25 Janeiro 2024
“Não vá para lá”, suplica-me minha gerente científica na Universidade de Siena quando lhe conto que existe a possibilidade de entrevistar uma senhora ucraniana ex deportada do campo de concentração feminino nazista de Ravensbrück. Estou na Ucrânia, em Kiev, em casa, onde vim para ficar um mês, pela primeira vez depois de 24 de fevereiro de 2022. Estamos sob os bombardeios russos também em Kiev, com a diferença que na região de Mykolajiv, onde deveria ir fazer a entrevista, não existem todos os sistemas antimísseis que a capital possui e, além disso, a aldeia está a 40 km do front (as cidades vizinhas foram libertadas há alguns meses). As palavras da minha colega, quase me fazem sorrir: convivendo com o som das sirenes todos os dias, todos nos tornamos fatalistas - o míssil pode atingir você na região de Mykolajiv como em qualquer outra parte do país: se você decidiu morar ou só ir lá, deve estar preparado para tudo. Além disso, eu sinto por dentro aquela necessidade de continuar a pesquisa - a única que eu poderei fazer em tempos de guerra - a todo custo.
A reportagem é de Yuliia Chernyshova, publicada por "La Lettura", 21-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Deixo meu filho de dezesseis anos em casa, digo a ele o que deve fazer se eu não voltar: não há nada de patético nisso, é uma realidade que deve ser enfrentada como ela é e faz parte da vida ucraniana cotidiana, em toda a sua banalidade. Pego o trem e durante toda a noite tento ouvir se os drones estão chegando, como se ouvi-los chegar pudesse me ajudar a mudar alguma coisa.
A pequena casa onde vivem Yevdokiia Shynkariova e sua filha Olena é uma típica casa rural ucraniana: pequena, com teto baixo, tapetes por toda parte, banheiro externo, muito modesta, mas acolhedora; atrás na casa há os grandes campos que davam sustento à família e hoje à mãe e filha. No início a senhora tem dificuldade em me contar as coisas: sou uma estranha me intrometendo na vida delas, é necessário o tempo longo da confiança, como em todas as entrevistas de história oral. Aos poucos (a entrevista durou cerca de três horas) me conta cada vez mais. A filha nos ajuda, orienta a mãe, faz ela lembrar.
Yevdokiia muitas vezes se segura para não chorar, soluça, a gente para, de vez em quando ela não se sente bem: apesar de tantos anos terem se passado, ela está vivendo muitas das situações que me conta ainda como se ainda estivesse lá.
A memória de Yevdokiia, que tem 97 anos no momento da entrevista (3 de setembro de 2023), é falha, pede ajuda à filha e, quando não se lembra imediatamente, começa com o poema que compôs retornando de Ravensbrück: “Moramos perto de Berlim/ A ilhota está cercada de água/ lá fica uma pequena planície/E há um campo de concentração atrás do muro...”.
A história da deportação de Yevdokiia (na época chamada por seus familiares pelo diminutivo Dunia porque era muito jovem, dezesseis anos) começa em 23 de agosto de 1943. A região de Mykolajiv era ocupada pelos nazistas desde 17 de julho de 1941. Foi libertada pelo Exército Vermelho em 28 de março de 1944, mas Dunia não ficará sabendo porque estará presa na Alemanha.
“Eu nasci em 1926, havia a mobilização, estavam pegando o ano vinte e seis então”. Com mobilização, entende a deportação forçada. As mães tinham que escrever o ano de nascimento dos filhos na cerca de sua casa ou em num poste próximo, e a mãe de Dunia não o fez da primeira vez. Mas era impossível fugir a essa obrigação, caso contrário teriam fuzilado toda a família.
Assim Dunia decide apresentar-se, é levada e colocada num vagão de transporte: “Levaram-nos para a Polônia, os senhores de lá nos escolheram, não sei quem eram - patrões ou donos - e trabalhamos lá".
Em março de 1944 Dunia e sua amiga Olga tentaram fugir, vagaram pelos bosques e chegaram a uma fazenda, e lá um velho as acolheu, deu-lhes comida, mandou-as para dormir no andar de cima e as trancou lá dentro. Na manhã seguinte chamou a polícia que as levou para uma cela. Deixaram ir sua amiga Olga após o interrogatório: ela continuou trabalhando para os patrões, ficou na Polônia até à libertação e depois regressou à Ucrânia.
Para Dunia foi diferente, encontram uma carta que tinha escrito para sua mãe, onde dizia acreditar na vitória soviética. Mesmo assim, talvez ela também pudesse ter retornado para seus patrões, mas o destino quis que naquela noite fossem levadas para a cela algumas prisioneiras de guerra soviéticas, e na manhã seguinte, sem fazer distinção, todas, incluindo Dunia, partem para uma prisão na Alemanha: “Eles levaram alguns prisioneiros de guerra e na cela onde eu estava os deixaram entrar, e eu estava lá, e fiquei com os prisioneiros de guerra, não consegui [sair antes]”.
Ela ficará na prisão com 12 prisioneiras de guerra até o outono de 1944, após o qual todas partirão, com destino aos campos de concentração. Ela terá o status de prisioneira política no campo de concentração.
Quando chega no campo de Ravensbrück, raspam seu cabelo e lhe dão o vestido listrado que ela chama de "uniforme", colocam um número na perna dela, porque ela era muito pequena e magra para poder tatuá-lo no braço: “Tatuaram um número, uns nas pernas, outros nos braços. Naquela época vivíamos com os números”. A perna começa a supurar. Por medo de que progredisse e que depois matassem Dunia na câmara de gás, uma mulher polonesa colocou ácido clorídrico na sua ferida. Assim se salva. Mais tarde, essa polonesa fará um casaquinho com um cobertor para a pequena Dunia.
As roupas anteriores, os documentos, as fotografias que carregavam consigo antes de chegar, são todos levados embora. Nos pés tinham “uma sola de madeira e um pequeno pedaço de trapo, uma fita, não havia meias. Eram chinelos, sandálias. E não tínhamos nem calcinha nem sutiã, estávamos nuas e descalças”. Mas quando lhe pergunto se ficava doente com facilidade ela reage assim: “Bem, estávamos acostumadas, nuas e descalças, sem calcinhas, tossíamos, sim, mas ainda éramos jovens”.
Os doentes eram imediatamente levados aos crematórios e queimados nos fornos. Além dos doentes esse destino cabia a quem tivesse cometido um erro, como uma amiga dela que trabalhava na cozinha e tinha tentado ficar com algumas cascas de batata: a descobriram e imediatamente a queimaram. Eles nos davam comida uma vez ao dia, meio litro de caldo de uma espécie de nabo e cem gramas de pão.
Frequentemente aparecem nas suas memórias pessoas que a ajudaram, eu diria que a história toda gira bastante não apenas em torno dos horrores do campo de Ravensbrück, mas também em torno das memórias dessas pessoas, cujos nomes ou nacionalidades não são conhecidos, mas as memórias e os gestos com quem ela me conta os detalhes são tão genuínos que me identifico facilmente com aquelas tarefas domésticas e eu também quase vejo aquele mecânico (talvez italiano, talvez alemão, ela não lembra) que " tinha pena de mim, eu era pequena, era muito jovem" e magra e sempre dava meia maçã e um pouco de sal para que ela o bebesse no chá à noite: “Ele vem, para e fica assim. E fico de lado. E ele colocava um pouco de pão [mostra como ele lhe dava o pão] no meu bolso, um pedacinho. Eu me lembro, também havia algumas pessoas boas”. Vale lembrar que para um gesto como esse era previsto o fuzilamento: “De alguma forma ele dava um jeito para que não o vissem, ficava assim [ela o mostra] e me dava o pão”.
No Natal, Dunia pensa num desejo: que a guerra acabe e que ela retorne à Ucrânia. Sonha naquela noite “um velho que se aproximou de mim e disse: ‘Menina, não chore, em maio você estará em casa’”.
O campo de Ravensbrück foi libertado em 3 de maio de 1945, após o que Dunia levou 23 dias para voltar para casa na Ucrânia. Juntamente com os outros, colocaram-na num comboio de carga aberto para Varsóvia e depois, de Varsóvia “com o carvão” viajam sozinhos para Brest (na Bielorrússia) e depois para Kiev. Em 26 de maio Dunia chega em casa: “Cheguei em casa, bati e não abriam a porta. "Quem é você?" - me perguntam. E eu respondo: “Dunia”. E alguém me repreende e fala: “Mas Dunia não está mais viva, vou te mostrar Dunia agora, vá embora!”. E eu comecei a chorar e fui até os vizinhos, e eles me reconheceram pela voz e eu fiquei lá para dormir. E de manhã não conseguia sair para o pátio: tinham vindo muitas pessoas da cidade e todas me perguntavam se eu não tinha visto seu filho, sua filha”.
Dunia continua a viver, casa-se com um rapaz da aldeia, também de 1926, que também foi deportado para a Polônia, mas que conseguiu escapar e lutou no Exército Vermelho contra os nazistas. Depois de seis anos da libertação, nasce sua filha Olena em 1951 (algo muito raro para essas mulheres, pelo que sofreram no campo) e depois também um filho. Dunia estuda, quer ser professora: “Cursei magistério”. Começa a trabalhar, tem uma vida digna, leciona por 52 anos. Mas toda a sua vida, a do marido e de toda a família, fica para sempre marcada por Ravensbrück: “Na época aqueles que tinham estado na Alemanha, eram desdenhados. Eu sobrevivi à Alemanha, foi difícil, e aqui éramos consideradas vadias, nos desdenhavam. Eu podia estudar antes e agora não podia mais estudar nem mesmo trabalhar”. Muitos o escondiam: o fato de ter estado na Alemanha praticamente cancelava todas as perspectivas para essas pessoas que agora tinham que se contentar com o que o regime estava disposto a dar e não podiam aspirar a mais nada.
De fato, após o nascimento do seu segundo filho, quando a KGB descobriu que tinham sido deportados para a Alemanha, os despejam.
Enquanto estou lá, escuto sempre com atenção o que acontece lá fora: temos que prestar atenção às sirenes. A conversa não pode deixar de chegar à guerra de hoje. O país onde vivem não esteve sob a ocupação russa, mas justamente a apenas 30 km de distância existe uma cidade completamente destruída pelas bombas e outra que havia sido ocupada e foi libertada há apenas quatro meses. A filha conta que os aviões russos voavam tão baixo aqui que dava para ver as estrelas desenhadas na fuselagem e os rostos dos pilotos. A própria cidade ainda conserva vestígios de um terrível bombardeio ocorrido há um ano, bem no centro: grandes fossos, casas destruídas.
Yevdokiia custa a acreditar, ela me diz: “Uma guerra começou de novo”, mas pela sua voz entendo que é algo que não consegue engolir. Mesmo que tenha falado sobre isso mil vezes com a filha, me pergunta como se ainda quisesse uma confirmação, não apenas a da filha: “Foi a Rússia que avançou sobre nós com a guerra?”. “Sim, sim”, respondo. “Avançou?” - repete. “Eh, sim, infelizmente”, repito também.
A filha conta que quando os aviões chegam, a mãe até a consola: “Quando começaram a voar os aviões e tudo explodia, eu me assustava muito, mesmo tendo vivido sete anos de guerra quando morava no Tadjiquistão: lá só disparavam com os lança-granadas, não caiam bombas. Meus nervos não aguentavam, caía no chão, pegava nas mãos o ícone e começava a chorar. E ela: ‘Fica calma, calma, talvez eles no final não acertem aqui’. É isso, é ela que me consola...”.
Sim, é uma mulher muito forte. De vez em quando damos umas risadas. Tanto ela quanto a filha têm tanta força que conseguem dizer uma à outra com extraordinária força de espírito e certo humor até coisas que poderiam parecer muito cruéis para outros: "Mãe, quem queimaram quando você estava lá, quem da nossa cidade? "O quê?". “Quem queimaram?” “Os fornos queimavam, sim, botavam para queimar, mas eu não estive no forno”. "Bem, se eu tivesse estado, provavelmente não estaríamos conversando agora”.
Durante a entrevista muitas vezes me pergunta para que serve essa conversa, se tem relação com algum aniversário importante: a sua preocupação é que “agora ninguém acredite no que vivemos”. O seu desejo é “que ninguém reviva aquilo a que nós sobrevivemos”.
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Salva dos campos de concentração nazistas. Agora as bombas de Putin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU