Por: André | 09 Abril 2014
O Comando Sul inaugurou no Paraguai um Centro de Operações de Emergência. Diante da oposição que a instalação de bases militares tradicionais suscita entre a população, o Pentágono redireciona sua estratégia de vinculação com a América Latina hierarquizando a intervenção militar diante de crises humanitárias provocadas por urgências climáticas.
Fonte: http://bit.ly/1gf2Fui |
A reportagem é de Emiliano Guido e publicada no jornal argentino Miradas al Sur, 30-03-2014. A tradução é de André Langer.
Não há hangares, pistas para aviões militares de grande porte, radares de última geração, nem marinheiros norte-americanos entoando gritos de guerra para insuflar seus ânimos. Contudo, o diretor de Planejamento do Comando Sul norte-americano, o contra-almirante George Balance, e o embaixador estadunidense no Paraguai, James Thessin, foram até a pequena localidade de Santa Rosa del Araguay, no oeste paraguaio, para inaugurar, junto com a cúpula policial e militar local, um modesto prédio chamado de Centro de Operações de Emergência (COE) e um Depósito de Abastecimento de Emergências que permitirá, segundo os comunicados oficiais do evento, socorrer “a população civil afetada por desastres naturais”. Contudo, o Serviço de Paz e Justiça do Paraguai (Serpaj-Py) adverte que o Pentágono norte-americano “impõe sua presença no Departamento de San Pedro para militarizar um enclave no país”, onde convergem três eixos problemáticos para o governo de Horacio Cartes: a resistência camponesa contra a expansão das fronteiras da soja, o narcotráfico e a existência de uma suspeitosa guerrilha conhecida como Exército do Povo Paraguaio.
Mas, previamente a esta polêmica, o corte de fitas financiado pelo Comando Sul no norte paraguaio para, supostamente, poder dar a partir do Estado respostas rápidas em caso de emergência climática, é totalmente lógico com o novo enfoque doutrinário do Pentágono em sua busca de seguir aceitando vínculos com as Forças Armadas da região. O próprio contra-almirante Balance, por exemplo, participou da elaboração de um documento estratégico de 2008, intitulado U.S. Southern Command Strategy 2018: Partnership for the Americas (Associação para as Américas), no qual Washington admite, pela primeira vez, as emergências climáticas e suas consequentes crises humanitárias como um dos cenários estratégicos territoriais onde intervir
Durante a Guerra Fria, o comunismo foi o eixo do mal a combater para a Casa Branca; no começo dos anos 1980, a guerra contra as drogas deslocou a foice e o martelo como inimigo a vencer; agora, os terremotos e a mudança climática parecem ser a desculpa perfeita. As ameaças mudam, os marinheiros ficam. Durante o ato de abertura do COE, as autoridades norte-americanas também inauguraram o “primeiro curso de capacitação de pessoal” para o manejo desta unidade operacional. Evidentemente, os recursos edilícios e técnicos estadunidenses vêm acompanhados com a venda de know how da administração cívico-militar de uma situação excepcional que ultrapasse os recursos e a infraestrutura do poder estatal. Isso sim, o contra-almirante Balance e o embaixador Thessin podem garantir às autoridades do governo de Cartes que seus subordinados não vão improvisar na hora de doutrinar os seus pares paraguaios.
Na realidade, quando o Comando Sul reativou, em 2008, o uso da IV Frota – comandada pelo gigantesco porta-aviões George Washington – para patrulhar o litoral atlântico com supostos “fins humanitários”, depois de 58 anos de inatividade no uso desta força naval continental, os Centros de Operações de Emergência começaram a ganhar vida em toda a região como unidades complementares da IV Frota em seus diferentes desembarques. A IV Frota foi repudiada por todos os governos sul-americanos. Sobretudo pelo Brasil, que entendia o uso dos navios do Pentágono como uma intromissão de Washington em sua “Amazônia Azul”, pelas enormes reservas de petróleo que o vizinho país possui na Bacia de Santos. Contudo, Joseph Kernan, número um da IV Frota e ex-membro do grupo SEAL, o comando de elite que, por exemplo, assassinou Osama Bin Laden, aduzia que a força ao seu encargo era composta por soldados do presidente Barack Obama “para distribuir vacinas e medicamentos nos países amigos”.
Depois, após o feroz terremoto do Haiti de 2010 e a prolongada intervenção militar da IV Frota em Porto Príncipe, ficou demonstrado que as crises humanitárias são, para o Comando Sul, a porta de entrada perfeita para desembarcar ao sul do Rio Bravo. Além disso, nos últimos anos, os Estados Unidos tiveram que retroceder em sua política de instalar bases militares tradicionais no Cone Sul. O governo equatoriano de Rafael Correa desativou a base militar norte-americana de Manta, e na Colômbia os enclaves cedidos pelo governo de Álvaro Uribe ao Pentágono foram declarados inconstitucionais pela Suprema Corte. Esta nova reconfiguração da defesa e segurança hemisférica por parte dos Estados Unidos ficou plasmada nas palavras do embaixador Thessin quando, durante a inauguração do COE, declarou ao jornal ABC Color, de Assunção, que: “Há quase quatro anos nasceu o conceito do Centro de Operações de Emergências e de um Depósito de Abastecimento para Emergências. Paraguai e Estados Unidos têm muitos valores em comum, inclusive a redução da pobreza. A doação destes equipamentos e os treinamentos aumentarão a capacidade de respostas diante de desastres naturais, e com isso se conseguirá melhorar a vida da população”.
Após a implantação de um novo enclave apadrinhado pelo Pentágono no Paraguai, o Serpaj entrevistou Richard Doughman, pós-graduado em estudos latino-americanos e pesquisador da política de defesa norte-americana, para tratar de pensar as implicações desta nova estratégia de defesa estadunidense. Segundo Doughman: “O uso deste tipo de Centro de Operações representa uma adaptação da estratégia norte-americana às novas condições: em primeiro lugar, à crescente resistência política e social diante da instalação de bases militares na América do Sul, e em segundo lugar, à grave crise fiscal do Estado norte-americano. Além disso, meses atrás, o Secretário de Defesa norte-americano anunciou cortes significativos no orçamento militar, provocados pelo déficit fiscal que acarretam os Estados Unidos. Enquanto fecham bases militares na Europa e interrompem alguns programas armamentistas particulares, reforçam os programas das Forças Especiais (encarregadas de operações secretas) e dos aviões não tripulados (os drones). Tudo indica que os Estados Unidos estão em transição para uma força militar menor, mas igualmente letal, realizada por operações de alta precisão em alvos identificados pela inteligência militar e que diminuem o máximo possível os riscos para as vidas norte-americanas. Neste cenário, um pequeno centro de operações serve perfeitamente”. A análise de Doughman torna inteligível, então, que o Comando Sul esteja convidando todas as Forças Armadas Latino-americanas para participar de um exercício conjunto mascarado de Forças Aliadas Humanitárias, que acontecerá entre os dias 05 e 16 de maio em El Salvador.
Mas, por que o Paraguai, um país com uma economia pequena, é estratégico para os Estados Unidos? Segundo Richard Doughman: “O Paraguai é um território chave por um grande número de razões geoestratégicas: sua posição central permite monitorar o espaço aéreo do continente inteiro e facilita uma chegada rápida a qualquer parte do Cone Sul; sua posição de cunha entre os dois países mais poderosos do Cone Sul, a Argentina e particularmente o Brasil, sua posição de ponte terrestre entre a bacia do Amazonas e a bacia do Rio da Prata; a abundância de recursos naturais, especialmente recursos hídricos, também não deve ser subestimada. Neste sentido, um Centro de Operações de Emergência possibilita a presença permanente de soldados e equipamentos norte-americanos e o uso periódico dos mesmos através de operações militares (humanitárias) em conjunto com as Forças Armadas paraguaias em San Pedro, que vem a ser a frente mais conflitiva da fronteira agroexportadora em expansão”.
Consultado por telefone por Miradas del Sur, Abel Irala, coordenador do Serpaj Paraguai, concorda em assinalar que a instalação do COE norte-americano situa-se em uma zona rica para o extrativismo da soja: “Santa Rosa del Aguaray é uma das cidades mais importantes de San Pedro. Em todo este tempo de transição democrática foi cenário de importantes mobilizações camponesas e de lutas históricas para o movimento popular. Ali se concentraram várias medidas de forças para resistir a repressões e perseguições contra o campesinato. A zona também é o epicentro de fortes atritos e importantes vitórias dos assentamentos camponeses que rodeiam a cidade; assentamentos que se constituíram pela luta e mobilização por meio das ocupações de terras improdutivas até a chegada dos camponeses e camponesas”.
Por outro lado, a chegada dos uniformizados norte-americanos ao país vizinho não produziu um grande debate nacional entre os diferentes partidos políticos com representação parlamentar nem causou um volume significativo de informações nos grandes meios de comunicação. Para Julio Benegas, colunista do jornal cooperativista paraguaio E’a, o novo acordo entre o Ministério da Defesa local e o Comando Sul implica uma cessão de soberania porque “esta é uma decisão não consultada, não discutida no Parlamento nem na sociedade nem nos grandes meios; colocam-nos como uma naturalidade o fato da presença dos oficiais norte-americanos. E isto é absolutamente assustador: controlam tudo, os nossos oficiais, os grupos operacionais, nas capacitações sobre as novas ameaças, e nessa caracterização das ameaças estão os outros, os que colocam em perigo a ordem, a paz e a estabilidade, do ponto de vista deles, e esses outros podem ser aqueles que ocupam praças, territórios, os indígenas que resistem. Esse é o marco ideológico sob o qual se implementa o Centro de Operação de San Pedro e, lamentavelmente, não o discutimos”.
“O perigo é que o efetivo militar vá assumindo, cada vez mais, funções que facilmente poderiam ser desempenhadas por civis e que estas novas funções sirvam, de alguma maneira, para legitimar a presença militar norte-americana. Neste caso, a resposta a emergências, sejam naturais ou humanitárias, por si, não apresenta características que exigem capacidades militares. Uma força civil bem equipada, capacitada e apoiada pelo Estado paraguaio, tranquilamente poderia responder a uma situação de emergência no país. Contudo, como se viu claramente com o terremoto no Haiti, em 2010, um desastre natural pode servir de pretexto para uma ocupação militar permanente”, alerta Richard Doughman.
Paralelamente, a situação política do Paraguai atravessa uma conjuntura social especial. Esta semana aconteceu uma contundente greve geral na qual as principais centrais sindicais e camponesas do país unificaram suas reivindicações. Os protestos foram contra a forte política de privatização do setor público que vem sendo desenvolvida pelo governo do magnata Horacio Cartes. A tal ponto chega a sintonia do dono do clube de futebol Libertad com as políticas de livre mercado que em sua recente reunião com investidores estrangeiros, o primeiro presidente convidou os empresários para que “usem e abusem do Paraguai”. Uma espécie de versão hardcore da teoria das relações carnais defendidas pelo menemismo como vértice da política exterior argentina. Por esse motivo, a inauguração de uma unidade operacional patrocinada pelo Comando Sul acende luzes vermelhas nas organizações sociais paraguaias. Mais, durante a mobilização operária desta semana em Assunção, várias paredes da capital amanheceram pichadas com as seguintes palavras: “Marines, go home”. Parece uma consigna desatualizada no tempo. Mas, nem tanto no Paraguai de Horacio Cartes.
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O risco dos marinheiros humanitários - Instituto Humanitas Unisinos - IHU