pacífica; os evangelhos foram lidos, interpretados e vividos como sendo a tradução imediata da história real de Jesus, como verdadeiras “biografias” do acontecido com ele. Foi a partir do século XVIII, com a crítica racionalista aplicada a todos os âmbitos do saber, que se operou uma mudança progressiva na maneira de abordar os textos do Novo Testamento como textos literários, aos quais se podia e devia aplicar também a crítica literária e histórica. Os chamados métodos exegéticos histórico-críticos propriamente ditos só viram a luz no início do século passado. A partir desse momento em muitas instâncias exegéticas e teológicas se introduziu uma ruptura entre o chamado “Jesus histórico” e o “Cristo da fé”, como se fosse possível separá-los a não ser do ponto de vista metodológico. Mas ao opor o chamado “Jesus histórico” ao “Cristo da fé”, o que poderia ser válido como distinção metodológica se transformou numa espécie de dogma teológico: a história em oposição à fé; o verdadeiro Jesus seria o “Jesus histórico” (entenda-se: o que a exegese possa afirmar como certeza histórica) em contraste com o “Cristo da fé” eclesial.
Essa separação ou ruptura radical foi prejudicial tanto para a exegese como para a teologia. O “Jesus histórico”, assim entendido, acabou sendo um resíduo extremamente frágil do que a crítica exegética podia afirmar com toda certeza a respeito de Jesus. Na verdade o Jesus real, o que experimentaram e viram do Jesus da história os que com ele conviveram, foi muito mais do que ficou registrado ou do que a exegese possa desentranhar dos textos. Por outro lado, o Cristo da fé cristã não foi nem pode ser uma abstração separada do Jesus da história. Tudo o que a fé cristã afirma de Jesus o afirma da história concreta desse homem de Nazaré. É inegável que a problemática da crítica histórica repercutiu sobre a maneira de ler os evangelhos e de fazer teologia e indiretamente sobre o povo cristão. Mas, tomada no seu conjunto de mais de dois séculos, o seu resultado foi benéfico para a fé cristã: ao provocá-la e desafiá-la, a exegese crítica a obrigou a purificar-se. Hoje sabemos ler os evangelhos não como biografias, mas como relatos do sentido da vida de Jesus à luz da fé. E distinguimos com clareza o que pertence ao conteúdo da fé e o que foram as suas interpretações teológicas ao longo da história.
Uma das grandes riquezas dessa tumultuada história foi ter obrigado a fé cristã a voltar-se definitivamente para a dimensão da figura humana de Jesus e a sua significação para a vida do cristão e para a história humana. Desde os primórdios, a fé cristã considerou um desvio herético negar que Jesus tivesse vindo “na carne”, como diz S. João. Para os primeiros cristãos era tão importante reconhecer Jesus como Filho de Deus do que confessá-lo vindo na carne e plenamente humano. Inseparavelmente. Por ser algo decisivo para a imagem e a experiência cristã de Deus, assim como para compreender o ser humano à luz de Jesus Cristo. Ora, é preciso reconhecer que a dimensão humana de Jesus tinha ficado na penumbra da fé, ofuscada pela afirmação da sua condição divina. Por isso, a recuperação da dimensão humana de Jesus trouxe um grande enriquecimento para fé e a experiência cristã, mesmo à custa de muitos sofrimentos e mal-entendidos.
IHU On-Line - Como elaborar um discurso sobre o Jesus humano que seja compatível com a diversidade cultural e religiosa da atualidade?
Carlos Palácio - A diversidade cultural e religiosa, o intercâmbio e mesmo o encontro entre as diversas culturas e religiões é um fato característico do nosso mundo globalizado e da mobilidade e deslocamento das populações. Os modernos meios de comunicação e a rapidez dos transportes nos tornam potencialmente testemunhas oculares de qualquer evento e trazem até nós essa diversidade cultural, étnica e religiosa. A diversidade é tão antiga como a humanidade; a novidade está nessa simultaneidade pela qual o “diferente” passa a ser um dado cotidiano da vida de qualquer pessoa. Essa irrupção do “outro” na nossa vida nos faz tomar consciência do caráter limitado da nossa própria experiência cultural e religiosa, e nos obriga a refletir sobre essa diferença.
Nesse contexto de encontro entre as diversas culturas e de diálogo inter-religioso a fé cristã tem que voltar sobre si mesma para tomar consciência da sua “diferença”, daquilo que constitui a sua especificidade. Ao mesmo tempo, tem que ter lucidez crítica para discernir, à luz dessa diversidade de culturas e religiões, o que na sua experiência histórica vem da fé ou da sua identificação com a cultura ocidental. O reconhecimento da particularidade desta cultura torna possíveis outras inculturações da mesma fé e abre o caminho para o diálogo entre a fé cristã e as outras religiões. Sem abdicar para isso da própria especificidade.
É grande hoje a tentação de conceber o diálogo como um debate gentil dentro de um terreno “neutro”, no qual cada uma das partes cederia um pouco até chegar à elaboração comum de uma mística trans-religiosa. É o que poderia sugerir a pergunta tal como está formulada: elaborar um discurso sobre o Jesus humano que seja compatível com a diversidade. Esse caminho não leva longe. Mesmo que pareça paradoxal só haverá diálogo, abertura e possibilidade de enriquecimento mútuo indo até o fundo das identidades e diferenças de cada interlocutor. Cabe à fé cristã mostrar que o paradoxo por ela anunciado e sobre o qual repousa – a pessoa de Jesus Cristo, em si mesmo humano e divino, particular e universal – é potencialmente uma “boa notícia” que todo ser humano pode escutar dentro do seu mundo cultural como palavra que ilumina o desejo oculto da sua busca religiosa. Jesus Cristo é, pois, mais uma vez, “sinal de contradição”, pedra de escândalo, isto é, tropeço, causa de queda para uns e de reerguimento para outros, como diz Lucas no início do seu evangelho.
IHU On-Line - Como foi vivida pelo homem Jesus a questão do amor?
Carlos Palácio - O estudo de qualquer personalidade histórica suscita mais cedo ou mais tarde a curiosidade pelo seu mundo interior: como entendeu a sua vida? Como explicar a força da sua personalidade? Qual o seu perfil psicológico, etc.? A resposta a esse tipo de perguntas tem diante de si dois caminhos: o de ater-se com todo respeito ao que as fontes disponíveis nos permitem concluir, ou o de enveredar pelo gênero da ciência-ficção com reconstruções subjetivas que projetam sobre a pessoa a visão ou os interesses do autor. Este tem sido o caso muitas vezes no que concerne a pessoa de Jesus. É surpreendente que, à margem de uma investigação técnica e responsável em âmbitos complementares do conhecimento histórico, tenham surgido nas últimas décadas numerosas publicações sobre Jesus – tipo O Código da Vinci; A história secreta de Jesus; Jesus e Maria Madalena e outros – totalmente desprovidas de seriedade e objetividade científica, nas quais predomina uma fantasia desvairada, além de interesses não confessados. É supérfluo dizer que a imagem de Jesus transmitida por esses autores nada tem a ver com o Jesus da história e menos ainda com o da fé cristã.
Situada, pois, corretamente, a questão levantada é de extremo interesse, embora exija muito cuidado para não cairmos na tentação criticada. De fato, a incursão no mundo interior das pessoas (mesmo daquelas cuja vida está bem documentada sob estes aspectos) é sempre um ato arriscado, porque o mundo íntimo das pessoas escapa em parte à análise dos historiadores. Nem por isso deveríamos recuar diante de uma pergunta instigante como esta. O amor, de fato, tem um lugar privilegiado na vida de Jesus. Não só porque constitui um (senão o) eixo central da mensagem de Jesus (“amai-vos como eu vos amei: nisto conhecerão que sois meus discípulos”; o amor a Deus e ao próximo é o resumo de toda a Escritura cristã, segundo Jesus), mas porque o modo de Jesus viver o amor opera uma reviravolta na nossa maneira humana de pensar o amor.
A primeira resposta ao que foi a vivência do amor por Jesus nos é dada pelo impacto produzido por Jesus nas pessoas que entravam em contato com ele. Trata-se da pessoa de Jesus na sua unidade, não só do “Jesus humano”: ele era humanamente divino e divinamente humano. O comportamento de Jesus suscitou também oposição e hostilidade, mas é inegável que todos os que dele se aproximavam sem preconceito ficavam fascinados pelo que irradiava da sua pessoa. Numa palavra poderíamos dizer que, na relação com as pessoas, Jesus transmitia uma afirmação incondicional da vida, uma capacidade ilimitada de acolher, respeitar e acreditar nas pessoas e uma sensibilidade extrema de sintonia e compaixão diante do sofrimento. Atitudes essas que revelavam Jesus como uma pessoa que se sentia amada e unificada no amor (é toda a sua experiência do Pai como raiz e fundamento da vida) e por isso capaz de amar e dar-se aos outros (amor derramado).
Não é por acaso que (entre a variedade de pessoas e relações que tecem a vida de Jesus) os preferidos de Jesus, os que de maneira quase instintiva o percebem como uma “boa notícia” para as suas vidas, são os que os evangelhos chamam os “pequenos”: pobres, doentes, pecadores, prostitutas, enfim todos os excluídos do convívio social e religioso com os quais Jesus convive e se senta à mesa para devolver-lhes a dignidade e integrá-los na vida. Essa é uma primeira aproximação que ilumina a questão de como Jesus viveu o amor: numa vida realizada na entrega aos outros. Mas esse estilo de vida está relacionado com outro aspecto da vida de Jesus: o fato de não ter se casado. Como explicar essa opção num homem que soube valorizar a mulher numa sociedade que as excluía e em cuja vida houve um entorno de amizades femininas que mostram em Jesus uma integração positiva dessa dimensão? O conjunto da vida e comportamento de Jesus, a capacidade de viver e valorizar a vida, de celebrar, de alegrar-se etc. nos impedem interpretar essa opção de maneira negativa, como maniqueísmo ou como pura ascese.
A explicação teria que ser buscada no que constitui os dois polos articuladores da vida de Jesus: a referência ao Pai e o horizonte do “Reino de Deus”. No fundo se trata de um mesmo e único absoluto: a construção de um amor em família foi absorvida na vida de Jesus pela dedicação apaixonada ao Pai e ao Reino, transformados na sua vida em “boa notícia” encarnada para as pessoas. Esse “sinal” não era fácil de ser entendido. Nem naquela época nem hoje. Há indícios de que foi o que aconteceu com Jesus. A sua opção não foi bem compreendida. E sempre há os intrigantes de plantão. Assim como foi acusado de comer e beber e ser amigo de prostitutas e pecadores, parece que o chamaram de “eunuco”, isto é, castrado. Ao que Jesus respondeu de maneira gráfica com esta afirmação recolhida nos evangelhos: "há homens impossibilitados de casar-se porque nasceram assim; outros foram mutilados pelos homens; e há outros ainda que se tornaram assim por causa do reino dos céus. Quem puder entender, entenda".
IHU On-Line - Quais os desafios que o Jesus humano apresenta para o estudo da cristologia?
Carlos Palácio - A recuperação da humanidade de Jesus Cristo e a sua reelaboração teológica foram uma conquista da maior importância para a espiritualidade e experiência cristã, e para a reflexão teológica. Não é, portanto, a descoberta da humanidade de Jesus que se torna problema para a cristologia, mas a necessidade de reelaborá-la teologicamente com todas as suas implicações. Em si mesma, a redescoberta da humanidade de Jesus é o reencontro com a mais lídima tradição da fé cristã. E a riqueza do seu impacto consiste em perceber o alcance que essa perspectiva tem, tanto para o método e o conteúdo da cristologia contemporânea, quanto para a antropologia, a vida cristã e a presença do cristão no mundo. As dificuldades que surgiram do esquecimento desta dimensão se fizeram sentir, por um lado, no modo de enfocar a reflexão cristológica tradicional e, por outro, no distanciamento sempre maior entre a investigação exegética histórico-crítica e a teologia dogmática.
Ao perder a sua inserção na história concreta de Jesus, a cristologia se tornou cada vez mais “dogmática”, isto é, uma reflexão especulativa e abstrata sobre os enunciados conciliares da fé cristológica. Por sua vez o distanciamento entre exegese e teologia operou uma ruptura mortal entre a pesquisa exegética sobre o Jesus histórico e o chamado Cristo da fé; ruptura mortal porque a fé cristã não pode viver nem subsistir fora do acontecido em e com Jesus.
O grande desafio, contudo, não é só voltar à história de Jesus e recuperar a significação que ela tem para os conteúdos da cristologia, mas mostrar como e em que há algo de irrepetível na história singular de Jesus que faz com que a fé cristã possa ver nele a revelação definitiva de Deus e a salvação definitiva do ser humano e da história. O conteúdo da cristologia não é, em primeiro lugar, formado pelos enunciados dogmáticos, mas os “acta et passa” de Jesus, ou seja, os acontecimentos da sua vida, morte e ressurreição. Por isso, do ponto de vista metodológico, a cristologia contemporânea é mais indutiva do que dedutiva. Mas a reflexão cristológica não pode se contentar com repetir os resultados a que pode chegar à exegese moderna sobre Jesus. Ela tem que mostrar em que consiste a novidade escatológica de Jesus, isto é, o que há nele de definitivo. Por isso a cristologia hoje tem que trabalhar simultaneamente com uma abordagem bíblica e exegética adequada, para mostrar a partir dessa base a conexão que existe entre a Escritura e o dogma cristológico. Assim poderá, finalmente, justificar o caráter único e exclusivo da figura de Jesus.
IHU On-Line - Como define o livro de José Antonio Pagola, Jesus. Uma aproximação histórica?
Carlos Palácio - Conheço o livro de Pagola e os antecedentes que o prepararam, tais como Jesucristo. Catequesis cristológicas (1975) e Jesús de Nazaret. El hombre y su mensaje (1981). Tendo seguido de perto o itinerário do autor não é difícil definir esta sua obra maior: é o fruto maduro de um cristão apaixonado pela pessoa à qual se dirige a sua fé, a quem quer conhecer mais e melhor, inclusive, como neste caso, através de uma rigorosa investigação dos estudos exegéticos contemporâneos. É por isso que o livro de Pagola é, ao mesmo tempo, existencial, vivo, de um inegável alcance pastoral e, por outro, uma leitura exigente e minuciosa de documentos áridos muitas vezes, mas indispensáveis.
O autor mostra um vasto e fundamentado conhecimento da investigação exegética atual sobre a história de Jesus e apóia as suas reflexões e tomadas de posição no confronto das diversas opiniões. Trata-se de um livro cuja leitura empolga e que será de grande ajuda para as pessoas que não desanimarem com o seu volume. A sensibilidade pastoral de Pagola, que ele manifestou não só nos seus escritos, mas na acolhida que têm as suas atividades pastorais, consegue com este livro fazer acessível a pessoa de Jesus aos homens e mulheres de hoje, cristãos que buscam aprofundar e fundamentar a sua fé no meio da cultura pós-moderna, ou simplesmente pessoas que procuram um sentido para a vida. Sendo um livro sério e consistente, o objetivo do mesmo não é só acadêmico; o anseio profundo do autor não é só informar as pessoas, mas levá-las a um encontro pessoal e existencial com Jesus.
O segredo do livro de Pagola é ter conseguido transmitir ao leitor a sua paixão por Jesus Cristo, de tal maneira que através da leitura deste livro sentimos que chega a nós a “boa notícia” contagiante que ele era e transmitia.