07 Outubro 2022
"A gratidão do samaritano curado nos recorda a gratuidade das coisas que nos humanizam e nos curam: a arte, a religião, a beleza das coisas, a natureza, as relações... Num mundo tão pragmático, falta-nos lançar um grito de admiração e de ação de graças diante do imenso amor de Deus que nos supera. A liturgia é uma experiência que nos conecta com esta lógica. O belo, a música, o ritmo, o espaço sagrado, o silêncio, os gestos, o encontro, a escuta, tudo pode nos conduzir a vivência do amor de Deus por toda a humanidade. E, podermos como o samaritano, louvar e glorificar a Deus e nos renovar e fortalecer para a missão na vida."
A reflexão é de Soraia Dojas Melo Silva Carellos. Ela possui graduação em psicologia pela PUC Minas (1983) e mestrado em psicologia pela Universidade do Rio de Janeiro - UFRJ (2001). É membro da Rede Celebra, coordenadora da Equipe de Liturgia na Paróquia Igreja de Santana Serra em Belo Horizonte, onde também participa de grupos de leitura orante da Palavra.
Primeira Leitura: 2Rs 5,14-17
Salmo: 97,1-4
Segunda Leitura: 2Tm 2,8-13
Evangelho: Lc 17,11-19
Neste 28º domingo do tempo comum, fazemos a memória da salvação que Deus manifestou em seu Filho. Jesus continua seu caminho para Jerusalém (Lc 17,11-19), entrando agora na terceira e última etapa. Caminho em que Ele enfrenta dificuldades e confrontos e ensina a seus discípulos, preparando-os para os desafios e exigências de ser um seguidor seu.
Faz o caminho entre a Samaria, considerada infiel, inimiga e a Galileia. Ao entrar é abordado à distância por dez leprosos, que são obrigados a ficar fora do povoado. Importante lembrar que as leis contidas no Levítico determinavam que leprosos deveriam viver fora do povoado, eram considerados impuros. Viviam um grande sofrimento com a doença, e o maior deles, a exclusão do convívio com as pessoas. A experiência do abandono era uma constante. Juntos, solidários em seus sofrimentos, clamam a Jesus por compaixão. Eles usam em grego o mesmo verbo que em nossa liturgia resultou na súplica “tem piedade”, no nosso texto traduzido por compaixão. Algo como “olha Jesus, para minha dor e meu sofrimento”. O que primeiro nos chama a atenção é que entre eles há judeus e um samaritano. A dor, a doença, os une, as diferenças são superadas. Eles chamam Jesus pelo nome, que significa “Deus salva”, o reconhecem mestre. A palavra mestre (em grego epistátes), não refere-se apenas a um detentor do saber, mas a uma autoridade plena, a alguém que está acima e supervisiona tudo, que detém um conhecimento superior. Por isso ele dispõe de um ensinamento que recompõe a vida, a ponto de curar. Ao detentor dessa Palavra que mais que instruir, salva os que a ele recorrem. Eles pedem, aos gritos, a compaixão de Jesus que passa.
Ao ser abordado Jesus os envia aos sacerdotes e eles obedecem. Escutam a ordem de Jesus e ao percorrer o caminho vão sendo purificados. A confiança na Palavra vai crescendo, como na vida vamos nos transformando, e deixando-nos transformar, não é de imediato. É preciso caminhar.
O texto continua e nos leva além, quando um deles ao perceber-se curado, volta a Jesus, lhe agradece e glorifica a Deus. O evangelho frisa que ele é um samaritano, pertencente a um grupo um apóstata da religião judaica. Algo vai além do milagre da cura e desemboca na fé que permite reconhecer que a graça vem de Deus, como faz o único curado que retorna para agradecer, prostrando-se diante do Mestre. Jesus ao recebê-lo, pergunta pelos os outros nove que foram aos sacerdotes. Esta pergunta provoca em nós uma inquietação. O que aconteceu de diferente entre o que volta e os que não voltam? Parece que o samaritano dá um passo além, superando o esquema da religião judaica quando volta a Jesus. É necessário a fé que nasce da Palavra, cresce no caminho e floresce na gratidão. Aos nove faltou o último passo, pois a gratuidade é o segredo de quem agradece. Não há mérito em questão, apenas amor, bondade e compaixão...
Esta situação apresentada no evangelho de hoje aponta para a questão da graça de Deus, da fé e da gratidão.
Jesus diz a ele: “Levanta-te e vai. Tua fé te curou”: o verbo levantar (anístemi) sugere algo mais que uma cura, mas um restabelecimento da vida como superação da morte. O encontro com Jesus, a adesão a ele nos põe em prontidão. Diante deste grande e gratuito dom de Deus, aderir pode ou não ser a nossa resposta, como aconteceu com os demais curados. O samaritano respondeu com um sim profundo, o seu retorno diz o seu reconhecimento de quem é Jesus, o Salvador, e a graça que vem de Deus. É um ato de fé, podemos experimentar pelas palavras do texto quão profunda é sua transformação e gratidão. Escutar a Palavra e estar em íntima relação com Jesus é o que pode nos dar a direção a seguir e fortalecer-nos para a missão. Deus é quem cura. Na primeira leitura é comovente a gratidão do general sírio, Naamã. E a relação com Eliseu, o profeta que quer todo o tempo que Deus apareça, o agir gratuito de Deus, ao não aceitar recompensas. São dois estrangeiros, o que nos leva a supor uma liberdade maior frente aos condicionamentos religiosos daquele tempo. Será que por não terem os preceitos religiosos ficam mais livres para perceber a ação de Deus? Vivemos hoje no nosso tempo como se tudo fosse nosso, e mérito nosso. As pessoas se apropriam da religião e se tornam a medida para julgar as outras pessoas. Na relação com o planeta, com a natureza nos colocamos como proprietários. E, ainda, dividimos só para alguns. Tudo é graça e para todos. Serem dois estrangeiros nos lembra que a salvação é para todas as nações. Não há privilégios. Parece tudo tão distante do que experimentamos nesta vida. Muita posse, muita desigualdade, muita crença em si mesmo, sem nenhum espaço para Deus.
A segunda leitura (2Tm 2,8-13) nos traz o testamento de Paulo que confia a Timóteo o anúncio da ressurreição do Senhor. É um convite a sermos firmes na escuta da Palavra e na adesão ao Cristo, assim ressuscitaremos com Ele. E o final nos impacta, porque nos lembra como podemos ser infiéis. A fidelidade e a graça são sempre de Deus. O amor ao Evangelho deve nos mover a nos empenhar cada vez mais na percepção de nós mesmos e na escuta da Palavra.
A gratidão do samaritano curado nos recorda a gratuidade das coisas que nos humanizam e nos curam: a arte, a religião, a beleza das coisas, a natureza, as relações... Num mundo tão pragmático, falta-nos lançar um grito de admiração e de ação de graças diante do imenso amor de Deus que nos supera. A liturgia é uma experiência que nos conecta com esta lógica. O belo, a música, o ritmo, o espaço sagrado, o silêncio, os gestos, o encontro, a escuta, tudo pode nos conduzir a vivência do amor de Deus por toda a humanidade. E, podermos como o samaritano, louvar e glorificar a Deus e nos renovar e fortalecer para a missão na vida.
Essa gratuidade do ato salvífico de Deus nos converte em buscadores da vida plena para os outros em ações igualmente gratuitas e capazes de promover a saúde ou, em termos religiosos, a salvação. São muitas as iniciativas que gratuitamente se organizam em favor do próximo: clínicas de medicina natural, pastoral da saúde, pastoral dos enfermos, hospitais mantidos por iniciativa popular e voltados para populações pobres, profissionais de saúde em trabalhos voluntários e outros ... Tudo isso é assumido e compreendido à luz da fé como prolongamento da ação salvífica de Cristo e de sua compaixão.
Gostaria de terminar destacando os inúmeros verbos que a aparecem neste trecho do Evangelho. Verbo é ação, é movimento. Que nunca deixemos de caminhar, de nos inquietar. O encontro com Jesus na Eucaristia, a escuta da palavra, a partilha e caminho com os irmãos são fundamentais na transformação de cada um de nós e do mundo. Os outros “nove” são responsabilidade nossa, é preciso ir ao encontro deles e anunciar, não basta cumprir a lei, é preciso reconhecer a graça e transpor fronteiras. Essa proporção de nove para um, mostra o que faz a diferença em nossa vida... pode ser que não demos atenção suficiente às coisas e pessoas que, por outras vias, nos dão acesso á plenitude e à salvação.
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28° Domingo do tempo comum – Ano C – A fé que nasce da Palavra floresce na gratidão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU