Padre Júlio, o incansável Lancellotti das Ruas, resiste contra o PL da Fome. Artigo de Gabriel Vilardi

Padre Júlio Lancellotti | Foto: Lucas Weber/BdF

29 Junho 2024

Tal como o padre paulistano, muitos outros insistem em engrossar as fileiras dessa luta – que às vezes parece inglória – por justiça social, por meio das Pastorais do Povo de Rua, do MenorCarcerária, da Criança, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), para responder com suas vidas que a revolução do amor resiste. Mesmo que seus membros estejam cada vez mais envelhecidos e sem apoio das paróquias e da hierarquia, essa é a face mais bela de um seguimento cristão consciente e comprometido com a sua vocação de batizado e batizada. E fúria higienista alguma será suficiente para calar esses Lancellottis que “vieram para incomodar”. 

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Eis o artigo.

“Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João/ É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/ Da dura poesia concreta de tuas esquinas”, cantou certa vez Caetano Veloso sobre os encantos e desencantos de São Paulo. A maior metrópole da América Latina, cidade do entretenimento e das oportunidades, casa de renomados chefs e sofisticados hotéis deu, nesta semana, mais um passo na criminalização da pobreza.

Nesta quarta-feira (26), a Câmara de Vereadores aprovou, em primeiro turno, o projeto de lei nº 445/2023, que dificulta a distribuição de comida às pessoas em situação de rua, estabelecendo multa que pode passar dos 17 mil reais. De autoria do vereador Rubinho Nunes (União Brasil), o político paulistano vociferou nas redes sociais comemorando: “enquanto eu for vereador, não darei vida fácil para essas ONGs do centro de SP e esses militantes do Júlio Lancellotti”!

Representante da direita e integrante da base do prefeito Ricardo Nunes, o parlamentar há tempos vem se colocando deliberadamente contrário à população de rua. Não como era de se esperar de um membro do Poder Legislativo preocupado com as cerca de 55 mil pessoas que se encontram em situação de abandono e fragilidade, mas dando vazão a toda sorte de preconceitos e insensibilidades da pior espécie.

Longe de ser um fato isolado ou desconexo, essa é uma ideologia perversa alicerçada nas culturas do descarte e da indiferença. Seres humanos tratados com desprezo e ódio, no que a filósofa Adela Cortina chama de aporofobia. Por trás desses seus defensores impiedosos na política, um sistema que produz a exclusão e a desumanidade, como bem aponta o teólogo Renato Carvalho de Oliveira, na sua valiosa obra Economia Financeira e Crítica Teológica: ensaio de teologia política latino-americana da Economia de Francisco e Clara:  

“Se economia é cultura, o capitalismo e as formas econômicas análogas são também construções culturais. Não podem, por isso, ser vistos como único modelo de desenvolvimento e estilo de vida, como os capitalistas (as elites) querem nos convencer. (...) A manutenção da opressão do sistema capitalista tem se dado por um duplo mecanismo político da desigualdade: a distinção social que produz marginalizados e o enriquecimento injusto que cria empobrecimento de pessoas, classes sociais e países”[1].

A segregação dos corpos é uma consequência dessa lógica voraz que além de estar consumindo a Casa Comum, como alerta o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si, tem esgotado sonhos, corpos e horizontes de contingentes cada vez maiores de existências interrompidas. A ocupação do espaço urbano espelha essa desigualdade segregadora, empurrando os empobrecidos e os marginalizados para as periferias e o centro degradado. Enquanto que os milionários e a classe média se fecham nos condomínios de luxo, como se ao formar verdadeiras mini-cidades fortificadas pudessem se isolar da miséria e da injustiça que irrompe por todo lado.

Na cidade cosmopolita símbolo do desenvolvimento excludente, nem todos evitam os indesejáveis refugos do sistema. Partilhar o cotidiano sofrido dos irmãos e irmãs da rua por décadas atraiu sob a sua figura repulsa e perseguição. Mas Padre Júlio está consciente de que aos olhos de muitos conviver com os fracassados o torna um fracassado também e isso nunca foi um problema para ele. Afinal, é seguidor do Crucificado, “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (1 Cor 1, 23), e se poderia dizer, um fracasso para os adeptos do capitalismo.

O presbítero da Mooca tem percorrido um caminho perigoso ao buscar uma vida de comunhão e serviço com os descartados desse mundo. Mas como já disse inúmeras vezes, sua missão nunca será contada entre os casos de sucesso porque em uma sociedade do consumo, encontrar-se em uma situação de vulnerabilidade como aqueles que estão nas ruas é o maior sinal de que algo vai muito mal e falhou enquanto projeto civilizacional.

E apesar das antigas e atuais oposições, como um bravo Lancellotti dos tempos contemporâneos, Padre Júlio tem se mantido fiel ao povo que lhe foi confiado, encarnando a Boa Nova de Jesus em sua dura Camelot. Nesse sentido atesta o jesuíta Benjamin Gonzalez Buelta:

“A comunhão com o oprimido é verdade evangélica, é a Boa Nova para todos os que cremos na palavra de Jesus, é a antecipação da plenitude a que todos os homens caminhamos: a comunhão dos homens entre si e com Deus. Ao começar a viver esta encarnação vamos experimentando em nós mesmos a libertação que cresce entre nós, como possibilidade de adentrarmos nesta solidariedade com o oprimido, que não sabemos aonde chegará”[2].

Ser testemunha desse Caminho contracultural, indomesticável pela ideologia neoliberal, há muito tem incomodado os donos do poder no Planalto de Piratininga. Júlio Lancellotti é herdeiro de um cristianismo comprometido, concretizado em Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Luciano Mendes de Almeida, inspirações caras na sua caminhada. Pastores que não tiveram medo de assumir a dimensão política da fé cristã, seja no cuidado com os empobrecidos, seja na luta contra o autoritarismo civil-militar.

Certamente, as perseguições contra o Padre Júlio, que incluem duas tentativas de instalação de CPI propostas pelo mesmo vereador do PL da Fome, visam intimidar o velho militante dos Direitos Humanos, que não se restringe apenas a alimentar os famintos. Sua atuação crítica questiona as estruturas político-econômicas promotoras da miséria, com forte presença em debates públicos e em iniciativas de resistência dos movimentos sociais. Nos anos recentes de crescimento da extrema-direita, tem sido um corajoso baluarte contra o neofascismo violento.

O Vigário do Povo da Rua de São Paulo é um sinal visível dessa “Igreja em saída” tão conclamada pelo Papa Francisco, que deseja arejar o cheiro de mofo das sacristias. Durante sua longa trajetória, Júlio Lancellotti também esteve entre os adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, com os encarcerados do sistema prisional, com as vítimas da AIDS do final dos anos 1990. Um cristão que soube viver a partir das margens e segundo a parábola do Juízo Final, do capítulo 25 do Evangelho de Mateus. E ali, onde quase ninguém quer estar, tem comungado com simplicidade o Deus que se faz Último, na esteira do que sublinha Frei Betto:  

“Esta parábola do Juízo Final é o centro de todos os evangelhos. Nela está resumido todo o projeto de Deus. Acentua que 1) Deus quer ser preferencialmente servido na libertação dos oprimidos; 2) Deus se identifica com os oprimidos. Quem serve oprimido, serve a Cristo; 3) Muitos indagarão ‘quando o vimos em situação de opressão?’ São aqueles que não têm fé, são ateus, mas se engajam nas lutas em favor dos oprimidos e, portanto, agradam a Deus; 4) Só se ama a Deus amando os oprimidos. Fora dos pobres não temos salvação; 5) Não é Deus quem nos julga, é a nossa prática. Os opressores são excluídos do Reino; os libertadores, incluídos; 6) Jesus enfatizou na parábola que a omissão é um grave pecado que pode nos condenar”[3].

Embora o insensível vereador tenha recuado por ora, com medo da reação das pessoas lúcidas Brasil afora, as ameaças estão longe de terem sido vencidas. Padre Júlio não pode ser impedido de fazer o bem porque desperta a ira de uma elite mesquinha e preconceituosa, que fechada em seus palácios, nega a massa de sofredores necessitada de cuidados em São Paulo. Sua generosa e doada presença em meio a essas periferias existenciais significa que a humanidade ainda não sucumbiu à pura ganância do dinheiro na maior cidade do país.

Tal como o padre paulistano, muitos outros insistem em engrossar as fileiras dessa luta – que às vezes parece inglória – por justiça social, por meio das Pastorais do Povo de Rua, do Menor, Carcerária, da Criança, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), para responder com suas vidas que a revolução do amor resiste. Mesmo que seus membros estejam cada vez mais envelhecidos e sem apoio das paróquias e da hierarquia, essa é a face mais bela de um seguimento cristão consciente e comprometido com a sua vocação de batizado e batizada. E fúria higienista alguma será suficiente para calar esses Lancellottis que “vieram para incomodar”.

“Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas/ Da força da grana que ergue e destrói coisas belas/ Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas/ Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços/ Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva”, continua Caetano em sua bela Sampa, uma cidade de profundas e cruéis contradições. Não serão CPIs, PLs da Fome ou fake news violentas que amedrontarão o Pároco dos Esquecidos. Padre Júlio sabe que não está só e que se mexerem com ele, a Rua se levantará. Coragem, Lancellotti dos empobrecidos! O senhor sabe que no coração dos teus preferidos, as pessoas em situação de rua, tua bondade é invencível. O Deus dos oprimidos seja sempre a tua força!

Notas 

[1] OLIVEIRA, Renato Carvalho de. Economia financeira e crítica teológica: ensaio de teologia política latino-americana da economia de Francisco e Clara. Curitiba: Appris, 2023, p. 29.

[2] BUELTA, Benjamin Gonzalez. O Deus dos Oprimidos: a uma espiritualidade da inserção. Bilbao: Sal Terrae, 1989, p. 18.

[3] BETTO, Frei. Jesus rebelde: Mateus, o Evangelho da ruptura. Petrópolis: Vozes, 2024, p. 171.

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