04 Outubro 2022
"Demasiado pouca é a atenção que se dedica à preparação para a vida, à formação do caráter, ao exercício do pensamento e do discernimento, e deve-se denunciar também a falta de uma transmissão por parte daqueles que deveriam ser 'transmissores de memória'. Em vez disso, tivemos agentes do desmanche que nos deixaram apenas ruínas, e agora a paisagem está deserta", escreve Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por La Repubblica, 03-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A emergência devida à pandemia que estreitou o campo de nossa observação, a preocupação com a guerra nas fronteiras da Europa - uma guerra entre a Rússia e o Ocidente, como se revelou de imediato - as dificuldades decorrentes da recessão econômica que estamos atravessando impediram-nos de ler o que estamos vivendo no cotidiano em nível individual e social. Mas quando se tenta fazer uma leitura reformulando seu juízo, percebemos imediatamente que a progressiva vulgarização do gosto, a barbárie dos modos, mediocridade e grosseria (esta última chamada por Robert Musil de "práxis da estupidez") permeiam todos os ambientes de nossa sociedade.
O clima em que vivemos é, hoje, para muitos de nós, um peso insustentável, porque deteriora e compromete a qualidade da vida pessoal e coletiva, o “eu” e o “nós”. A esse achatamento acrítico em modelos muitas vezes importados, a uma cultura marcada pela competitividade, agressividade, negação do diverso, parece impossível reagir eficazmente no campo educacional, de forma que a vulgarização é desenfreada.
Sabemos listar as crises pelas quais estamos atravessando, mas talvez na raiz de muitas delas deveríamos reconhecer uma: a crise do senso de responsabilidade. Ser responsável significa ter sempre presente o rosto do outro, dos outros, porque o rosto sempre se volta para mim com uma pergunta, uma expectativa, o pedido implícito de uma resposta que é a primeira forma de responsabilidade.
Mas, para chegar a ter senso de responsabilidade, é preciso resistir à expropriação da interioridade, tentada pela colonização dominante da cultura de massa, cada vez mais tecnicizada. Sem uma vida interior em que possam surgir as perguntas, quem poderá tentar vias de liberdade?
Até mesmo a educação como poderia se realizar de maneira fecunda sem a formação do espírito ou da vida interior?
Demasiado pouca é a atenção que se dedica à preparação para a vida, à formação do caráter, ao exercício do pensamento e do discernimento, e deve-se denunciar também a falta de uma transmissão por parte daqueles que deveriam ser "transmissores de memória". Em vez disso, tivemos agentes do desmanche que nos deixaram apenas ruínas, e agora a paisagem está deserta.
É sobretudo na vida da polis que se manifesta o sentido de responsabilidade que impede o reino da demissão. Sim, a demissão de fato não pode ser chamada por outro nome que não seja "estupidez".
Em suas cartas do cárcere, Dietrich Bonhoeffer escreve: “Para o bem, a estupidez é um inimigo mais perigoso do que a maldade. Contra o mal é possível protestar, podemos transigir, em caso de necessidade podemos opor-nos com força... mas contra a estupidez não temos defesas... em determinadas circunstâncias os homens são tornados estúpidos, ou se deixam tornar estúpidos. O poder de uns exige a estupidez de outros.”
Palavras que exprimem a urgência de opor resistência, de empenhar-se com uma vida interior, de ser dotado do sentido de responsabilidade.
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O senso de responsabilidade. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU