04 Março 2024
“A carestia é induzida e é fácil reverter: basta abrir as passagens”, explica Philippe Lazzarini, o Comissário geral da UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinos, nesta entrevista ao La Stampa.
A entrevista é de Uski Audino, publicada por La Stampa, 02-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Conseguiu entender o que aconteceu com o massacre que custou a vida de 112 palestinos durante o trânsito do comboio de bens alimentares? Circulam diferentes versões. Qual é a sua?
Não tenho outros detalhes além do que ouvi pela mídia, mas tenho certeza que as investigações nos contarão o que aconteceu. É chocante que centenas de pessoas famintas tenham sido mortas enquanto esperavam desesperadamente os alimentos. A fome ameaça o norte de Gaza e, como UNRWA, não conseguimos mais levar ajudas desde 24 de janeiro. Quando tentamos novamente no início de fevereiro o nosso comboio foi bloqueado pelo exército israelense. Eu não tenho uma versão pessoal dos fatos, mas sei que o transporte de dois dias atrás não foi organizado nem pela ONU, nem pela UNRWA, nem por nenhuma associação humanitária conhecida. Parece que há uma iniciativa de outra natureza por trás.
De que natureza?
Nessa fase não faço suposições. Os fatos só podem ser apurados através de uma investigação séria, um acesso adequado ao local, um interrogatório adequado a quem dirigia o transporte e escutando testemunhas oculares.
Como está progredindo a assistência humanitária em Gaza neste último período?
Há semanas que nós e os especialistas da FAO falamos sobre uma iminente carestia. Em relação a essa situação de emergência e, apesar do Tribunal Internacional de Justiça de Haia ter pedido um esforço maior, aconteceu o contrário. A assistência humanitária caiu em média 50% em fevereiro em comparação com janeiro.
Por que diminuiu?
Faltou a vontade política. Existem dois acessos a Gaza atualmente operacionais: Rafah e Kerem Shalom. O segundo é a aquele permite maior capacidade de trânsito, mas está regularmente fechado quer por manifestações, quer devido a um sistema de fiscalização extremamente intrincado. Por exemplo, um caminhão vindo do Egito leva de cinco a sete dias para entrar. No fundo, falta a vontade.
De quem?
Se Israel quisesse, o acesso às travessias poderia ser mais rápido. Antes de 7 de outubro transitavam 700 veículos pesados por dia. Hoje temos uma média de 100-150 e nem todos os dias. Se houvesse a vontade de abrir outras passagens, por exemplo em Karni ou Erez, no Norte - onde atualmente temos uma população encurralada e faminta – poderíamos enfrentar a situação. Essa é uma situação puramente ‘manmade’, isto é, induzida pelo homem, artificial. Eu nunca vi na história recente um lugar onde a carestia fosse provocada artificialmente.
O que você quer dizer com carestia induzida?
Quero dizer que é criada por um sistema de segurança extremamente rígido. Se fosse afrouxado, o problema da fome poderia ser resolvido. É muito mais fácil enfrentar a fome em Gaza do que no Sahel, onde é ligada a condições ambientais. Aqui a resposta é conhecida: basta abrir as passagens e deixar entrar os comboios para prestar assistência às pessoas.
O governo israelense fez graves acusações contra a UNRWA, alegando que 12 dos seus colaboradores estariam supostamente envolvidos no massacre de 7 de outubro. Como você responde?
Quando tomei conhecimento em 18 de janeiro fiquei chocado. O caso foi levado muito a sério e não só as pessoas acusadas foram demitidas, mas denunciei tudo ao Secretário-Geral da ONU que abriu uma investigação independente. Estão em curso de revisão também os procedimentos do sistema de gestão de riscos, sob a orientação da ex-ministra francesa Catherine Colonna. Em breve teremos os resultados e estamos prontos para melhorar conforme necessário. Mas eu quero ser claro: estamos falando apenas de acusações.
Quais foram as consequências dessas acusações para vocês?
Cerca de 16-18 países congelaram as suas contribuições para a UNRWA. A menos que algo mude, a capacidade da Agência para enfrentar a pior crise humanitária da região ficará comprometida. Não poderemos fornecer serviços essenciais, como educação, a Jordânia, Síria, Líbano e Cisjordânia, onde há milhares de crianças e 450 milhões de dólares correm risco de congelamento.
O governo Netanyahu afirma que a UNRWA está comprometida com o Hamas e afirma que o seu data center ficava sob sua sede na cidade de Gaza. Como você explica isso?
Os israelenses nunca nos procuraram com as suas acusações, sempre as transmitiram pelas redes sociais ou pela TV. A acusação do data center é uma afirmação, mas nunca compartilharam conosco as provas. Quando for possível ter acesso a Gaza, será necessário realizar uma investigação séria sobre os túneis e a seus acessos. Enquanto isso, posso dizer que desde o início da guerra mais de 400 pessoas foram mortas enquanto se abrigavam sob a bandeira da ONU e essa é uma violação grave que exigiria uma investigação internacional.
Por que o governo israelense quer a sua demissão?
Israel quer desmantelar a UNRWA porque se tornou um símbolo dos direitos dos refugiados palestinos e dos seus pedidos de um percurso político. O pedido de demissão é a etapa preliminar para eliminar a Agência.
A UNRWA pode ser substituída agora?
A nossa não é apenas uma organização humanitária, mas também oferece educação. Só em Gaza, cerca de 300 mil crianças frequentam a nossa escola. O único que pode nos substituir é um estado, que agora não existe. Seria um erro terrível sacrificar o futuro de milhares de meninas e meninos. A alternativa é crescer no trauma, a melhor receita para aumentar ódio, violência e ressentimento.
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“Na Faixa estão morrendo de fome e Netanyahu é o responsável”. Entrevista com Philippe Lazzarini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU