O Evangelho da Revolução, retrato impactante da América Latina. Artigo de Frei Betto

Imagem: Adolfo Pérez Esquivel

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04 Dezembro 2025

"O filme se destaca especialmente na forma como articula política e espiritualidade. Ao tratar a luta revolucionária como uma espécie de evangelho, boa-nova, anúncio de um mundo possível, a narrativa cria um campo fértil para a reflexão sobre ética, solidariedade e compromisso coletivo", escreve Frei Betto

Frei Betto é escritor, autor da tetralogia sobre os evangelhos: Jesus Militante (Marcos), Jesus Rebelde (Mateus), Jesus Revolucionário (Lucas) e Jesus Amoroso (João), editados pela Vozes.

Eis o artigo.

O filme O Evangelho da Revolução, documentário de François-Xavier Drouet sobre o impacto político das Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação na conjuntura da América Latina, é uma obra de arte surpreendente. Longe de aderir ao panfleto fácil, a obra aposta em uma narrativa que mistura rigor documental, ousadia estética e uma dimensão profundamente humana para revisitar momentos de lutas revolucionárias em El Salvador, Brasil, Nicarágua e México. O resultado é um filme vigoroso, capaz de dialogar com quem viveu períodos de luta armada da segunda metade do século XX e o sentido bíblico da palavra “revolução” para camadas empobrecidas motivadas pela fé cristã.

Um dos aspectos mais positivos do filme é sua capacidade de iluminar personagens históricos — líderes políticos, pensadores, militantes anônimos — sem reduzi-los a caricaturas. A câmera acompanha cada figura com respeito, revelando contradições, medos, dúvidas e conquistas. Em vez de construir heróis idealizados, o filme apresenta pessoas reais, cuja força política nasce justamente da vulnerabilidade e da coragem cotidiana. Esse olhar humanizador fortalece a compreensão de que processos transformadores são feitos por gente comum: pobres, jovens, pessoas movidas por ética, empatia e um profundo senso de justiça.

A direção aposta numa montagem engenhosa, que costura materiais de arquivo, depoimentos e registros históricos simbólicos. O ritmo é firme, mas nunca atropelado: o espectador é conduzido a refletir enquanto as imagens se desdobram com o mesmo ritmo das lutas populares por libertação. O filme sugere, sem didatismo, que a história é, por vezes, cíclica — e que os anseios por transformação retornam sempre que a sociedade se vê diante da desigualdade e da violência estrutural.

A fotografia é outro destaque. Há um cuidado quase litúrgico com a luz: rostos tristes de pessoas oprimidas iluminados por uma árdua esperança; montanhas silenciosas sinalizando horizontes utópicos; depoimentos que evocam coragem e resistência. Essa estética confere ao filme uma aura poética, como se cada quadro fosse uma tentativa de captar não apenas fatos, mas o espírito de uma época. A beleza visual nunca é gratuita, sustenta a mensagem central de que a revolução também é feita de imaginação, sensibilidade e amor.

O filme se destaca especialmente na forma como articula política e espiritualidade. Ao tratar a luta revolucionária como uma espécie de evangelho, boa-nova, anúncio de um mundo possível, a narrativa cria um campo fértil para a reflexão sobre ética, solidariedade e compromisso coletivo. A revolução não aparece como um mero gesto de violência, mas como opção paciente e comunitária em sociedades e contextos que suprimiram todas as vias pacíficas e democráticas. Esse enquadramento amplia o horizonte do espectador, que é convidado a enxergar a luta por transformação social como prática de cuidado, esperança e fé.

O Evangelho da Revolução conecta passado e presente, traçando paralelos entre antigos ciclos de opressão e os desafios atuais, como a expansão do fundamentalismo evangélico e a inviabilidade da via revolucionária. Não se prende ao lamento: evidencia conquistas, aprendizados e, sobretudo, a persistência de pessoas que continuam acreditando na dignidade humana como base de qualquer mudança. Esse movimento dá ao público uma sensação de continuidade histórica, como se cada gesto de resistência fosse parte de uma longa corrente.

O Evangelho da Revolução é, portanto, uma obra luminosa. Seu mérito maior talvez seja lembrar que, mesmo em tempos de desencanto, há vidas, ideais e experiências que insistem em apontar outro caminho. O filme celebra a coragem dos que ousaram sonhar e demonstra que a revolução, antes de ser uma proposta política, é um modo de caminhar à luz da fé e de realizar o projeto de Deus na história.

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