24 Novembro 2014
Um ‘bom vizinho’ utiliza as instituições do Estado para benefício próprio em detrimento da destruição ecológica, dos bens comuns e do dinheiro público
O lado oriental do arquipélago do Marajó, aquele marcado pelo cerrado, campos naturais, onde o búfalo aprendeu a viver na Amazônia, está atravessando uma revolução conservadora e uma modernização autoritária e destruidora. Houve uma mudança brusca no padrão político e econômico, iniciada há poucos anos com a chegada de um plantador de arroz expulso de um território indígena em Roraima — junto dele, vem o agronegócio moderno para tomar o lugar de antigos pecuaristas.
A reportagem é de Felipe Milanez, publicada pela revista CartaCapital, 20-11-2014.
Essa nova fórmula ruralista baseada na financeirização da produção, conectada com bolsas de commodities pelo mundo, movimentada por máquinas potentes, agrotóxicos violentos e portas abertas na burocracia estatal para seus interesses. A principal resistência a essa grande transformação na região, com desvio de rios, desmatamento e poluição tóxica, está concentrada nas comunidades remanescentes de quilombos.
O plantador de arroz recém-chegado é um gaúcho deputado federal por Roraima, Paulo Cesar Quartiero, que acaba de se eleger vice-governador nesse estado. Sabe como poucos abrir frentes de expansão em terras de populações tradicionais, provocar impactos ambientais que ultrapassaram R$ 50 milhões em multas do Ibama em sua antiga sede, e sobretudo manejar as instituições do Estado a seu favor, com investimento e facilitações políticas.
Engana-se quem pensa que Quartiero chega com violência contra pessoas em um primeiro momento — a violência mais exposta ainda é contra o ambiente do qual dependem muitas comunidades. Quartiero chegou para ser o “bom vizinho”, uma ressignificação do atual modelo do agronegócio no Brasil do antigo “bom patrão”, aquele violento explorador da mão de obra que se utiliza do paternalismo para controlar o corpo e território alheio.
O “bom vizinho” que oferece trator, convida para uma festa, quiçá consegue algum trabalho para algum jovem da comunidade, pedindo licença para desviar o rio e jogar agrotóxico na água e no ar de quem vive a seu lado — e deslegitimar as lideranças comunitárias. “Bom vizinho” em Cachoeira do Arari, onde sua lavoura hoje estabelece os limites da cidade, rodeada por arroz, pelos canais de irrigação e pulverizada de agrotóxico. Com a ideologia do “progresso” que promete a melhoria de vida e emprego — mesmo que nada disso venha, já que até o momento não houve grande mobilização contrária no município, apenas esse tipo de alianças em desequilíbrio de posições.
O fazendeiro foi expulso da Raposa Serra do Sol, onde deixou um rastro de destruição e marcas de violência no corpo de indígenas macuxi e wapishana. Foi beneficiado com um complexo arranjo político que inclui forças potentes no governo do Pará. Chegou de mansinho, sem acordar o Ministério Público que não percebeu as primeiras mudanças profundas no sistema ecológico do Marajó. Apenas depois de já ter 3 mil hectares de arroz plantado, um rio desviado, agrotóxico lançado pelas asas de avião e uma profunda transformação no entorno da cidade de Cachoeira do Arari, é que foram acontecer as primeiras audiências públicas sobre o “empreendimento”, que conta com farto financiamento público.
A grande resistência que veio a encontrar em Marajó foi justamente daquelas comunidades que há séculos resistem e lutam por emancipação: os remanescentes de quilombolas. São 18 comunidades ao todo nessa região do Marajó, cada uma experimentando um tipo de impacto diferente desse agronegócio, seja direto, como a construção de um porto dentro do território do Gurupá, seja com o agrotóxico que atinge Rosário, seja com a especulação da terra que chega a todos os territórios, como em Bacabal.
Nas últimas semanas, visitei diversas comunidades quilombolas para saber como percebem essa chegada de um novo desbravador. É fácil perceber em Marajó que algo mudou. Na balsa que me levou de Belém, conheci um gaúcho que estava vindo de Paragominas, no Pará, depois de uma longa trajetória de migração em fronteiras agropecuárias na Amazônia que inclui diversas cidades no Mato Grosso, como a potência sojeira atual de Sorriso. Havia comprado 500 hectares de terra de um americano, já tinha desmatado 150, previa desmatar o resto nos próximos anos, e a lavoura inicial seria de abacaxi e mandioca, para em seguida cultivar arroz. Não entendi a razão dessa linha evolutiva, mas talvez não estivesse à vontade para falar de seus interesses.
Os “pretos bestas” hoje lutam por direito
A primeira vítima da violência explícita e intimidadora do novo agronegócio foi Teodoro Lalor de Lima, liderança da comunidade Gurupá assassinado em março desse ano em crime ainda não esclarecido. Como é costume no interior do Pará, as investigações da polícia não foram muito longe e logo o crime foi classificado como passional. Na comunidade, porém, ninguém se convenceu do argumento e pediram novas investigações da polícia — que não foram feitas. No rio Caracará, que banha o quilombo e era utilizado por Lalor para ir da sede da comunidade até sua casa, foi construído um porto sem licença ambiental para o embarque do arroz de Quartiero.
Manoel Natividade Batista dos Santos, uma das lideranças da comunidade Gurupá, enumera três grandes impactos que atingem diretamente o território quilombola: o primeiro e mais grave é a contaminação por agrotóxicos, que polui as águas, mata os peixes e contamina todo o ecossistema; em seguida, o desvio do rio para a irrigação do plantio; terceiro, o porto no Caracará construído dentro do território e sem licença ambiental. “Há dez anos lutamos pela titulação, e em cinco dias ele conseguiu a licença ambiental dessa destruição toda. Se algum de nos vai ao Ibama para tirar licença para cortar um açaí, nos dão uma multa.”
Não é apenas Quartiero, mas os outros fazendeiros vizinhos, como Liberato Castro, que se opõe às titulações e tenta retirar a posse dos quilombolas de seu território. Fazendeiros antigos que passaram a construir ali perto com a valorização das terras e o interesse em expandir suas áreas. Natividade conta que, uma vez, esse fazendeiro disse para um candidato na região — e sua filha é prefeita em Ponta de Pedras — que nunca conseguiria votos lá nos “pretos bestas”. A comunidade rebelde do Gurupá era conhecida na região como “o lugar dos pretos bestas”. “Hoje os ‘pretos bestas’ do Gurupá estão reivindicando seus direitos”.
Na comunidade Rosário, Elieide Quilombola explica como a fórmula do “bom vizinho”, articulada por Quartiero junto da inoperância do Estado em promover a titulação e reconhecer os direitos, tem agido para minar o respeito às lideranças comunitárias. O “bom vizinho” — pois os novos capitalistas da região não querem ser “patrões”, apenas expropriar territórios — é uma estratégia de deslegitimar lideranças: “Oferecem necessidades imediatas, como emprestar um trator, um emprego, convidam para a festa, e tentam deslegitimar as lideranças que lutam pelo coletivo dizendo que só viajam”. “Quem tem dinheiro não se preocupa com quem está ao lado, ou se amanhã vai faltar para o próximo, se preocupa apenas com o crédito no banco.”
Nada disso faz ela abaixar a cabeça: “Nós somos Zumbi”.
Haroldo Júnior vive no quilombo Bacabal, a única comunidade que recebeu o documento RTID do INCRA, próxima a Salvaterra. É uma liderança de destaque, conhecedora da história de resistência e das articulações atuais. Tendo experimentado o cargo de Secretário da Cultura de Salvaterra, logo preferiu voltar aos movimentos sociais: “Sou melhor para a comunidade do lado de fora, política não é só governo”.
Escreveu um belo texto sobre o pau da visagem, uma árvore que ficava na Estrada da Nação — como chamavam o caminho na mata que levava até outras comunidades — atrás da qual se escondiam visagens. As visagens amedrontavam todos na comunidade e ninguém passava por lá depois das seis da tarde — mas também servia para afugentar invasores e proteger o quilombo dos brancos escravagistas.
“Aqui sempre existiu conflito: é o negro tentando se libertar”, reflete Haroldo. Em sua análise, ele percebe que os brancos ricos do Marajó se aliaram a Quartiero. Os fazendeiros que detém terras – mesmo sem títulos de propriedade – querem se regularizar para vender para a especulação. “Eles estão organizados, são um grupo de pessoas, não são sócios, mas se aliam”, ele diz. “E o Quartiero patrocinou quase todos os candidatos da região nas eleições.” Não é só o Friboi — maior financiador de campanhas do País — que sabe como articular o lobby ruralista nas eleições…
Os quilombolas do Marajó não estão solitários nessa luta de resistência, luta em defesa da sobrevivência cultural de suas comunidades e do ambiente do qual dependem para viver. Contam com vários aliados, como a organização Malungo, de remanescentes de quilombos no Pará, a organização Peabiru e o engajado apoio do ambientalista João Meirelles Filho, do Ministério Público Federal e Estadual, com dedicados procuradores sensíveis à causa, com apoio do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, e com os antropólogos contratados há poucos anos pelo INCRA para trabalhar especificamente com a titulação das terras quilombolas — e que hoje formam um quilombo de resistência dentro do próprio INCRA para que o órgão cumpra suas atribuições legais de reconhecer os territórios.
Dar visibilidade a esse conflito que guerreiros Zumbi no Marajó enfrentam — belíssimo arquipélago de um ecossistema natural e cultural extraordinário — pode ajudar para que tenham ainda mais aliados pelo País. Outros Zumbi. Zumbis que ajudem a enfrentar inimigos que utilizam as instituições do Estado para benefício próprio em detrimento da destruição ecológica, dos bens comuns e do dinheiro público.
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"Somos Zumbi", dizem quilombolas do Marajó contra o agronegócio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU