19 Novembro 2024
A porta-voz da CONTIOCAP, Ruth Alipaz, denuncia as agressões aos territórios indígenas na Bolívia pelo plano IIRSA e como a figura de Estado plurinacional tem servido para justificar invasões.
A reportagem é de Carlos Soledad, publicada por El Salto, 15-11-2024.
Em 2018, Ruth Alipaz, como membro da Comunidade de Comunidades Indígenas dos Rios Beni, Tuichi e Quiebey, e atual porta-voz da CONTIOCAP (Coordenadora Nacional de Defesa de Territórios Indígenas Originários Camponeses e Áreas Protegidas), denunciou às Nações Unidas o governo boliviano de Evo Morales por levar adiante um projeto de construção de duas centrais hidrelétricas, o Bala-Chepete, sem realizar a consulta livre, prévia, informada e de boa fé às comunidades que ancestralmente habitam a região e que seriam afetadas pelo deslocamento forçado em razão da inundação de seus territórios.
O projeto hidrelétrico Bala-Chepete respondia às necessidades do plano IIRSA. Em 2000, reuniram-se doze presidentes da América do Sul para lançar a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, IIRSA, como é conhecida popularmente. Sua história nasceu com o objetivo de “superar os obstáculos logísticos e de infraestrutura física da região”(1). Desde então, foram realizadas treze cúpulas sul-americanas em que se avançou na formação da União de Nações Sul-Americanas, UNASUL, constituída em maio de 2008. Segundo os principais estudos disponíveis em 2010, para o analista Raúl Zibechi, um dos objetivos dessa integração foi “aproveitar os recursos naturais dos países sul-americanos para os mercados norte-americanos e europeus”.
No tratado constitutivo da UNASUL, a integração e a união sul-americanas baseiam-se em princípios como participação cidadã e pluralismo, bem como na redução das assimetrias e na promoção do desenvolvimento sustentável, através de “canais eficazes de comunicação, consulta e discussão nas diferentes instâncias da UNASUL” (2). No entanto, esse ideário “está muito distante das práticas executadas pelo governo do Movimento ao Socialismo (MAS), liderado pelo ex-presidente Evo Morales até 2019 e, a partir de 2020, por Luis Arce”, afirma Ruth Alipaz, que conhecemos em maio, em Valência, Espanha, como parte de uma turnê de denúncia pela Europa organizada pelas ONGs Aliança pela Solidariedade e Action Aid. Desta vez, ela falou com El Salto sobre os efeitos do IIRSA em sua região e sobre a armadilha em que se transformou o Estado Plurinacional boliviano.
Como você se tornou defensora do território?
Quando já não pude suportar como os poderes empresariais e estatais ameaçavam nossa existência como povo indígena. Em 2009, em meu território, empresários madeireiros vieram à minha comunidade oferecer uma estrada asfaltada, ofereciam motosserras para que cortássemos nossas florestas e pagássemos a nova estrada com madeira. Era como: te dou máquinas para cortar árvores e você paga com madeira. Trabalho indigno, humilhante, para seus próprios interesses. Isso me levou a liderar a defesa do território.
Naquela ocasião, propunham a concessão de 31 mil hectares de floresta do meu território. Então, apresentamos outra ideia de aproveitamento para que essa floresta permanecesse gerando benefícios. Não seria como a madeira, que gera dinheiro muito mais rápido, mas propusemos turismo especializado em observação de aves. Após muita luta, a floresta continua de pé. No longo prazo, o objetivo de proteger a área foi alcançado; já são 15 anos em que podemos continuar desfrutando da floresta e da água protegida, porque a área foi zonificada em nosso Plano de Vida como Zona 1, Refúgio Turístico e Reservatório de Água. Mas senti muita indignação e raiva de quererem nos atropelar. Defender o território significa superar barreiras pessoais e coletivas.
Como segunda ameaça, quiseram construir duas centrais hidrelétricas como parte do IIRSA. Entre 40% e 50% do meu território seria afetado, seria inundado. Só a ideia de perder o território, a memória, a sua raiz, a sua origem e ponto de partida... Não dá para ficar em silêncio. Por que nos tornamos defensoras? Porque somos obrigadas, nos vemos forçadas a lutar. É estar em constante alerta. Você se torna aquela pessoa incômoda, até mesmo dentro do seu território, porque te veem como alguém que se opõe ao desenvolvimento, alguém malvista pelo Estado e pelas empresas. Não é algo que queremos. Não se planeja, é uma responsabilidade. Sentimos o compromisso de defender a vida, a água e o território.
Como é o seu povo e qual é a relação com o Estado boliviano?
Meu povo está localizado no noroeste do departamento de La Paz, na região amazônica, dentro do Parque Nacional Madidi, uma área que, em 2018, foi catalogada como uma das áreas protegidas mais megadiversas do mundo devido à sua notável biodiversidade em termos de espécies. Somos um povo chamado San José de Uchupiamonas, nome dado por conta da colonização. Nós, a nação Uchupiamona, vivemos no vale do rio Tuichi desde sempre; éramos nômades e nos deslocávamos de um lugar a outro ao longo das margens do rio, em diferentes momentos, dentro do nosso território.
Atualmente, vivem permanentemente entre 60 e 70 famílias, cerca de 300 ou 400 pessoas. É um povo rodeado pela floresta amazônica, nas últimas regiões montanhosas dos Andes. É uma cultura que mantém tradições, saberes, espiritualidade, e lugares sagrados. A juventude ainda se interessa em aprender sobre música, danças, e as datas dos rituais. Assim continuamos, após 408 anos do nosso encontro com os invasores em 1616, e depois fomos reduzidos a uma missão dos franciscanos. Estamos aqui e conseguimos preservar nossa cultura.
A relação com o Estado sempre foi de abandono e esquecimento. Diante disso, buscamos maneiras de sobreviver como cultura. Nos anos 1990, começamos a explorar o turismo comunitário para evitar nosso desaparecimento e como resposta ao boom da extração de madeira na região. Procuramos alternativas que nos permitissem viver, continuar existindo como cultura, como povo indígena. Na Bolívia, em geral, todos os povos sempre foram relegados, discriminados e ignorados. Mas conseguimos sobreviver ao longo do tempo com nossos próprios recursos, saberes e meios de vida.
Quando começamos a ter alguma relação com o Estado, foi marcada por abusos. Nos últimos 18 anos, com a luta pelo poder e o governo que se dizia alavancado pelos movimentos sociais, esperávamos uma mudança nesse tratamento, mas isso não se concretizou. A relação com o Estado continuou sendo de luta e defesa contra o poder empresarial protegido pelo Estado e contra o próprio Estado, que segue ignorando nossa existência e violando nossos direitos.
Nunca houve uma relação equilibrada para coordenarmos e planejarmos juntos, segundo nossas próprias formas de vida. Sempre foi uma relação de imposição. O Estado impõe seu poder sobre os povos indígenas, atropela em todos os níveis: político, econômico, educacional e judicial. Ainda não existe uma relação que se preocupe em respeitar nossas formas de vida como povos.
Os indígenas somos vistos como obstáculos para os planos desenvolvimentistas do Estado boliviano. Por exemplo, meu povo atualmente está se defendendo do Estado, tentando aprovar uma resolução para evitar que nosso rio Tuichi seja completamente concedido para a atividade mineradora, sendo que já está 98% concedido para explorações petrolíferas. Que tipo de relação pode haver com o Estado diante dessas ameaças? O que existe são imposições. E os governos se justificam dizendo que há prioridades nacionais para a economia do país. Então, se você se opõe, de alguma forma, está “violando” leis que são anticonstitucionais. Nós, que vivemos ancestralmente ali, nos tornamos obstáculos para que o país supostamente se desenvolva. Os povos indígenas continuam se empobrecendo, porque nos tiram tudo. Desaparecemos como cultura e somos obrigados a migrar, porque já não há meios de vida. Essa é a relação que existe com o Estado.
Qual foi o papel do Movimento ao Socialismo?
O MAS é um partido político que nasceu dos setores populares para reivindicar direitos e permitir que os povos conduzissem um processo de transformação de um Estado republicano para um Estado plurinacional. Assim, cada povo originário poderia viver com respeito, dignidade e harmonia em seu território, sem ser discriminado por pertencer a outra cultura. Mas, tristemente, o modelo republicano prevaleceu, e o Estado plurinacional ficou apenas no papel. Em quase 18 anos de Estado plurinacional, pouco se consolidou, principalmente as normas que permitiriam seu exercício. Além disso, o governo continuou gerando obstáculos a esses direitos, nos estagnando na reivindicação, em vez de permitir que os exercêssemos.
Há vozes de outras linhas políticas que, diante das próximas eleições, afirmam que o problema é ter um Estado plurinacional, que seria um Estado falido que gera crise. Mas ainda nem conseguimos consolidá-lo porque não nos é permitido pelo Estado. Não houve uma mudança real para os povos originários.
O MAS se tornou uma decepção para os povos indígenas e os setores populares, lamentavelmente. Para mim, feriu a credibilidade que poderíamos ter consolidado como povos indígenas. Do ex-presidente Morales foi vendida uma imagem de defensor da mãe terra, de salvador dos povos, mas isso ficou apenas para a imagem internacional. O que ele realmente fez foi negociar com os empresários, com setores da direita que violam nossos direitos, e, por fim, permitir o plano IIRSA, que garante a destruição dos povos. Assim que a nova constituição foi inaugurada, houve uma repressão muito forte contra os irmãos indígenas do TIPNIS, que se opunham à construção de uma estrada que dividiria seu território em duas partes para conectar o norte ao centro do país, ou seja, colonizá-lo (5).
Quais têm sido os efeitos do IIRSA na região?
O IIRSA reconfigurou o território de vários países, mas particularmente da Bolívia, por estar no centro da América do Sul, sendo um dos mais afetados. Evo Morales começou sua implementação com a estrada do TIPNIS, que foi o primeiro projeto, gerando sua defesa em 2010, quando houve uma marcha que foi gravemente reprimida em 2011. O IIRSA também previa a construção de 22 usinas hidrelétricas para ser o centro energético da América do Sul, como Evo Morales classificou. O Bala-Chepete estava localizado na bacia do rio Beni, na minha região, afetando o território de seis nações indígenas, o que levou à denúncia na ONU.
Em 2016 enfrentamos uma luta árdua em nosso território com nossas 18 comunidades, mais de 5.000 indígenas que seriam deslocados de seus territórios. Este projeto não havia passado por consulta livre, prévia e informada, por isso levamos a questão ao Fórum Permanente para as Questões Indígenas das Nações Unidas. O plano IIRSA violou muitos direitos na Bolívia, como no projeto Rositas, em território guarani. Uma das razões disso é que as Nações Unidas promovem esses projetos como energia limpa e renovável, mas não consideram os graves impactos para os povos indígenas, como inundações que aceleram a mineração, abrem caminhos e devastam o território.
O plano IIRSA ainda está vigente porque há muitas leis que priorizam esses projetos, como a lei SPIE, que os declara de prioridade nacional. A Mancomunidad, unidade de nossos povos acima das divisões políticas territoriais impostas, tem enfrentado esses projetos que queriam inundar cinco rios de uma só vez, deslocando mais de 5.000 indígenas. No entanto, conseguimos expulsar, em 2016, a empresa italiana Geodata, que realizava os estudos. Em 2021, um novo convênio foi assinado com organizações ligadas ao governo para a retomada desse projeto. Pela segunda vez, conseguimos expulsá-los, desta vez com a sociedade civil, parte da igreja, jornalistas e outra organização indígena. Enquanto essas normas que declaram os projetos como prioridade nacional não forem revogadas, elas continuarão sendo uma ameaça.
A CONTIOCAP surgiu no final de 2018 justamente por causa de todas essas violações geradas pelo plano IIRSA e pelo extrativismo. Unimos 12 resistências a nível nacional das quatro macro-regiões, defensores indígenas de nossas áreas protegidas que se sobrepõem a nossos territórios. Defendemos a vida, não apenas para nós, mas também para o resto da sociedade e outras formas de vida. Atualmente já reunimos cerca de 40 resistências, porque a devastação tem se intensificado, principalmente com a mineração. Até mesmo incêndios provocados para apropriação de territórios são uma prática respaldada pelo Estado boliviano, com o objetivo de sustentar um modelo de agronegócio e pecuária que, em 2019, causou o desmatamento e incêndios em mais de cinco milhões de hectares de florestas na Chiquitania e na Amazônia, e esse número cresce a cada ano.
Atividades extrativistas em áreas protegidas são promovidas, descumprindo a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas originários e camponeses em todo o território nacional. Os mineiros são a base política do governo, e os chamados "interculturais" também fazem parte da aliança com o setor do agronegócio.
O que foi conquistado para os povos originários desde que o Estado boliviano se constituiu como Estado Plurinacional?
Em nossa análise, o Estado Plurinacional serviu para justificar invasões a territórios protegidos. O MAS utilizou a demanda plurinacional de forma clientelista para se manter no poder. É necessário lutar muito para preservar e redirecionar o caminho do Estado Plurinacional para alcançar justiça para os povos. Mas temos que fazer isso por nós mesmos, sem interferências.
Todas as lutas são importantes quando se trata de preservar a vida. Desde a colonização, temos lutado pela libertação, contra a escravidão, e conseguimos sobreviver e transcender até o século XXI. Na década de 1990, os povos indígenas da Bolívia realizaram uma luta muito forte pelo território e pela dignidade, para sermos reconhecidos como existentes neste país e pelo direito ao território. Finalmente, coube a Evo Morales convocar uma constituinte para aprovar a nova figura do Estado Plurinacional, que, embora não tenha sido aprovada como foi originalmente concebida, representou um avanço.
A constituição reconheceu o território, a justiça aplicada pelos povos originários e camponeses, o direito de realizar atividades econômicas e a autonomia. Contudo, isso tem ficado no papel, enquanto os megaprojettos e planos extrativistas se intensificam nos últimos anos. O plano IIRSA é o principal exemplo, com o objetivo de se tornar o centro energético da América do Sul, baseado em explorações petrolíferas, mineração, megainfraestruturas e colonização. Essas são as grandes ameaças aos territórios contra as quais estamos lutando.
Nesse contexto, nós, como CONTIOCAP, representamos as diferentes organizações que simbolizam a plurinacionalidade e a luta dos povos. Não tomamos decisões pelos territórios, mas ajudamos a defender todos os nossos irmãos e irmãs nas quatro macro-regiões da Bolívia contra essas ameaças. A mineração é uma das armas mais letais para extinguir os povos indígenas, tanto fisicamente quanto culturalmente. Estão nos transformando, nos tornando mineradores, fazendo-nos cooperativas mineradoras. Transformam tudo em monocultivos e mineração, destruindo o solo, o ar, a água, contaminando e transformando tudo. As pessoas se preocupam apenas em ganhar dinheiro, e os valores comunitários se perdem. Soma-se a isso a questão da transição energética, que demanda mais mineração. Para nós, a mineração é o mais letal que enfrentamos como povos indígenas.
[1] História do IIRSA
[2] I.I.R.S.A. (iirsa.org) - Objetivos
[3] Acusações contra Evo por queimar territórios: indígenas denunciam Evo na ONU por incêndios florestais, extrativismo e ausência de consulta - ANF Agência de Notícias Fides Bolívia
[4] TIPNIS: explicação sobre a estrada
[5] Evo reprime marcha indígena
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“A mineração é uma das armas mais letais para extinguir os povos indígenas”. Entrevista com Ruth Alipaz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU