04 Mai 2023
"Cidadania relaciona-se a direitos civis, políticos e socioeconômicos, e culturais, sendo inseparável da justiça e da ordem pública ainda que, em casos extremos, esta deva ser rompida para restaurá-la pela paz social. Processo apenas possível em um Estado laico".
O artigo é de Edu Montesanti, jornalista, professor, tradutor e escritor.
Sem democracia participativa, não é possivel exercer plenamente cidadania ativa-social.
Origem etimológica. Componentes lexicais do latim: civitas = cidade ou povo; anus = pertencente; ia = qualidade.
Portanto, cidadania pode ser etimologicamente entendida como pertencente a uma cidade ou povo.
A liberdade custa muito caro e temos que nos resignar a viver sem ela, ou decidir pagar seu preço
José Martí
Conceito. Evoluindo ao longo da história desde a Grécia Antiga, o termo cidadania é polissêmico, ou seja, possui hoje diversas conotações. Um ponto em que a maioria dos autores contemporâneos coincide diz respeito à responsabilidade social, aos direitos e deveres do cidadão e seu compromisso com o bem comum que se desvincula de nacionalidade, cor de pele, religião, gênero, classe social, nível educativo, e qualquer outra diferença que possa induzir à exclusão social.
O escritor e crítico cultural americano-canadense Henry Giroux observa:
A cidadania é um processo de diálogo e compromisso no qual os cidadãos constroem uma linguagem pública de emancipação e crítica ao poder do Estado. (...) A cidadania, desta maneira, está ligada às relações de poder e à formação dos significados.
Estas observações trazem uma ideia que tem sido bastante considerada por diversos analistas atualmente, indo além de meros direitos e obrigações a serem cumpridos pelo cidadão tornando-o protagonista da história, ator ativo na vida política de seu país em contraposição ao individualismo: a responsabilidade cidadã diante de sua comunidade, a conscientização através da troca de argumentos e o bem-estar coletivo, o que tem relação com a solidariedade, e das decisões a serem tomadas e da fiscalização direta ao poder estabelecido.
Assim, cidadania relaciona-se a direitos civis, políticos e socio-econômicos, e culturais, sendo inseparável da justiça e da ordem pública ainda que, em casos extremos, esta deva ser rompida para restaurá-la pela paz social. Processo apenas possível em um Estado laico.
Quando a liberdade é retirada à força, pode ser recuperada à força; se abandonada voluntariamente, pela omissão, jamais poderá ser restaurada
Dorothy Thompson
Jogar lixo no cesto, ajudar a senhora a atravessar a rua, o senhor a carregar a sacola, abrir a porta dando passagem prioritária a mulheres e idosos, intervir quando animais ou seres humanos mais frágeis estiverem sendo mal-tratados, socorrer um acidentado, respeitar o professor, fazer valer direitos de cidadão, dialogar especialmente com as diferenças, participar dos assuntos de interesse do bairro e cobrar, através das ferramentas que estiverem ao alcance, políticos e pessoas em posição de poder para que atendam necessidades da sociedade, ou ecoar sua voz quando seus direitos forem violados. Este é o grau de "cidadania crítica" ou "cidadania ativa-social" que coloca os cidadãos como protagonistas da vida política desde suas respectivas comunidades, para muito além de cidadão limitado a direitos e deveres inseridos em um plano mais restrito, ou do "cidadão consumidor" segundo a lógica do mercado, afastado das implicações sociais e polticas.
A cidadania é um espaço a conquistar
Washington Uranga
Observa Noam Chomsky: "David Hume intrigou-se com 'a facilidade com que muitos são governados por poucos, a submissão implícita na qual os homens renunciam' seu destino aos governantes. Ele surpreendeu-se com 'a força sempre ao lado dos governados'. Se as pessoas percebessem isso, levantar-se-iam e derrubariam os chefes. Ele concluiu que o governo baseia-se no controle da opinião, o que 'se estende aos governos mais despóticos e principalmente militares, assim como aos mais livres e populares'" (Consent Without Consent). Exercer cidadania ativa-social empodera o cidadão, naturalmente tirando-o da condição submissa diante dos governantes.
Pluralidade de pensamentos, conviver com as diferenças contra o sistema corrupto, discriminador e excludente
Edu Montesanti
O povo berbere, nativo da região do Magrebe ao norte da África, autodenomina-se amazigh (homem livre), ou imazighen no plural. O termo berbere, aplicado pelos romanos na antiguidade, deriva do latim barbarus: referia-se a todos os estrangeiros, não possuindo conotação negativa no Império Romano ao contrário do equivalente em grego βάρβάρος, que na Grécia Antiga tratava dos "povos incivilizados" (no conceito grego, qualquer um que não fosse romano, cristão ou grego, propriamente: "a grande civilização"). Colonizados pelos fenícios, romanos e bizantinos no passado, os berberes possuem cultura impressionantemente ampla. Ramificações de línguas afroasiáticas, as linguas berberes, faladas atualmente por cerca de 40 milhões de pessoas especialmente na Líbia, Argélia e no Marrocos (em menor medida em Burkina Faso, na Tunísia, Mauritânia, no Mali, Egito e Níger), possuem escrita própria cujo alfabeto denomina-se tifinague, ou líbico-berbere nas versões originais. Porém, os alfabetos árabe e latim têm sido mais utilizados pelos berberes atualmente. As línguas berberes, com tradição linguistica de mais de 2 mil anos, possuem cerca de 40 variações: o tamazight, (Marrocos, cerca de 3 milhões de falantes) e a Cabila (Argélia, cerca de 8 milhões de falantes), são os mais falados atualmente; na Tunísia prevalece o berbere tunisiano, e na Líbia o Nafusi.
Derivadas dessas dezenas de variações genéricas, contam-se cerca de 300 subvariações linguísticas espalhadas pelas comunidades berberes. Adeptas majoritariamente do islamismo sunita hoje, com predomínio de cristãos antes do dominio árabe, as sociedades berberes concedem importante status às mulheres: mesmo após a invasão árabe no século VII, as mulheres desempenham papel fundamental não apenas dentro das famílias berberes como tambem nas artes, e até na resistência a forças estrangeiras opressoras. "As mulheres são valorizadas como guardiãs da língua e cultura berbere, elementos centrais para a construção da identidade. A construção e preservação da identidade por meio da arte também estão no centro da atividade religiosa e espiritual das mulheres berberes" (Women in Berber Culture).
O imperialismo sobre as sociedades berberes faz-se sentir ainda nos dias de hoje, através da arabização linguística e cultural como um todo na região: apenas em 2003 o berbere foi considerado língua oficial na Argélia, e em 2011 no Marrocos. No Mali e Níger, as línguas tuaregues (pertencentes à família linguística berbere) são reconhecidas nacionalmente, parte do currículo escolar desde os anos de 1960. Contudo, a repressão contra os berberes continua particuarmente forte no Marrocos, na Argélia e na Líbia, onde vivem excluídos da vida política e sofrem até agressões físicas por forças estatais, além de demonizados pelas partes preponderantes das sociedades locais.
ⴰⵔ ⵝⵓⴼⴰⵜ (até breve em berbere; ar thufat, transliterado).
A liberdade política de um cidadão é a tranqulidade de espírito que provém da confiança que cada um tem em sua segurança; para que esta liberdade exista, é necessário que em um governo como tal, nennhum cidadão seja capaz de temer outro
Montesquieu
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O que é cidadania? Artigo de Edu Montesanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU