"Com sua conclamação em favor do empobrecidos, com sua crítica corajosa ao sistema vigente que produz morte e ameaça as bases ecológicas que sustentam a vida, por seu apaixonado amor e cuidado da natureza e da Casa Comum, pelos incansáveis esforços para mediar guerras em função da paz, emergiu com um grande profeta que anunciou e denunciou, mas sempre suscitando a esperança de que podemos construir um mundo diferente e melhor. Com isso compareceu como um líder religioso e político respeitado e admirado por todos", escreve Leonardo Boff, filósofo e ecólogo, autor de A Terra na palma da mão (Vozes, 2016) e Cuidar da Casa Comum (Vozes, 2024).
Todo ponto de vista é a vista de um ponto, afirmei certa vez. O meu ponto de vista acerca do Papa Francisco é aquele latino-americano. O próprio Papa Francisco se apresentou como “aquele que vem do fim do mundo” isto é, da Argentina, do extremo Sul do mundo. Este fato não é sem relevância, pois nos oferece uma leitura diversa de outras, de outros pontos de vista.
A escolha do nome Francisco, sem antecedentes, não é fortuita. Francisco de Assis representa um outro projeto de Igreja cuja centralidade residia no Jesus histórico, pobre, amigo dos desprezados e humilhados como os hansenianos com os quais foi morar. Pois esta é a perspectiva assumida por Bergoglio ao ser eleito Papa. Quer uma Igreja pobre para os pobres. Consequentemente despoja-se das vestes honoríficas, da tradição dos imperadores romanos, bem representadas pela mozzeta, aquela capinha branca ornada de joias, símbolo do poder absoluto dos imperadores e incorporada às vestimentas papais. Recusou-a e a deu ao secretário com recordação. Veste um simples manto branco com a cruz de ferro que sempre usou. Viveu na maior simplicidade (o Papa não veste prada) e, sem cerimônia, quebrou ritos para poder estar perto dos fiéis. Isso seguramente escandalizou a muitos da velha cristandade europeia, acostumada à pompa e à glória das vestimentas papais e em geral dos prelados da Igreja. Cabe recordar que tais tradições remontam aos imperadores romanos, mas que não têm nada a ver com o pobre artesão e camponês mediterrâneo de Nazaré.
Surpreendentemente apresenta-se, primeiro, com bispo local, de Roma. Escolheu o nome Francisco porque São Francisco de Assis é o “exemplo por excelência do cuidado e por uma ecologia integral vivida com alegria e autenticidade (Laudato Si', n. 10) e que chamava a todos os seres com o doce nome de irmão e de irmã. Não quis morar num palácio pontifício, mas numa casa de hóspedes, Santa Marta. Comia na fila como todos os demais e, com humor, comentava: assim é mais difícil que me envenenem.
A centralidade de sua missão foi colocada na preferência e no cuidado dos pobres especialmente dos migrantes. Disse com honradez: “vocês europeus estiveram primeiro lá, ocuparam suas terras e riquezas e foram bem recebidos. Agora eles estão aqui e não estão dispostos a recebê-los”. Com tristeza constata globalização da indiferença.
Pela primeira vez na história do papado, o Papa Francisco recebeu, por várias vezes, os movimentos sociais mundiais. Via neles a esperança de um futuro para a Terra, porque a tratam com cuidado, cultivam a agroecologia, vivem uma democracia popular e participativa. Repetiu-lhes muitas vezes o direito que lhes é negado, os famosos três T's: Terra, Teto e Trabalho. Devem começar de lá onde estão: na região, pois aí se pode construir uma comunidade sustentável. Com isso legitimou todo um movimento mundial, o biorregionalismo, como forma de superação da exploração e da acumulação de poucos e com mais participação e justiça social para muitos.
Foi neste contexto que escreveu duas extraordinárias encíclicas: “Laudato si': sobre o cuidado da Casa Comum” (2020), de uma ecologia integral que implica o meio-ambiente, a política, a economia, a cultura, a vida cotidiana e a espiritualidade ecológica. Na outra, na Fratelli tutti (2025, face à degradação generalizada dos ecossistemas, faz a severa advertência: ”estamos no mesmo barco: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva” (n. 34). Com estes textos, o Papa se coloca na ponta da discussão ecológica mundial que vai além da simples ecologia verde e de outras formas de produção sem nunca questionar o sistema capitalista que, por sua lógica, cria acumulação de um lado às custas da exploração do outro, das grandes maiorias.
O Papa Francisco vem da teologia da libertação de vertente argentina que enfatiza a opressão do povo e o silenciamento da cultura popular. Foi discípulo do teólogo da libertação Juan Carlos Scannone que chegou a citar num rodapé da Laudato Si'. Já como estudante e inspirado neste teologia fez para si uma promessa: de toda semana fazer, sozinho, uma visita às favelas (“vilas miseria”). Entrava nas casas, informava-se dos problemas dos pobres e suscitava esperança em todos. Durante anos levou uma polêmica com governo que fazia assistencialismo e paternalismo como políticas do estado. Reclamava dizendo: assim jamais se tirará os pobres da dependência.
O que precisamos é de justiça social, raiz da real libertação dos pobres. Em solidariedade para com os pobres, vivia num pequeno apartamento, cozinhava sua comida, buscava seu jornal. Recusou viver no palácio e usar o carro especial.
Esta inspiração libertadora iluminou o modelo de Igreja que se dispôs a construir. Não um Igreja fechada qual castelo, imaginando-a cercada de inimigos por todos os lados, vindos da modernidade com suas conquistas e liberdades. A esta Igreja fechada opôs uma Igreja em saída rumo às carências existenciais, uma Igreja qual hospital de campanha que acolhe a todos os feridos, sem perguntar-lhes a tendência sexual, a religião ou ideologia: basta serem humanos necessitados.
Papa Francisco não se apresenta como um doutor da fé mas como um pastor que acompanha os fiéis. Pede aos pastores que tenham cheiro de ovelhas, tal a sua proximidade e compromisso com os fiéis, exercendo a pastoral da ternura e da amorosidade.
Talvez nenhum papa na história da Igreja mostrou tanta coragem quanto ele ao criticar o sistema vigente que mata e que produz duas ferozes injustiças: a injustiça ecológica, devastando os ecossistemas e a injustiça social explorando até o sangue a humanidade. Nunca na história houve tanta acumulação de riqueza em poucas mãos. Oito pessoas individualmente possuem mais riqueza que 4,7 bilhões de pessoas. É um crime que brada ao céu, ofende o Criador e sacrifica seus filhos e filhas.
Como pastor mais do que como doutor, sua mensagem é fundada especialmente no Jesus histórico, amigo dos pobres, dos doentes, dos marginalizados e dos oprimidos. Foi assassinado na cruz por um duplo processo, um religioso (ofensas à religião da época e sua afirmação de sentir-se de Filho de Deus) e outro político, pelas forças de ocupação romana.
Não colocava muito o acento nas doutrinas, nos dogmas e nos ritos que sempre respeitou, pois reconhecia que com tais coisas não se chega ao coração humano. Para isso precisa-se de amor, de ternura e misericórdia. Disse, certa feita, uma das frases mais importantes de seu magistério: Cristo veio nos ensinar a viver: o amor incondicional, a solidariedade, a compaixão e o perdão, valores que compõe o projeto do Pai que é o cerne do anúncio de Jesus: o Reino de Deus. Prefere um ateu sensível à justiça social que um fiel que frequenta a igreja mas não tem um olhar para o semelhante sofredor.
Tema recorrente em suas pregações é o da misericórdia. Para o Papa Francisco a misericórdia é essencial. A condenação é só para este mundo. Deus não pode perder nenhum filho ou filha que criou no amor. A misericórdia vence a justiça e ninguém pode impor algum limite à misericórdia divina. Alertava os pregadores o que se fez durante séculos: pregar o medo e infundir pavor do inferno. Todos, por piores que tenham sido, estão sob o arco-íris da graça e da misericórdia divina.
Logicamente nem tudo vale nesse mundo. Mas os que viveram uma vida sacrificando outras vidas e pouco se importando ou até negando Deus passarão pela clínica curadora da graça, na qual reconhecerão suas maldades e aprenderão o que é o amor, o perdão e a misericórdia. Só então a clínica de Deus que não é a antessala do inferno mas a antessala do céu se abrirá para que participem também eles das promessas divinas.
Com sua conclamação em favor do empobrecidos, com sua crítica corajosa ao sistema vigente que produz morte e ameaça as bases ecológicas que sustentam a vida, por seu apaixonado amor e cuidado da natureza e da Casa Comum, pelos incansáveis esforços para mediar guerras em função da paz, emergiu com um grande profeta que anunciou e denunciou, mas sempre suscitando a esperança de que podemos construir um mundo diferente e melhor. Com isso compareceu como um líder religioso e político respeitado e admirado por todos.
Inesquecível é a imagem de um papa caminhando solitário sob chuva fina, na Praça São Pedro em direção da capela de orações para que Deus poupasse a humanidade do coronavírus e tivesse misericórdia dos mais vulneráveis.
O Papa Francisco honra a humanidade e ficará na memória como uma pessoa santa, amável, carinhosa e extremamente humana. É por causa de figuras assim que Deus ainda se tem apiedado de nossas maldades e loucuras e nos mantém vivos sobre sobre esse pequeno e belo planeta.