10 Março 2025
Contra o sexismo dominante no universo religioso, especialistas e religiosas, em parte feministas, ocupam espaços antes restritos a homens. Mas são minoria, e ainda falta muito para que haja igualdade de gênero.
A reportagem é de Edison Veiga, publicada por DW Brasil, 08-03-2025.
Deus, no cristianismo, é uma figura referida no masculino. Jesus é homem. Os apóstolos e todos os que ocuparam e ocupam posições hierárquicas de destaque, assim como a maioria dos pensadores cristãos, também o são. Para a freira agostiniana Ivone Gebara, filósofa e teóloga, historicamente na Igreja "eles precisam das mulheres apenas para estar onde estão, para afirmarem seu poder sobre elas e sobre o mundo".
Autora de As incômodas filhas de Eva na Igreja da América Latina e Vida religiosa: Da teologia patriarcal à teologia feminista, entre outros livros, Gebara é uma das principais expoentes de um grupo crescente no Brasil, o das teólogas feministas. São mulheres que questionam o patriarcalismo, o machismo e a misoginia construídos historicamente pela tradição cristã. Promovem uma interpretação mais inclusiva dos textos bíblicos, lutam por direitos igualitários e cobram uma participação em postos ainda hoje restritos aos homens, como o sacerdócio no catolicismo.
"Acredito que as mulheres são capacitadas para desempenhar todas as funções eclesiásticas, mas cabe a cada instituição a decisão final sobre a distribuição dos cargos oficiais. Não vejo na Bíblia nenhuma base que justifique a diferença de gêneros dentro das instituições religiosas", comenta a antropóloga e historiadora Lidice Meyer Pinto Ribeiro, professora na Universidade Lusófona, em Portugal, e autora de Cristianismo no feminino: A presença da mulher na vida da Igreja.
"O rosto da Igreja é todo ele masculino, sobretudo na hierarquia. Mas as mulheres estamos chegando lá, sobretudo no campo da teologia", afirma a professora na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio) Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e autora de O lugar da mulher, entre outros.
Esse movimento teológico feminino e feminista encontra um anteparo institucional nos últimos anos graças a uma ainda tímida, mas já notável, inclusão de mulheres em cargos institucionais importantes, sobretudo na tradicional Igreja Católica Apostólica Romana. Líder do catolicismo desde 2013, papa Francisco nomeou mulheres para postos na hierarquia do Vaticano outrora somente ocupados por homens.
"No contexto de narrativas androcêntricas dominantes surge a voz profética do papa Francisco que tem promovido participação ativa das mulheres", diz a teóloga e pedagoga Andreia Cristina de Morais, freira da Congregação das Pequenas Missionárias de Maria Imaculada e professora na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Ela enumera os casos mais ilustres: Barbara Jatta dirige os Museus Vaticanos desde 2017, Nathalie Becquart é subsecretária do Sínodo dos Bispos desde 2021, Nuria Calduch Benages tornou-se a primeira secretária da Pontifícia Comissão Bíblica em 2021, Maria Lia Zervino passou a integrar o Dicastério para os Bispos em 2022.
Em 2025, Simona Brambilla foi nomeada primeira prefeita do Dicastério para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, e Raffaella Petrini se tornou a primeira presidente tanto da Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do Vaticano como da Governadoria, respectivamente os órgãos legislativo e executivo da cidade-Estado.
"Representam um sinal de esperança de que a Igreja está refletindo e se abrindo para a importância e valorização efetiva da mulher no âmbito das lideranças eclesiais, de decisões institucionais e da reflexão acadêmica teológica. O papa está abrindo portas, porém para uma verdadeira inclusão das mulheres na Igreja católica, temos ainda um longo caminho a percorrer, para isso será preciso uma real conscientização e um reconhecimento institucional da importância da igualdade de gênero."
No Brasil, foi criada em 2023 a Rede Brasileira de Teólogas, grupo que se dedica a reunir essas pensadoras, produzir e divulgar o "fazer teológico na perspectiva feminista". "Até então, não havia um grupo específico", comenta a teóloga, filósofa e biblista Zuleica Aparecida Silvano, freira da Congregação das Filhas de São Paulo, professora na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e integrante da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.
Ela conta, por exemplo, que recentemente lançou-se no país uma nova tradução da Bíblia com o trabalho de cinco tradutoras – o que envolveu muita reflexão "sobre as atitudes misóginas que encontramos". "Eu, por exemplo, fui a primeira a traduzir textos do Novo Testamento em português do Brasil. Em pleno 2022. É maravilhoso, mas também um absurdo, pois já havia muitas biblistas antes de mim."
Há uma diferença entre teologia feminina e teologia feminista, lembram as pensadoras cristãs. "A teologia feminina é livre de posicionamentos ideológicos. É apenas a leitura do texto bíblico aos olhos femininos, ou seja, uma teologia feita pela mulher. Visto dessa forma, toda teóloga pratica uma teologia feminina, embora nem toda teóloga abrace a teologia feminista", esclarece Ribeiro.
De acordo com Gebara, passou-se a falar de teologia feminina "quando mulheres de diferentes denominações começaram a pensar a teologia masculina e fazer leituras bíblicas publicamente, embora sempre conservando a referência patriarcal". O movimento feminista veio "em meados do século 20", quando algumas mulheres "ousaram" e deram "um passo qualitativamente novo".
"Ao usarem a expressão feminista, queriam marcar que se tratava de algo diferente e que uma revolução de certos conteúdos estava sendo preparada, acompanhando, de certa forma, os movimentos sociais e políticos de emancipação das mulheres."
A diferença, portanto, não estaria apenas nas diferentes abordagens, explica Gebara: "Para as teologias feministas há uma consideração diferente da tradição cristã. Tenta-se buscar os traços ocultos da presença feminina nela presentes, denunciando as muitas formas de violência contra as mulheres, explícitas e implícitas, presentes nos textos bíblicos e teológicos."
"No século passado, tivemos algumas mulheres que sentiram isso mais claramente e começaram a observar esse domínio masculino nas igrejas cristãs, e a combatê-lo", explica a teóloga Tereza Maria Pompeia Cavalcanti, professora aposentada da PUC-Rio. "Então começaram a fazer uma releitura das fontes do cristianismo a partir de uma ótica das próprias mulheres, revelando o quanto a visão masculina e patriarcal influiu nos textos da Bíblia, e o quanto isso era incompatível com uma visão justa de Deus."
"Essa produção intelectual começo a chamar a atenção dos biblistas e teólogos. por exemplo, se Deus é um espírito, portanto não tem corpo, por que chamá-lo sempre no masculino? A leitura bíblica feita por mulheres revelou o quanto a imagem de Deus é sempre apresentada no masculino e o quanto isto acentua a posição subalterna da mulher", conclui ela.
A antropóloga Ribeiro lembra que teólogas mulheres existem desde o princípio do cristianismo – entre os nomes históricos mais notáveis citem-se Hildegard von Bingen (1098-1179), Catarina de Sena (1347-1380) e Teresa d’Ávila (1515-1582) – mas reconhece que atualmente "há uma visibilidade maior da produção e da atuação feminina".
A teologia feminista teria surgido com a publicação, em 1895, de The Woman's Bible, pela ativista americana Elizabeth Cady Stanton (1815-1902) com uma comissão de mulheres.
Na esteira do próprio desenvolvimento do feminismo ao longo do século 20, essa teologia também cresceu. "Atualmente, a teologia feminista tem também se dedicado a questões como aborto, violência sexual e defesa de minorias", conta Ribeiro.
A teóloga Bingemer lembra de outro marco: Beyond God the Father: Toward a philosophy of women’s liberation (Para além do Deus Pai: Por uma filosofia da liberação feminina), publicado em 1973 pela filósofa e teóloga americana Mary Daly (1928-2010).
Mas principalmente no catolicismo, o espaço maior para as mulheres é resultado do Concílio Vaticano 2º, concluído em 1965 — e, evidentemente, que isto também influenciou outras igrejas cristãs. "Apenas a partir dele foi permitido às mulheres ingressarem na área acadêmica teológica [do catolicismo]", explica a pedagoga Andreia Cristina de Morais.
Na Igreja, em 2 mil anos de história, faz somente 60 anos que as mulheres puderam ter acesso oficial aos estudos teológicos. Isto reflete uma visão histórica androcêntrica de Igreja, mas também uma abertura, mesmo que tardia, para a mulher participar das reflexões teológicas da fé e da doutrina.
São os primeiros passos, mas ainda falta muito para haver igualdade de gênero: "Apesar do crescimento das teologias femininas e feministas, o quadro docente das instituições católicas de teologia segue predominantemente masculino", ressalta Morais. Cerca de 80% dos professores deste segmento no Brasil são homens, na maioria padres.
As mulheres, leigas ou religiosas, são a minoria nesses ambientes, e muitas vezes encontram dificuldades em ingressar ou permanecer, por serem pouco reconhecidas como sujeito capaz de contribuir para a construção do saber teológico.