Por: Vitor Necchi | 12 Outubro 2018
Um dos maiores problemas do mundo contemporâneo é a situação dos milhares de refugiados, que são obrigados a deixar seu país por conta de algum tipo de perseguição ou flagelo e, não raro, ainda encontram dificuldades para se estabelecer em um paradeiro seguro. Há uma especificidade de refugiado de que pouco se fala, mas que, nos últimos anos, tem mobilizado a atenção de governos e entidades que lidam com a temática. São as pessoas que necessitam abandonar a vida que levam em determinado lugar por conta de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
Em 1981, na Holanda, ocorreu o reconhecimento do primeiro caso de status de refugiado por motivos de orientação sexual. No Brasil, foi em 2002. “Sem dúvida, o Brasil, apesar de possuir uma sociedade homo-lesbo-bi-trans-fóbica, apresenta uma realidade muito mais favorável para as sexualidades não heterossexuais do que os países de origem como Nigéria, Camarões e Serra Leoa”, exemplifica o antropólogo Vítor Lopes Andrade, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
No seu entendimento, para lidar com essa questão, “precisa haver um maior diálogo entre a comunidade LGBTI+ brasileira e os(as) solicitantes de refúgio por motivos de orientação sexual, assim como mais ações voltadas especificamente para esse público, a fim de que uma rede de apoio seja estabelecida para essas pessoas, tornando possível que elas deixem de viver através da lógica do silêncio e da invisibilidade, se esse for o desejo delas”.
No Brasil, e especificamente na cidade de São Paulo, órgãos públicos e organizações da sociedade civil trabalham no atendimento e na acolhida de refugiados e solicitantes de refúgio. Também há instituições públicas e privadas que atendem e defendem pessoas LGBTI. “É bastante recente e ainda incipiente, entretanto, a articulação entre esses dois universos distintos”, afirma Andrade. “No geral, os(as) solicitantes de refúgio e refugiados(as) por motivos de orientação sexual recorrem às organizações da sociedade civil e do poder público que atendem pessoas em condição de refúgio de uma maneira geral.”
Há especificidades que devem ser observadas na hora de lidar com esse tipo de refugiados. A primeira questão que se impõe é a oferta de um local que seja seguro “para que essas pessoas se sintam confortáveis em falar sobre suas orientações sexuais, ou seja, um espaço em que elas saibam que não serão discriminadas nem perseguidas, que outras pessoas (incluindo solicitantes de refúgio da mesma nacionalidade) não ouvirão o que está sendo dito e que a informação será mantida em sigilo”. É importante considerar que esses solicitantes foram perseguidos, ou tinham temor que isso ocorresse, em razão das suas sexualidades. Andrade destaca que são pessoas que “viveram muitos anos sendo reprimidos por instituições sociais e legais em seus países de origem”, por isso “pode ser extremamente difícil falar abertamente sobre essa temática”.
Em mais de 70 países, há legislações que criminalizam atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo. “É importante ressaltar, entretanto, que para além da dimensão legal, há perseguições religiosas, sociais e familiares tanto em países que criminalizam as relações consentidas entre adultos(as) do mesmo sexo, como naqueles em que não existe essa criminalização”, diz Andrade. “Em grande parte dos casos, a identidade ou prática homossexual é descoberta, e então começa a ser perseguida, por membros da própria família, como os pais, irmãos, tios, primos etc.”
Vitor Lopes | Foto: Arquivo pessoal
Vítor Lopes Andrade é mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp. Sua dissertação de mestrado, Imigração e Sexualidade: solicitantes de refúgio, refugiados e refugiadas por motivos de orientação sexual na cidade de São Paulo, foi premiada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - Acnur e no III Concurso Nacional de Teses de Doutorado e Dissertações de Mestrado da Cátedra Sérgio Vieira de Mello - CSVM – 2017.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quando a questão dos refugiados por orientação sexual ou identidade de gênero passou a ter visibilidade no mundo e por quê?
Vítor Lopes Andrade – O primeiro caso de status de refugiado reconhecido por motivos de orientação sexual que se tem notícia foi em 1981, na Holanda. Entretanto, o tema começa a ganhar mais visibilidade a partir dos anos 2000, devido a iniciativas do Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), como as Diretrizes de Proteção Internacional nº. 1 e nº. 2, e com o avanço dos debates e propostas internacionais referentes aos direitos LGBTI+, por exemplo, os Princípios de Yogyakarta. A partir dos anos 2010 começam a surgir pesquisas acadêmicas e relatórios de organizações da sociedade civil, além de documentos mais específicos do Acnur em relação ao refúgio por motivos de orientação sexual e identidade de gênero. Com o aumento do número de deslocamentos forçados nos últimos anos, passou-se a falar também de casos de solicitação de refúgio que até então eram menos conhecidos, como os que têm como motivo da perseguição o gênero, a orientação sexual e/ou a identidade de gênero.
IHU On-Line – E no Brasil?
Vítor Lopes Andrade – O primeiro caso de reconhecimento do status de refugiado devido à orientação sexual que se tem notícia no Brasil foi em 2002. O tema começa a ganhar visibilidade no país a partir dos anos 2010, em especial de 2014/2015 para cá. É quando surgem as primeiras atividades de organizações da sociedade civil, notícias jornalísticas e trabalhos acadêmicos. Um mapeamento desse tema no Brasil pode ser encontrado aqui.
IHU On-Line – Há órgãos públicos e entidades com ações voltadas para refugiados LGBTI? Quais são e como atuam?
Vítor Lopes Andrade – No Brasil, e na cidade de São Paulo especificamente, há órgãos públicos e organizações da sociedade civil que trabalham no atendimento/acolhida a refugiados(as) e solicitantes de refúgio, assim como há instituições públicas e privadas que atuam no atendimento e defesa das pessoas LGBTI+. É bastante recente e ainda incipiente, entretanto, a articulação entre esses dois universos distintos. No geral, os(as) solicitantes de refúgio e refugiados(as) por motivos de orientação sexual recorrem às organizações da sociedade civil e do poder público que atendem pessoas em condição de refúgio de uma maneira geral.
IHU On-Line – As medidas de acolhimento ideais para quem busca outro país a fim de fugir de preconceito e perseguições motivados por orientação sexual devem ter que especificidade? Que estratégias e ações podem ser implementadas?
Vítor Lopes Andrade – A primeira questão é oferecer um local que seja “seguro” para que essas pessoas se sintam confortáveis em falar sobre suas orientações sexuais, ou seja, um espaço em que elas saibam que não serão discriminadas nem perseguidas, que outras pessoas (incluindo solicitantes de refúgio da mesma nacionalidade) não ouvirão o que está sendo dito e que a informação será mantida em sigilo. Como esses(as) solicitantes foram perseguidos(as) previamente devido às suas sexualidades ou tinham um fundado temor de serem perseguidos(as) por essa motivação e, normalmente, viveram muitos anos sendo reprimidos por instituições sociais e legais em seus países de origem, pode ser extremamente difícil falar abertamente sobre essa temática. Nesse sentido, é preciso que funcionários(as) do governo, de organizações da sociedade civil e de organizações internacionais recebam treinamentos sobre questões de gênero e sexualidade periodicamente.
Também é necessário que exista uma maior integração entre as instituições que trabalham com/para refugiados(as) e aquelas que atuam na defesa dos direitos LGBTI+; é preciso que alianças/parcerias sejam criadas, a fim de oferecer a esses(as) solicitantes de refúgio redes de apoio relacionadas não somente à sua condição de refúgio, mas também, e principalmente, de sexualidades não heterossexuais. Para uma análise detalhada de ações e estratégias que podem ser tomadas a curto, médio e longo prazo, ver meu texto Desafios no atendimento, acolhida e integração local de imigrantes e refugiados/as LGBTI, que pode ser acessado aqui.
IHU On-Line – Entidades LGBTI são sensíveis a este tema?
Vítor Lopes Andrade – Até pouco tempo atrás, as entidades LGBTI+ ainda não estavam muito atentas às pessoas imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiadas no Brasil. Esse cenário felizmente tem se alterado nos últimos anos, e as primeiras iniciativas começam a surgir, em especial, mas não só, na cidade de São Paulo.
IHU On-Line – Quais países têm restrições mais severas para pessoas cuja sexualidade destoe do padrão heterossexual?
Vítor Lopes Andrade – Uma análise bastante vasta e profunda sobre as legislações que criminalizam os atos sexuais consentidos entre adultos(as) do mesmo sexo pode ser encontrada no relatório State-Sponsored Homophobia, divulgado anualmente pela ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association) e que pode ser acessado aqui.
Atualmente, são mais de 70 os países que possuem essa criminalização, com penas diversas. É importante ressaltar, entretanto, que para além da dimensão legal, há perseguições religiosas, sociais e familiares tanto em países que criminalizam as relações consentidas entre adultos(as) do mesmo sexo, como naqueles em que não existe essa criminalização. Em grande parte dos casos, a identidade ou prática homossexual é descoberta, e então começa a ser perseguida, por membros da própria família, como os pais, irmãos, tios, primos etc.
IHU On-Line – A legislação brasileira não trata especificamente da concessão de refúgio para pessoas perseguidas em decorrência de orientação sexual ou identidade de gênero. Como elas podem ser oficialmente acolhidas? E há dados sobre acolhimento dessas pessoas?
Vítor Lopes Andrade – A Lei 9.474 de 1997 estabelece os critérios de acordo com os quais uma pessoa pode ser reconhecida como refugiada no Brasil. Entre esses critérios, está “grupo social”, ou seja, pertencimento a um grupo social específico. E é através desse critério que se reconhece o status de refugiado(a) àqueles que fugiram de seus países devido ao fundado temor de perseguição por motivos de orientação sexual e/ou identidade de gênero. Até o momento, ainda não há dados oficiais do governo sobre a quantidade e o perfil dessas solicitações no Brasil.
IHU On-Line – O desenvolvimento de sua dissertação compreendeu uma pesquisa de campo em São Paulo com pessoas exiladas por decorrência da própria sexualidade. O que pode ser destacado dessa aproximação? O que mais lhe marcou?
Vítor Lopes Andrade – Alguns pontos podem ser destacados. O primeiro é que são histórias de muito sofrimento: perseguição da própria família, atentados e ameaças psicológicos e físicos, discriminação e perseguição da sociedade, prisões etc. Um segundo ponto é que muitas vezes os(as) solicitantes não revelam que o motivo da perseguição em seus países de origem era a orientação sexual, em especial quando possuem algum outro motivo para justificar o pedido de refúgio. Isso acontece pela vergonha que sentem, na maior parte das vezes, de sua própria sexualidade, devido ao estigma, à discriminação e à perseguição sofridos previamente. Ademais, muitas vezes não sabem se podem confiar nas autoridades policiais brasileiras, uma vez que eram perseguidos(as) justamente pela polícia em seus países de origem.
Outro ponto a se destacar é que, diferentemente do que acontece com outros(as) solicitantes de refúgio e imigrantes, aqueles(as) cuja motivação é a orientação sexual no geral não contam com o apoio da família (que normalmente é também quem persegue, além do Estado e da sociedade de uma maneira geral) e dos conterrâneos(as) que são heterossexuais. Há, portanto, um constante medo de continuarem a ser perseguidos(as) pelos conterrâneos(as), uma vez que estão no Brasil. Isso faz com que muitos(as) continuem a manter suas orientações sexuais escondidas.
Sem dúvida, o Brasil, apesar de possuir uma sociedade homo-lesbo-bi-trans-fóbica, apresenta uma realidade muito mais favorável para as sexualidades não heterossexuais do que os países de origem como Nigéria, Camarões e Serra Leoa, por exemplo. A questão central, portanto, é que precisa haver um maior diálogo entre a comunidade LGBTI+ brasileira e os(as) solicitantes de refúgio por motivos de orientação sexual, assim como mais ações voltadas especificamente para esse público, a fim de que uma rede de apoio seja estabelecida para essas pessoas, tornando possível que elas deixem de viver através da lógica do silêncio e da invisibilidade, se esse for o desejo delas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Vítor Lopes Andrade – É importante salientar que, no geral, o Brasil tem mostrado boas práticas no que diz respeito ao processo de decisão do status de refugiado(a) – que se chama elegibilidade – nos casos concernentes à orientação sexual e identidade de gênero. O governo brasileiro se pauta, majoritariamente, pelo critério autodeclaratório da sexualidade, que se baseia na análise da narrativa do(a) solicitante, não se utilizando de “provas” ou “testes” que violam os direitos humanos, como acontece em outros países.
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A necessidade de amparar refugiados por orientação sexual. Entrevista especial com Vítor Andrade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU