02 Abril 2024
"Com o golpe, o sistema partidário sofre a primeira agressão, sendo obrigado a configurar-se a apenas dois partidos políticos: ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação à ditadura; MDB (Movimento Democrático Brasileiro), uma espécie de oposição consentida pelo regime, como forma de manter as aparências, uma vez que os políticos frente às cassações, deportações, prisões e coerções diversas por parte dos militares no poder, não conseguiam exercer seus mandatos de forma livre e soberana", escreve Alexandre Aragão de Albuquerque, arte-educador (UFPE), especialista em Democracia Participativa (UFMG) e mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE).
Há amplo entendimento de que as duas décadas que compreendem a ditadura empresarial-militar no Brasil, instaurada em 1º. de abril de 1964, constituem um tenebroso período da história brasileira no qual se promoveu vigorosa concentração da renda e da riqueza, juntamente com uma sistemática violação dos direitos humanos por meio da violência de Estado.
A ciência política consagra “golpe” como um ato político de traição a alguém ou a alguma coisa. É recurso extremo que a classe dominante lança mão visando recuperar privilégios ameaçados pelos avanços de políticas democráticas distributivas e redistributivas, para estancar conquistas oriundas da organização popular, e manter a ordem injusta da concentração da renda e da riqueza construída ao longo da história de uma determinada sociedade.
Como atesta o célebre cientista político brasileiro Wanderley Guilherme dos Santos, assaltos ao poder podem acontecer em qualquer regime, mas golpe à democracia é uma escolha perversa. E as intenções maléficas que movem o grupamento golpista somente podem ser devidamente colhidas e reconhecidas ao longo do tempo. Portanto, investigar interferências golpistas, como se essas se originassem em universo paralelo ao universo democrático, é um equívoco. O golpe empresarial-militar de 1964, como o golpe parlamentar que ocorreu no Brasil em 2016 com a deposição ilegal da presidente Dilma Rousseff, só existem em sistemas democráticos.
Os dois golpes acima citados, o de 1964 e o de 2016, possuem peculiaridades próprias das quais pode-se citar a utilização do direito como forma de legitimação do regime. No caso em que nossa breve reflexão deter-se-á – a ditatura empresarial-militar de 1964 – a utilização do direito se deu por meio da proclamação de Atos Institucionais, que passaram a ser utilizados pelo regime militar como forma de controlar o cotidiano dos cidadãos brasileiros.
Com o golpe, o sistema partidário sofre a primeira agressão, sendo obrigado a configurar-se a apenas dois partidos políticos: ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação à ditadura; MDB (Movimento Democrático Brasileiro), uma espécie de oposição consentida pelo regime, como forma de manter as aparências, uma vez que os políticos frente às cassações, deportações, prisões e coerções diversas por parte dos militares no poder, não conseguiam exercer seus mandatos de forma livre e soberana.
Em 9 de abril de 1964 é editado o primeiro ato institucional. O AI-1 estabelece, como manifestação do autoritarismo eloquente do regime de força, que a eleição para presidente da república passaria a ser indireta. As primeiras palavras do AI-1 afirmam:
“O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, é uma autêntica revolução”. Portanto, uma ruptura radical e violenta com a ordem democrática vigente até então. E vai mais além: “A revolução vitoriosa se investe [a si própria] no exercício do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte”.
Além de muitas outras arbitrariedades, o AI-1, em seu artigo 10º, aufere ao assim dito presidente da República o poder de suspender direitos políticos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais sem a necessidade de apreciação por parte do Poder Judiciário, intervir nos estados, decretar estado de sítio e emendar a própria Constituição.
Em 27 de outubro de 1965, tem-se a expedição do Ato Institucional número 2 (AI-2). Entre as suas determinações, o referido Ato eleva para dezesseis o número de ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal (STF), transfere para a Justiça Militar a competência de processar e julgar os crimes de civis contra a segurança militar e instituições militares. No seu artigo 18, extingue treze partidos políticos existentes, e no Artigo 19 mantém as hipóteses de exclusão da apreciação pelo Judiciário por certos atos.
O AI-3, de 5 de fevereiro de 1966, trata das eleições que ocorreriam naquele ano. O AI-4, de 12 de dezembro de 1966, convoca o Congresso Nacional para apreciar o projeto de uma nova Constituição proposto pelo presidente ditador de então, focado na segurança nacional, reduzindo a autonomia individual, permitindo a suspensão de direitos e garantias constitucionais, revelando-se um projeto tremendamente autoritário.
Por fim, foi editado o famigerado AI-5, em 13 de dezembro de 1968, no qual é anunciada a primeira lista de cassações, contendo o nome de onze deputados federais. No mês seguinte, uma nova lista é editada com o nome de dois senadores e trinta e cinco deputados federais. Por fim foram cassados (aposentados) três ministros do STF, além do presidente do Supremo, Antônio Gonçalves de Oliveira, bem como um ministro do Superior Tribunal Militar. Tais cassações de ministros do Poder Judiciário causaram grande temor nos demais juízes em todo o Brasil.
Por fim, passaram a ser perseguidos e censurados artistas e intelectuais, como Caio Prado Junior, Florestan Fernandes, Paulo Freire e Fernando Henrique Cardoso (expulsos de suas universidades). Ao todo, apenas em 1969, com cinco anos de vigência da ditadura empresarial-militar, 333 políticos tiveram seus direitos políticos suspensos.
Portanto, por meio do falseamento da realidade, buscando dar uma aparência de legalidade e de formalismo do funcionamento das instituições brasileiras, o regime ditatorial de 1964, que perdurou por 21 anos, foi um período violento, autoritário, de cerceamento das liberdades políticas e individuais, com gravíssimas violações dos direitos humanos. Era esse regime autoritário que o bolsofascismo no poder visava ressuscitar com sua tentativa fracassada de 8 de janeiro de 2023.
Neste sentido, a leitura atenta e crítica dos Atos Institucionais revela que a suposta validade propagandeada destes atos era decorrência da opressão militar, das forças armadas que se encontravam por trás da formulação e edição de tais documentos, utilizados como manutenção e aprofundamento do regime, visando dar suporte legal à ditadura, submetendo os Poderes Legislativo e Judiciário ao Poder Executivo, como forma de legitimar o combate real e simbólico à resistência popular no país. Importante manter viva na memória toda essa opressão. Ditadura nunca mais!
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Ditadura militar e os atos institucionais. Artigo de Alexandre Aragão de Albuquerque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU