14 Fevereiro 2017
Adolfo Nicolás, superior geral dos jesuítas entre 2008 e 2016, reflete sobre os desafios da missão no Japão e na Ásia. Assim como os primeiros cristãos buscaram uma síntese com o pensamento dos filósofos pagãos, “não há evangelização possível sem alianças com o budismo e o xintoísmo”.
Após passar algumas semanas em Madri, Adolfo Nicolás volta à Ásia, com escala em Roma. Enquanto a saúde o permita, o ex-prepósito geral dos jesuítas se coloca à disposição da Companhia de Jesus, não sabe ainda se para servir nas Filipinas ou voltar ao Japão, país onde foi ordenado sacerdote no dia 17 de março de 1967 (suas bodas de ouro estão próximas). Tinha 30 anos. A maior parte de sua vida passou, desde então, no longínquo Oriente, onde – confessa – se sente mais em casa que na Europa.
Um dos maiores desafios é ajudar a configurar um cristianismo de rosto genuinamente asiático. O novo filme de Martin Scorsese avivou nele esta inquietude.
A entrevista é de Ricardo Benjumea, publicada por Religión Digital, 13-02-2017. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Então, recomenda ver Silence?
Sim, recomendo. É o filme ideal para quem quer refletir acerca da evangelização do Japão. Quando foi publicado o romance no qual o filme se baseia, em 1966, já houve ali certa reação negativa por parte do clero diocesano, mais que por parte dos jesuítas. Porque o clero diocesano problematiza que o japonês não compreende o cristianismo. Mas, era um livro que fazia pensar, e tudo o que faz pensar é bom.
Que fatores dificultaram a evangelização do Japão?
No Japão cometemos erros, como em todas as partes. O erro principal é não ter sabido entrar na cultura e na vida de sua gente. Eu acredito que não há evangelização possível sem alianças com o budismo e o xintoísmo. Os primeiros cristãos estavam fascinados em encontrar as raízes do cristianismo nos filósofos ou nos poetas pagãos, mas isso foi fraco em nossa geração. Não nos inculcaram a urgência de estudar o budismo e o xintoísmo como mereciam. E isso é uma fragilidade muito forte.
Eu estive no Sínodo da Nova Evangelização e aí nunca se falou dos erros da velha evangelização. Como podemos falar de uma nova evangelização sem reconhecer que nos faltou algo na velha evangelização? Eu acredito que o interesse em Silence passa por aí.
Que nexos de união percebe entre o cristianismo e a cultura japonesa?
O budismo acredito que tem raízes profundamente cristãs como o desapego, a convicção de que tudo é transitório e as coisas têm uma beleza em si... Um filme puramente budista que fui ver no Japão conta a história de um senhor a quem o médico diz que tem câncer e lhe restam seis meses de vida. Procura entre seus amigos quem tem câncer e encontra um a quem restam três meses de vida. Vai visita-lo e pergunta: “O que você faz durante o dia?”. O outro responde: “Vou ao jardim, vejo uma flor e fico contemplando-a”. Assim passa o tempo, encontrando-se com a realidade tal como é. A questão não é se esta flor é bonita em um buquê, não é necessário o buquê, só a flor como é.
O budismo é mais meditação e morte, ao passo que o xintoísmo é vida e celebração. Por isso, diz-se que os japoneses nascem xintoístas, casam-se católicos e morrem budistas.
O senhor também falou muito da misericórdia no budismo.
Recordo-me de um cardeal da América Latina que foi ao Japão e com onze dias já tinha sua tese feita: os japoneses não compreendem a misericórdia de Deus. Mas, se é isso a única coisa que compreendem! Porque a compaixão é a virtude budista mais profunda. Eles não precisam de um Deus juiz. Por isso, uma das melhores coisas de Francisco foi quando lhe perguntaram pelos homossexuais e ele disse aquilo de “quem sou eu para julgar alguém”. Quando a sociedade já julgou e condenou uma pessoa, é importante que o Papa diga isto. O Evangelho nos diz para não julgarmos os demais e não seremos julgados.
O Papa também insiste em algo muito jesuítico, o discernimento. Acredita que se compreende bem o que é isto?
Este é um dos pontos chave deste pontificado. Disse aos jesuítas da Polônia que necessita mais deles, porque o clero ainda não está suficientemente preparado para discernir. Caso se leve o discernimento a sério, aos leigos não é preciso dar respostas, é preciso lhes proporcionar um discernimento. E isso é difícil. Porque supõe considerar que a vontade de Deus está aberta, e isso não é o que muitas vezes se prima na Igreja, onde se considera, com frequência, que a vontade de Deus já está clara e se deseja que todos venham a determinado redil, com um único pastor. As luzes que possa existir em outras religiões sempre são consideradas como uma sombra, não são luzes, mas, ao contrário, sombras que anunciam outra coisa. E isso nos traz alguns problemas.
Como quais?
Não sermos capazes de compreender que as outras religiões são o melhor que uma cultura pode oferecer. As culturas asiáticas, por exemplo, produziram o budismo: este é o seu melhor fruto. E, no entanto, houve um tempo em que nós pensávamos, eu pensava isto também, que essa religião era um produto do diabo, e resulta que é obra do Espírito. Hoje, compreendemos isto melhor.
Que parte da religião diria que é produto humano e quais partes são movimento de Deus, que se deixa buscar pelo homem? Onde está a síntese?
A síntese está nas relações humanas. Nisto pensei muito: por que quando vou à Ásia, a Hong Kong, a Bangkok ou a Tóquio sinto-me imediatamente em casa, ao passo que na Europa não me sinto em casa. A Europa tem algumas relações apoiadas talvez na verdade. Como explicou um bispo, “Jesus disse: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida’. As religiões da Ásia são o caminho, mas os missionários vieram falando da verdade e nunca encontramos”. A Ásia é o caminho. A Europa e os Estados Unidos estão preocupados com a verdade, em como defini-la. A América Latina e a África são a vida, e possuem valores que nós já esquecemos, como a família, as crianças, a amizade... Necessitamos de todos para encontrar a plenitude de Cristo.
Quando o senhor é eleito geral dos jesuítas, em 2008, como esboça a integração de todas essas dimensões culturais que a Companhia de Jesus recebe a se fazer presente em todos os continentes?
Minha norma nestes anos de governo foi ser eu mesmo em Roma. Não tenho consciência de ter existido um programa especial. Contudo, ser eu mesmo significa estar aberto a tudo. E eu acredito que isso funcionou. Estar aberto à Ásia, à América Latina, à África, à minha própria cultura... Porque Deus está em tudo, e em tudo podemos encontrar sinais de sua presença. Essa abertura é o que mais me ajudou: Deixar que me impactem as pessoas, as culturas, os acontecimentos...
Preocupou-me muito a interpretação do mundo a partir das diversas culturas. Eu acredito que aí está o problema da inculturação. Não é uma simples questão de gestos, mas de interpretação total da realidade, sem perder de vista a totalidade e como as culturas podem se enriquecer mutuamente e contribuir melhor para a vida dos demais.
Na África, os jesuítas levaram isto muito a sério com o Instituto Histórico de Nairóbi. Trata-se de devolver aos africanos a capacidade de interpretar sua história com olhos africanos, não europeus. De fato, a ideia primeira era uma cadeia de institutos históricos em diferentes partes do mundo. Na Colômbia, já existe algo similar e também na Índia. Isto é fundamental.
Como foi sua relação com Bento XVI?
Quando me elegeram, fui vê-lo, e me contou que, sendo seminarista, havia tido um diretor espiritual jesuíta, e que depois, durante o Concílio, várias vezes, foi consultar teólogos da Gregoriana e ficou impressionado com a simplicidade dos quartos, cheios só de livros. Bento interpretou que eram pessoas dedicadas ao serviço da Igreja, que não pretendem nada mais. E isso lhe impressionou, e sempre conservou uma visão da vida religiosa muito positiva. Por exemplo, um prefeito veio à Espanha e disse que o único modelo era determinada congregação, que então tinha muitas vocações. Uma semana depois, falando aos bispos brasileiros, o Papa lhe corrigiu, ao dizer que a vida religiosa é a essência da Igreja.
Uma visão positiva que Francisco mantém...
Por minhas conversas com ele, tenho claro que conhece a vida religiosa, suas glórias e também seus defeitos. Possui uma visão muito realista e muito positiva, porque, afinal, é sua própria vocação religiosa o que está em jogo.
Quando foi eleito, houve um momento de suspense. Segundo me disseram, duas cartas que eu escrevi sobre o Papa Francisco ajudaram a muitos jesuítas, porque haviam surgido rumores sobre Bergoglio que colocavam em questão sua opinião sobre a Companhia e que não correspondiam à realidade. E parece que minhas cartas aliviaram esses rumores. O que eu encontrei é a uma pessoa muito afável, muito positiva, sem nenhuma reserva frente à Companhia, e isso foi o que busquei comunicar aos jesuítas.
Vê em sua eleição certa reivindicação da Companhia de Jesus, após algumas décadas não precisamente fáceis?
Francisco, apesar de ter sido bispo e agora Papa, compreendeu que não é bom para a Companhia de Jesus ser bispo, porque o bispo não pode ir às fronteiras. Há uma diferença carismática: a vocação do jesuíta é nas fronteiras, ao passo que o bispo tem outra vocação, que é cuidar do rebanho. E, por isso, o Papa conversou com o prefeito da Congregação para os Bispos e disse: “Não mais jesuítas!”. E isso acredito que é bom para a Companhia.
Outro acontecimento decisivo em Roma, durante sua etapa à frente dos jesuítas, foi a morte do cardeal Martini, um dos grandes jesuítas do século XX.
Certamente. O cardeal Martini é outra das pessoas que influenciam toda a Igreja, justamente por sua abertura, por sua capacidade de suscitar questões e problemas e não se retrair por nada. O divórcio, por exemplo, não lhe impressionava, porque ele tinha uma irmã divorciada e sabia pessoalmente que o divórcio não é a última palavra, que há algo último na pessoa que vale muito mais.
O que o senhor deseja a seu sucessor, o padre Arturo Sosa?
Desejo-lhe abertura e que enfrente as questões conforme vão aparecendo, com confiança, porque ele está muito qualificado para responder aos problemas. De fato, sua eleição como geral me serviu de reconciliação com seu provincial que, inicialmente, não queria que Sosa fosse a Roma, porque me dizia que precisava dele na Venezuela. E era verdade, mas eu insisti para que viesse. Agora, após sua eleição, o provincial veio a mim e disse: “Agora vejo que seu serviço deve ser para toda a Companhia”. É um homem muito eficaz. Eu o chamei “bombeiro número um”, porque me apagava muitos fogos. Quando está com uma questão em suas mãos, não a abandona até encontrar a solução. Sendo assim, acredito que a eleição foi muito boa.
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“Na Ásia, não há evangelização possível sem alianças com o budismo e o xintoísmo”. Entrevista com o jesuíta Adolfo Nicolás - Instituto Humanitas Unisinos - IHU