05 Abril 2024
Esquecer não cicatriza feridas, nem promoção de justiça é ato de vingança. Nem sequer Lula foi eleito presidente por “governabilidade”, mas para fazer o correto pelo conjunto da sociedade.
O artigo é de Edu Montesanti, jornalista, professor, tradutor e escritor.
Posicionando-se de maneira a “não remoer o passado” vetando eventos em memória dos 60 anos do golpe militar de 1964 no último dia 1º, proibindo ainda manifestações de ministros sobre o assunto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destaca-se como raro líder mundial na capacidade de reforçar a cultura da impunidade, já muito forte no Brasil onde é disseminada a ideia de que promover justiça (especialmente quando as classes dominantes são ou deveriam ser ré) é sinônimo de revanchismo.
Lula da Silva ajuda a afirmar um Ministério Público que, na mentalidade e na prática, mal saiu das bases da Constituição de 1967 quando a instituição era órgão do Poder Executivo em defesa fundamentalmente do Estado de exceção, fortemente elitista e corporativista. Assim como a própria Polícia hoje, em todos os níveis, mantém acentuada mentalidade e métodos repressivos, discriminadores e ditatoriais em defesa mais do status quo que da sociedade.
Tendo prometido na última campanha presidencial “salvar a democracia”, o hoje presidente da República reforça, com esta postura que não surpreende partindo dele, a perversa estrutura estatal que assassinou a vereadora carioca Marielle Franco. E normaliza “atos” (graves delitos sempre passados em branco no Brasil) como o do então comandante das Forças Armadas, general Eduardo Villas Bôas em 2018 quando, “pensando no bem do país, do povo e das gerações futuras”, impôs sentença condenatória ao próprio senhor Lula da Silva, sob ameaça de “intervir” no Supremo Tribunal Federal.
Também no sentido inverso do que prometeu em campanha, investigar os mortos e desaparecidos no período da ditadura militar (1964-1985), Inácio da Silva uma vez eleito pavimenta o caminho (de novo) com suas incoerências cínicas para a ascensão de mais líderes populistas de extrema-direita, em ampla medida subproduto exatamente do forte e crescente repúdio popular contra este tipo de “política” centrada, após eleitoreiro discurso messiânico-democrático, na manutenção do poder girando em torno de suas negociatas, interesses e receios governistas sob eufemismo de “governabilidade” ao invés de priorizar interesses da sociedade que incluem, de modo prioritário especialmente em um país cronicamente desigual como o Brasil, promoção de justiça – pelo que foram eleitos, e são pagos com o erário. Sobre o que logo se apoiam demagogicamente políticos da estirpe de Jair Bolsonaro a fim de obter espaço através de falso moralismo, polarização e ódio social.
O 8 de Janeiro do qual Lula da Silva tanto fala foi o mais recente exemplo, entre diversos, de que a sanha golpista militar continua viva no Brasil. Na prática a política brasileira está, como sempre esteve, tutelada pelos militares sob assinatura do atual presidente de uma República que, na vergonhosa contramão dos países vizinhos, até o presente momento cumpriu apenas 7% das recomendações da Comissão Nacional da Verdade sobre os 21 anos de ditadura militar.
O que Lula está fazendo é pacificar o poder, a política e seu governo com opositores e criminosos históricos em consonância com o clamor recente do próprio Bolsonaro, “passar borracha em tudo”, ao invés de pacificação pela, para e com a sociedade o que, entre outras coisas, implicaria afastar os militares como perpétuo poder moderador da República.
O petista não foi eleito para fazer política pela política, para “ficar bem com todos” blindando a política em nome de “governabilidade”, ele não prometeu em milionária campanha a política pela política, nem tal termo, “governabilidade”, consta na Constituição.
Como qualquer outro inquilino do Palácio da Alvorada, ali está para benefício do povo e está faltando, primeiro passo para sair desta cadeia mesquinha onde reina a impunidade pelos anos de ditadura e por tudo o que dela adveio, ouvir vítimas e familiares das vítimas da ditadura militar de traumática memória e terríveis consequências que se fazem sentir fortemente nos dias de hoje, as quais não serão sanadas sem justiça: isto, sim, parte fundamental da Constituição.
Em sentido mais amplo, a política deve ser regida por princípios como qualquer outra atividade, não por conveniência pessoal. Mais ainda neste caso, atividade que representa – e é sustentada pelo dinheiro de – centenas de milhões de pessoas no País. Pois o nível da democracia brasileira é tão precário (mais de 20 anos depois que o mesmo Lula assumiu a Presidência da República pela primeira vez), que alegar que um governante é eleito para fazer o correto pelo conjunto da sociedade e não para seu projeto de poder, ainda causa polêmica em todos os segmentos sociais. Inclusive “cabeças pensantes” brasileiras inundam meios de comunicação nacionais com a segunda ideia, atacando a primeira.
Por fim – e poder-se-ia escrever uma vasta série de livros manifestando indignação por mais esta conivência cínica do líder petista com a impunidade –, exatamente da cultura de que justiça remoi passado provém o famoso “jeitinho” brasileiro; justifica difundidas e bem-aceitas definições como “política é assim mesmo”; permite que os militares ainda hoje, 60 anos depois do golpe, conspirem como em 8 de janeiro de 2023; que um general imponha sentença à Justiça; e que um líder miliciano seja presidente da República. Está faltando exatamente isto ao Brasil (basta olhar-se pela janela, aos vizinhos): senso de dignidade.
Esquecer não cicatriza feridas, nem promoção de justiça é ato de vingança. Afastado debate entre a sociedade, distante realidade brasileira.
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60 anos do Golpe de 64: a institucionalização da impunidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU