26 Abril 2024
"Um livro polifônico. O presente volume, tanto pela qualidade quanto pela atualidade e pertinência das reflexões, é uma leitura útil para a compreensão do sentido histórico da sinodalidade que ondula, pois é oscilante no tempo e no espaço".
O comentário é de Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em artigo enviado Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
A sinodalidade não é um modismo ou uma criação do papa Francisco, muito menos uma questão circunstancial ou mesmo periférica à Igreja. É antes de tudo uma tarefa pendente do Concílio Vaticano II. Neste horizonte, a obra Caminhos da sinodalidade: pressupostos, desafios e perspectivas (Paulus, 2023, 320 páginas), organizada por Mauro Passos e Paulo Suess propõe analisar a sinodalidade como um projeto a ser construído, buscando novas formas de organização e participação, apontando caminhos para uma autêntica renovação do cenário eclesial. Diante desta proposta os organizadores ressaltam que pensar a sinodalidade, no tempo atual, é abrir-se à capacidade de dialogar com seu próprio passado, com as culturas, a sociedade e a política. Trata-se de apontar direções e abrir outros caminhos tendo em conta que os efeitos epistemológicos da postura dialogal, conduzem a uma compreensão da diversidade e da heterogeneidade cultural que enlaça diferentes códigos, tradições étnicas, religiosas, e visões seculares e/ou secularizadas no mundo.
Estruturado em nove capítulos, o livro reúne reflexões de especialistas sobre distintas feições da sinodalidade -, buscando com isso caminhos de envolvimento de todas as instituições cristãs, à procura de formas novas e criativas de presença evangélica no mundo e, chamando particularmente a atenção o fato de denominações cristãs não católicas aqui se fazem presentes, mostrando que, para além das discussões doutrinárias, são necessárias formas novas, criativas, de reconstruir a face luminosa do Evangelho.
Imagem: Divulgação
A primeira reflexão “A sinodalidade na primeira formatação do movimento de Jesus” (p. 19-40), escrita por Eduardo Hoornaert, pesquisador sobre as origens do cristianismo, afirma que o movimento de Jesus foi salvo pela sinodalidade –, esclarecendo que nos longínquos tempos em que surgiu o movimento de Jesus, não se falava de sinodalidade, mas, quando – por esse termo se entende um princípio de ação oposto ao princípio hierárquico/verticalista, um modo de resolver problemas sem intervenção de um centro decisório, então vale dizer que, nas origens do cristianismo, vingou a sinodalidade. A partir dos anos 50, aparece, no seio do movimento de Jesus, uma proposta, articulada pelo apóstolo Paulo e sua equipe, no sentido de encaminhar questões pendentes sem apelar alguma instância decisória. No momento em que essa proposta é acolhida e resulta em ações concretas no agir diversificado das comunidades, pode-se falar em sinodalidade, um modo de atuar em que a regra é a horizontalidade no trato das questões.
“O laicato como construtor da sinodalidade” (p. 41-71), é o tema do texto assinado por Alzirinha Souza e Wagner Lopes Sanchez. Os referidos autores propõe uma reflexão que toca quatro pontos: a) quem são esses cristãos (ãs) que chamamos de leigos (as)?; b) a questão da desclericalização e suas consequências para o laicato; c) os sinais da sinodalidade na estrutura eclesial, sobretudo na Igreja da América Latina; d) a utopia desencadeada por Francisco e que impulsiona a Igreja neste tempo de reformas. Estas questões abordados pelos autores demonstram que no conjunto eclesial, os cristãos/ãs leigos/as, pela imposição da compreensão hierárquica de Igreja, em contraposição à compreensão de comunidade são, os primeiros a serem excluídos. Para a realização da tarefa de sinodalizar a Igreja um grande desafio é o da superação do clericalismo que destrói toda a possibilidade de participação efetiva, aberta e igualitária das forças eclesiais.
A questão da mulher nos caminhos da sinodalidade (p. 73-108) é o assunto da terceira reflexão de autoria da teóloga Maria Cecília Domezi. A autora trabalha essa demanda em três momentos: a) as pegadas das mulheres na sinodalidade primordial; b) as “madres conciliares “ no Vaticano II e, c) a experiência sinodal das mulheres na América Latina. Essas pegadas ao longo da história salientadas por Domezi relançam o testemunho corajoso e até heroico de muitas mulheres na caminha sinodal da Igreja. A mulher é participante e propulsora da sinodalidade desde o início do cristianismo e nunca deixou de sê-lo, apesar dos entraves crescentes e graves. Frente a isso, a sinodalidade é de fundamental importância para recuperar a realidade de exclusão de gênero feminino nas Igrejas, pois a mulher vem sendo tratada como a mais leiga entre os leigos da Igreja.
O texto de Paulo Suess apresenta discernimentos acerca da I Assembleia Eclesial (p. 109-133). Nestas páginas Suess sustenta que “a serpente emplumada não levantou voo” e ressalta que foi a proposta do Papa Francisco, depois do evento de Aparecida (2007), em vez de uma “VI Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe”, organizar uma “Primeira Assembleia Eclesial” (México, 2022) para dar mais ênfase à participação do povo de Deus. As cinco Conferências Episcopais anteriores (Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo, Aparecida) produziram seu próprio Documento Final, em contraste com os Sínodos universais ou especiais, cujos documentos finais foram escritos como “Exortação Apostólica” pelo respectivo papa.
Esse Documento Final deu identidade latino-americana e por causa de sua construção participativa, autoridade às respectivas Conferências Episcopais. Pela Assembleia Eclesial, do México, organizado nas duas modalidades de presença física e virtual, o “Conselho Episcopal Latino-Americano” (Celam) decidiu, sem votação da Assembleia, que no evento do México não haveria Documento Final, mas um texto a ser escrito por assessores. Após um ano, dia 31 de outubro de 2022, o Celam apresentou, em Roma, esse texto como “sistematização do que foi expresso no diálogo” da Assembleia: “Para uma Igreja sinodal em saída para as periferias – Reflexões e propostas pastorais da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe”. Não sendo Documento Final votado pela Assembleia nem Exortação Apostólica Pós-Sinodal, o texto e com ele a Assembleia do México que apostou, segundo a opção do Papa Francisco, para uma maior participação do povo de Deus, infelizmente ficaram sem o “cheiro das ovelhas” (EG 24), sem autoridade e repercussão na Igreja latino-americana.
Na quinta reflexão “A sinodalidade pela perspectiva libertadora” (p. 135-170), de autoria de Paulo Sérgio Lopes Gonçalves objetiva-se analisar a sinodalidade da Igreja à luz da perspectiva teológica libertadora, que encontra sua materialidade na Mysterium Liberationeis. Segundo Gonçalves por essa perspectiva significa que a libertação é a luz para compreender a sinidalidade trazida pelo papa Francisco para toda a Igreja, que afirma ser a Igreja toda sinodal.
O referido autor justifica este objetivo por duas vias: o magistério do papa Francisco e a própria perspectiva teológica libertadora, em que a sinodalidade, amparada pela koinonia conciliar, ganha corpo levando em conta a realidade dos pobres, compreendida na tridimensionalidade social, espiritual e ética e assumida como locus para fazer teologia. Para atingir esse objetivo, retomam-se as linhas fundamentais trazidas pelo papa Francisco, em que afirma a sinodalidade nas estruturas de organização eclesial e no dinamismo de relações da Igreja, e na própria missão evangelizadora da Igreja, que é denominada como Igreja em saída. Em seguida, Gonçalves desenvolve o espírito identitário da Igreja sinodal pela perspectiva libertadora, concebido como Igreja dos pobres, para então trazer à tona, teologicamente, as estruturas eclesiais da sinodalidade, que possuem marcas como comunhão e participação e da missão evangelizadora, cuja característica fundamental é a enculturação do Evangelho.
O tema da sinodalidade com rosto ecumênico é o assunto abordado no sexto capítulo. “A sinodalidade com rosto ecumênico e a face pentecostal” (p. 171-207), escrito por Moab César Carvalho Costa reflete sobre o diálogo como ferramenta da comunicação e sobre a composição do campo religioso brasileiro, com sua matriz tripartite e as imbricações: sincretismos, hibridismos e bricolagens que resultaram dessa composição. Em seguida analisa as possibilidades, os entraves e os avanços dos diálogos ecumênicos entre católicos e pentecostais no Brasil e apresenta a Teologia da Amizade como uma das possíveis chaves de ampliação desse diálogo – uma vez que a essa teologia suporta uma amizade de religiosos diferentes; por conseguinte, uma amizade das religiões. Não se trata daquilo que cada religião pode capitalizar a seu favor, mas daquilo que cada uma pode oferecer ao somatório de ações por um mundo melhor. Trata-se da capacidade de doar e não exigir nada em troca.
Educação e sinodalidade são os tópicos do sétimo capítulo titulado “Da pertinência da educação para o projeto sinodal: embates e perspectivas” (p. 209-245). Com base em três abordagens complementares: a relação entre educação como o projeto sinodal, as orientações do Concílio Vaticano II e das Conferências do Episcopado Latino-Americano em Medellín e em Puebla e o desenho que vem se dando com o papa Francisco – nestas páginas Mauro Passos busca analisar o entendimento do projeto de sinodalidade e seu processo educativo nas relações da Igreja – a Igreja docente e a Igreja discente esclarecendo que tanto a educação quanto a sinodalidade têm em comum a propriedade de nos levar para o território da construção, da ousadia e da indignação.
“Sinodalidade e pentecostalismos: no princípio, todos tinham tudo em comum; na atualidade, alguns têm todo o poder?” (p. 247-277) é o assunto da oitava reflexão feita por Davi Mequiati de Oliveira e Gedeon Freire de Alencar. Os referidos autores fazem uma análise dos avanços e dos entraves nos diálogos ecumênicos entre católicos e pentecostais no Brasil e a sinodalidade e os pentecostalismos, respectivamente. Além disso, observam que a comunalidade da Igreja primitiva não se manteve, ou seja, pelo registro lucano (Atos 2,17), a ação do Espírito Santo no nascimento da Igreja foi paritária e, na interpretação e aplicação hermenêutica de Pedro, esse seria o ideal cristão. Aceitando e crendo no texto bíblico, bem como na leitura petrina do evento, diríamos que o Espírito Santo não faz distinção de gênero, classe ou faixa etária. Entre o ideal inicial da ação primeira do Espírito e a prática posterior da institucionalização, algumas mudanças aconteceram. O texto de Atos registra em mais de uma ocasião, no início todos tinham tudo em comum. Não demorou muito para as divergências e institucionalidades se manifestarem e se solidificarem um novo modelo, em que alguns têm poder, outros não.
Agenor Brighenti, no texto “O Sínodo da Igreja 2021-2024: uma perspectiva com grandes desafios” (p. 279-304) observa que estamos vivendo um momento único na Igreja, depois de três décadas de involução eclesial que precederam o atual pontificado em relação ao Concílio Vaticano II. O que a Igreja da América Latina viveu e buscou entre tensões e embates, graças ao Papa Francisco, estamos fazendo a passagem da colegialidade episcopal para a Igreja sinodal, inserindo a colegialidade episcopal no seio da sinodalidade eclesial.
No entanto, adverte que a implementação de uma Igreja sinodal não é uma tarefa fácil, pois depende da retomada do processo de renovação do Vaticano II e, na América Latina, do modo como ele foi recebido no continente. Para o autor, felizmente estão abertas as portas para avançar e há todo um incentivo para fazer do Concílio um ponto de partida; mas por outro, infelizmente, está aí a indiferença de muitos e mesmo a ferrenha oposição de outros, que fazem da sinodalidade um grande obstáculo a transpor, quando poderia ser um caminho plano a trilhar.
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Um livro polifônico. O presente volume, tanto pela qualidade quanto pela atualidade e pertinência das reflexões, é uma leitura útil para a compreensão do sentido histórico da sinodalidade que ondula, pois é oscilante no tempo e no espaço. A leitura desta obra ajudará o leitor a encarar a sinodalidade como um projeto a ser construído, buscando novas formas de organização e participação e, que a sinodalidade é mais que um atalho ao nosso alcance. Diante disso, as reflexões traçam caminhos, sabendo que a prática é problemática e pode avançar de diversas formas, pois a recepção é sempre plural e diferente e, por isso, os artigos deste livro expressam relações sociais, religiosas e teológicas diversas, encetadas por cada autor, com várias teias de significado, valores e práticas.
PASSOS, Mauro; SUESS, Paulo (org.). Caminhos da sinodalidade: pressupostos, desafios e perspectivas. São Paulo: Paulus, 2023, 318 páginas. (Coleção Synodos). ISBN 9788534951968
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Caminhos da sinodalidade: pressupostos, desafios e perspectivas. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU