12 Julho 2017
National Catholic Reporter, 11-07-2017, revista americana, em editorial avalia a política da Igreja em relação aos abusos sexuais. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Segundo o editorial, “o que continua dificultando o trabalho da Igreja de finalmente deixar esse escândalo para trás é que a hierarquia ainda não realizou a profunda e provavelmente dolorosa avaliação do papel que a cultura clerical essencialmente masculina da Igreja teve nesse escândalo. Em seu centro, não se trata de um escândalo meramente sexual, mas de como o poder e a autoridade são exercidos na Igreja. Até que isso mude, poucas outras coisas mudarão”.
O cardeal George Pell, de licença do trabalho nas finanças do Vaticano e possivelmente também do trabalho ministerial, retornará à Austrália ainda neste mês devido a acusações de abusos sexuais a menores décadas atrás. Isso é um sinal do progresso da Igreja Católica no combate ao abuso de crianças pelo clero.
Realmente, não estamos em 1985, quando a Conferência dos Bispos dos EUA e o Vaticano podiam enterrar relatórios detalhados sobre o abuso de menores e encobri-los em Lafayette, na Louisiana, ignorando os conselhos de padre, advogado e psiquiatra sobre como proceder com justiça e transparência. Os bispos dos Estados Unidos continuariam assim com alegria por mais uma década até que alguma diocese começasse a implementar políticas para lidar com sacerdotes abusivos.
Não estamos em 1995, quando os bispos austríacos elegeram o cardeal Hans Hermann Groër, arcebispo de Viena, para ser presidente de sua conferência, poucos dias depois de a mídia noticiar em primeira mão casos sexuais de Groër com seminaristas que estavam sob seus cuidados duas décadas antes. Até o final do ano, Groër renunciou a sua posição de arcebispo, mas três anos se passaram e a mídia continuou cobrindo a má conduta de Groër com alunos e adultos e os pedidos desesperados dos bispos austríacos diretamente ao papa João Paulo II "para terminar logo com a carga do assunto Groër", antes que ele se aposentasse tranquilamente. João Paulo II teve dois encontros privados com ele e defendeu o cardeal contra "ataques injustos" até a morte de Groër, em 2003. O papa afirmou que ele era um dos "servos fiéis" de Deus.
Ao longo de seu pontificado, também, João Paulo defendeu firmemente o Pe. Marcial Maciel Degollado como "um guia eficaz para a juventude", apesar de o fundador dos Legionários de Cristo ser um abusador sexual em série e ter tido vários filhos com pelo menos duas mulheres. Somente depois da morte de João Paulo o papa Bento XVI pôde banir Maciel do ministério público.
Não estamos em 2002, quando o Cardeal Bernard Law, de Boston, resistiu a um ano de uma cobertura diária debilitante sobre como ele prejudicou uma geração de católicos negando e sistematicamente encobrindo os abusos clericais. Quando ele finalmente teve que deixar Boston, Law encontrou refúgio em empregos bem pagos do Vaticano e continuou influenciando o trabalho da Igreja por mais uma década.
Não estamos em 2013, quando um arquivo de documentos que teve de ser aberto por decisão judicial mostrou que o cardeal Roger Mahony, arcebispo de Los Angeles de 1985 a 2011, reteve informações sobre sacerdotes abusivos das autoridades civis e usou estratégias legais difíceis e combativas para baixar os pagamentos às vítimas e manter os registros arquidiocesanos em confidencialidade em centenas de ações judiciais. (As vítimas das estratégias legais de Pell reconheceriam essas táticas). Já aposentado, Mahony desafiaria a ordem de seu antecessor de se retirar de cargos administrativos e públicos devido à sua "incapacidade de proteger completamente os jovens sob seus cuidados". Em menos de um mês, Mahony estava em Roma para eleger um novo papa e demonstrando "espanto" à sugestão de que ele não participasse do conclave.
A Igreja mudou. Bento XVI contribuiu imensamente para essa mudança. Enquanto ainda era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ele se encarregou de casos religiosos instaurados contra padres abusivos e, como papa, suas reuniões de alto nível com sobreviventes de abuso eram sinais da mudança de que a Igreja precisava desesperadamente.
Mudanças institucionais vieram com Bento XVI e Francisco. Eles modificaram as leis da Igreja para melhor servir esta causa, criaram o Centro de Proteção da Criança na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma para treinar equipes da Igreja na proteção infantil e observaram a implementação de políticas de proteção a crianças e adultos vulneráveis no mundo todo. Francisco criou a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores para aconselhá-lo diretamente.
Essas mudanças estruturais foram acompanhadas de algumas ações que trouxeram esperança: o bispo auxiliar Gabino Miranda de Ayacucho, Peru, foi destituído em julho de 2013 por abusar sexualmente de uma jovem. Acusado de vários casos de exploração sexual de crianças, o arcebispo Jozef Wesolowski foi deposto do cargo de núncio na República Dominicana em 2013, expulso do sacerdócio em 2014 e enfrentou um julgamento da Igreja em 2015, embora tenha falecido logo após o início do julgamento. Este mês, Pell deve se defender no sistema judiciário australiano.
Vimos Francisco tentando responsabilizar os bispos. Em 2015, ele forçou a renúncia de três bispos dos EUA que não administraram casos de abuso sexual adequadamente: o bispo Robert Finn, de Kansas City-St. Joseph, Missouri, e o arcebispo John Nienstedt e seu auxiliar, o bispo Lee Piché, de St. Paul-Minneapolis.
A instituição está no caminho da mudança, mas os eventos recentes fazem questionar se são realmente sustentáveis. Leis e políticas foram atualizadas, mas os corações e mentes nem tanto.
Francisco autorizou a criação de um tribunal para responsabilizar os bispos por "abuso de função". Isso não aconteceu. Os dois sobreviventes de abuso que faziam parte da comissão pontifícia foram forçados a sair. Peter Saunders foi deixado de lado no ano passado por sua franqueza e Marie Collins renunciou em março depois de perder as esperanças de que os funcionários do Vaticano cooperassem com a comissão. A renúncia de Collins traz sérias dúvidas sobre a credibilidade da comissão, que ninguém no Vaticano, nem mesmo Francisco, abordou.
O que continua dificultando o trabalho da Igreja de finalmente deixar esse escândalo para trás é que a hierarquia ainda não realizou a profunda e provavelmente dolorosa avaliação do papel que a cultura clerical essencialmente masculina da Igreja teve nesse escândalo. Em seu centro, não se trata de um escândalo meramente sexual, mas de como o poder e a autoridade são exercidos na Igreja. Até que isso mude, poucas outras coisas mudarão.
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A Igreja mudou em relação aos abusos sexuais, mas não o suficiente, opina publicação americana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU