05 Outubro 2024
"O Papa Francisco está bem ciente das graves culpas de uma parte de sua Igreja; a ponto de colocar o tema no centro deste Sínodo Geral dos Bispos, centrado precisamente nas questões candentes da colegialidade, da sinodalidade, de uma participação correta de todos (levando em conta os diferentes ministérios e carismas) na missão compartilhada", escreve o sociólogo italiano Franco Garelli, em artigo publicado por La Stampa, 03-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É uma Igreja penitente que celebrou uma vigília em São Pedro na noite de terça-feira em preparação da última etapa do Sínodo dos Bispos, que começou ontem no Vaticano. E muitos devem ter se perguntado por que houve um novo mea culpa eclesial antes de um evento (um mês de orações, encontros, discernimento) dedicado a como manter a catolicidade unida, como evitar a fragmentação interna, como favorecer a inculturação da fé cristã nos vários continentes sem dispersar as raízes comuns; em outras palavras, a como evitar - nesse ramo do cristianismo - que o 'eu' das igrejas nacionais leve vantagem sobre o 'nós' da igreja universal.
Essa imagem de uma Igreja que (multiplicando a Quarta-feira Santa) asperge sua cabeça com cinzas não é um tique pessoal do Papa Francisco; nem é um legado que deriva dos dois predecessores que primeiro expuseram os pecados da Igreja em praça pública (Bento XVI, mas especialmente o Papa Wojtyla). Tampouco se pode dizer que essa nova autodenúncia de Bergoglio esteja ligada às duríssimas acusações que ele recebeu (como chefe da Igreja de Roma) em sua recente visita à Bélgica, pela extensão dos crimes cometidos pelo clero pedófilo e pela ignava das autoridades religiosas em lidar com eles. A propósito, isso não impediu (como Domenico Agasso nos contou no La Stampa) que mais de 40.000 belgas recebessem o Papa com alegria no estádio de Bruxelas, expressão, portanto, de uma multidão que também perdoa, diante de um establishment apenas julgador.
O Papa Francisco está bem ciente das graves culpas de uma parte de sua Igreja; a ponto de colocar o tema no centro deste Sínodo Geral dos Bispos, centrado precisamente nas questões “quentes” da colegialidade, da sinodalidade, de uma participação correta de todos (levando em conta os diferentes ministérios e carismas) na missão compartilhada. Porque suas convicções são ao mesmo tempo simples e desarmantes. Não há renovação do barco de Pedro se não houver capacidade de conversão, se não houver retorno ao evangelho, sem mudança interior. Somente dessa forma as estruturas, as soluções organizacionais e as relações entre as diferentes “almas” eclesiais poderão responder mais à lógica do serviço do que à do poder.
É o clericalismo, acima de tudo, que preocupa o Papa, cuja advertência fixa é que “os clérigos não são os chefes, mas os pastores”; assim como a Igreja não é a senhora, mas a pastora/mãe. Portanto, sinodalidade significa dar aos leigos o papel que lhes cabe, permitindo que as mulheres contem na Igreja, justamente elas, que por tempo demais foram mantidas mudas e subservientes, especialmente na vida consagrada. Mas a luta contra o clericalismo é apenas um primeiro passo para implementar a sinodalidade.
Na linguagem eclesiástica, “sinodalidade” significa uma “Igreja-povo de Deus” que realiza concretamente seu ser comunhão, caminhando juntos, reunindo-se em assembleia, participando ativamente (com todos os seus membros) de sua missão no mundo. Por um lado, há a busca por uma “forma-igreja” aliviada do peso hierárquico e centralizador do passado; pelo outro, percebe-se da demanda por participação vinda de baixo um sinal dos tempos capaz de animar uma realidade humana e religiosa que tenha um mandato unitário a cumprir no mundo. Resulta disso que essas aberturas que estão ocorrendo no catolicismo estão no centro de várias tensões. É a Igreja que está se secularizando (essas são as acusações dos grupos mais ligados a uma certa visão da tradição), corroendo o poder e a responsabilidade que o próprio Deus teria entregue às autoridades religiosas? Ou é uma Igreja que, embora mantendo sua unidade básica, embora reconhecendo a primazia de Pedro, agora considera todos os seus membros como pessoas adultas na fé, abrindo-se para as instâncias participativas hoje difundidas em toda parte? Esse é o dilema básico que paira sobre este Sínodo da Igreja universal.
O que está em jogo é realmente relevante. Como manter a unidade em uma Igreja composta por diferentes sensibilidades e visões, na qual coexistem igrejas nacionais que enfrentam problemas que outras igrejas semelhantes não percebem ou que enfrentariam de forma diferente? Ou como manter unidas realidades eclesiais que, nos temas dos direitos individuais, têm posições de vanguarda diante de outras igrejas radicadas em contextos humanos mais tradicionais? E, além disso, como se confrontar e decidir dentro da catolicidade? O Papa Francisco é indômito ao sustentar que é bom que tudo seja discutido na Igreja, que todos expressem sua opinião, mesmo reiterando que não se trata de uma assembleia parlamentar, com maiorias e minorias alinhadas umas contra as outras, mas de lugares de confronto onde o Espírito “atua”. Mas até onde pode ir o confronto eclesial, tanto no Sínodo dos Bispos em geral quanto nas muitas assembleias em que clérigos e fiéis leigos são chamados a participar nas Igrejas locais? Sobre quais temas e em quais momentos essas assembleias podem ter um caráter deliberativo e não apenas consultivo?
A experiência sinodal, portanto, coloca a Igreja em um campo aberto, o que, no entanto, não parece perturbar muito o Pontífice. As divergências podem ser superadas se o espírito de comunhão prevalecer, se a escuta mútua prevalecer; se a riqueza de caminhar juntos for descoberta. Além disso, ele assumiu para si algumas questões importantes já debatidas em Sínodos anteriores (como o diaconato feminino, as relações mútuas entre religiosos e bispos, as reformas estruturais na Igreja e talvez até mesmo o sacerdócio feminino), para pedir a grupos de especialistas mais estudos e reflexões que depois possam enriquecer o debate eclesial.
Mas a suficiente serenidade com que o Papa encara essas dinâmicas parece ter outro fundamento: está enraizada no significado que ele atribui ao seu pontificado. Na sua opinião, ainda não é o momento para a Igreja tomar grandes decisões, mais plausíveis talvez com um pontífice menos avançado na idade e depois que “alguém” tenha preparado o terreno. Aqui está, o papel de Francisco para a renovação da Igreja parece justamente este: cultivar a vinha do Senhor, iniciar “processos” - como ele gosta de dizer - que possam prefigurar novos desenvolvimentos e horizontes, dar passos a frente que levem todos a se expor para além das cercas, mas sem produzir rupturas irreparáveis. Talvez cultivando a ideia de que nada será como antes.
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O 'mea culpa' do Papa e da Igreja ao feminino. Artigo de Franco Garelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU