05 Outubro 2024
"A chave para a transformação real é uma Igreja que não apenas reconhece seus erros, mas que também se abre para mudanças profundas", escreve Michelle Gonçalves, articuladora da Rede Caminho de Esperança, e Ricieri Benedetti, assessor de Campanhas da Casa Galileia.
Na Basílica de São Pedro, coração do catolicismo mundial, o Papa Francisco e representantes da alta hierarquia da Igreja escutaram o testemunho de uma vítima de abusos sexuais cometidos por clérigos. Em seguida, uma mulher religiosa e outra leiga relataram a dor e a esperança de trabalharem na acolhida aos migrantes e junto às vítimas dos horrores das guerras. Este ato penitencial antecede a programação da Assembleia do Sínodo dos Bispos, que acontece no Vaticano entre os dias 02 e 27 de outubro, e marca um percurso da Igreja Católica nos últimos três anos.
Motivada pelo próprio Papa Francisco, fiéis e líderes de todo o mundo foram convidados a refletir sobre os desafios e possibilidades de tornar a Igreja mais sinodal, ou seja, uma Igreja que não se enclausura em estruturas caducas, mas que se permite escutar e responder aos sinais dos tempos, comprometendo-se com a promoção da justiça e da dignidade de todas as pessoas.
Os testemunhos dolorosos relatados acima foram seguidos por pedidos de perdão, proferidos por cardeais da Igreja. “Peço perdão e sinto-me envergonhado”, diziam diante de cada situação relatada, admitindo que a igreja segue sendo omissa em diversos abusos e violências, sem “reconhecer, muitas vezes, a dignidade da pessoa humana, discriminando e explorando, especialmente os povos indígenas, sendo cúmplices de sistemas que favorecem a escravatura e o colonialismo”.
Em sua reflexão final, o próprio Papa Francisco afirma que a cura desses pecados começa pela confissão, e que era preciso chamar, então, pelo nome cada um dos sete pecados relatados. Pediu perdão aos jovens e diante de mulheres e outras pessoas leigas confessou os pecados que, dentro e fora de seus templos, a Igreja perpetua em inúmeras situações de violência, abuso, racismo, machismo e indiferença. Pecados que sustentam estruturas perversas de negligências, omissões, conflitos, guerras, discriminações, e que fortaleceram, ao longo da história, diversos cenários de morte na vida do povo, especialmente dos mais pobres, embora estes sigam sendo referidos pela própria igreja como uma de suas opções preferenciais.
O que foi confessado, entretanto, violou e segue violando a dignidade de crianças, adolescentes, jovens e pessoas vulneráveis. São inúmeros corpos, trajetórias e histórias marcados pela perversidade que desfigura sonhos e interrompe projetos de vida. Corpos atravessados pela tristeza de ter vivido tantas violências, pela dor dos abusos sexuais, abusos de poder, abuso psicológico, da omissão e do silenciamento em espaços onde se busca esperança e acolhimento.
A dor e o sofrimento trazidos pelos testemunhos das vítimas, que tiveram suas vidas devastadas pelo abuso de poder e omissões, são palpáveis. Os corpos e histórias marcados pela violência foram vistos e ouvidos diante da mais alta hierarquia da Igreja. Os pedidos de perdão e o reconhecimento público das falhas em proteger os mais vulneráveis, embora muito significativos e importantes, só terão verdadeiro valor se forem acompanhados de ações concretas que rompam com as engrenagens de poder que permitiram e seguem permitindo esses abusos.
O Papa Francisco destacou que a confissão é o primeiro passo para a cura, no entanto é impossível ignorar a contradição entre o que diz o Pontífice e a realidade de uma igreja que ainda resiste às mudanças estruturais necessárias. Historicamente, a Igreja Católica tem sido criticada por suas lentas reações diante das atrocidades cometidas dentro de suas estruturas, particularmente no que diz respeito aos abusos sexuais. Ao longo dos anos, assistimos a um crescente número de escândalos que expuseram a negligência institucional e a proteção de agressores em detrimento das vítimas.
A chave para a transformação real é uma Igreja que não apenas reconhece seus erros, mas que também se abre para mudanças profundas. Se a igreja está disposta a mudar, o Sínodo sobre a Sinodalidade é uma oportunidade única para que ela não apenas se arrependa, mas indique concretamente quais serão os passos urgentes e os mecanismos necessários para evitar que esses e outros pecados continuem sendo praticados. Este Sínodo oferece à Igreja a oportunidade de se comprometer com essa renovação. Ele propõe um modelo de escuta ativa, onde os fiéis – incluindo aqueles que se sentem excluídos – possam participar ativamente nas decisões eclesiais.
A celebração penitencial foi um rito importante na história da Igreja. Mas o pedido de perdão e reconciliação que a Igreja espera alcançar demandam um compromisso concreto e ousado para reformar suas estruturas e práticas que, em muitos lugares, continua perpetuando esses pecados. Entre as dores e a esperança com o presente e o futuro da Igreja, nos questionamos se o reconhecimento de todas essas culpas, as cabeças baixas e envergonhadas dos cardeais e o pedido de perdão diante da humanidade, realmente abrirão caminhos para estruturas eclesiais mais justas, acolhedoras e que respeitem a dignidade de todas as pessoas.
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A Igreja Católica que confessa pecados precisa ser também a que transforma as estruturas. Artigo de Michelle Gonçalves e Ricieri Benedetti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU