11 Julho 2023
"Outras mulheres, escolhidas e magnificamente narradas por Lutaud, estão próximas dos papas recentes. Hermine Speier, uma arqueóloga judia protegida por Pio XI, é a 'monsenhorita' por muito tempo noiva do explorador ártico Umberto Nobile. A poderosa e astuta abadessa das Brigidinas Tekla Famiglietti se torna 'diplomata secreta' do Papa Wojtyła e chega até Fidel Castro", escreve Giovanni Maria Vian, historiador e ex-diretor do L'Osservatore Romano, em artigo publicado por Domani, 09-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mesmo no ambiente masculino e muitas vezes misógino do Vaticano, algumas mulheres conseguiram abrir uma brecha. No passado, a lenda de Petronila, filha de São Pedro, ou a intrigante história da papisa Joana deram corpo aos temores suscitados pelo elemento feminino. Mas houve santas em relação, até mesmo tempestuosa, com os pontífices – Hildegarda de Bingen e Catarina de Siena, declaradas “doutores da Igreja” por Bento XVI e Paulo VI – e mulheres influentes da cúria, como Vannozza Cattanei, amante de Rodrigo Borgia, mais tarde papa Alexandre VI, ou Cristina, a culta rainha da Suécia que se tornou católica e deixou o trono estabelecendo-se em Roma.
Após a queda do estado pontifical, para criar brechas nas compactas paredes masculinas do microcosmo do Vaticano (e aquelas do “sagrado palácio") são, de formas distintas, três mulheres. A religiosa alemã Teresa Bong tem acesso a Pio X - firme na doutrina, mas determinado reformador - e é apelidada de "o cardeal". Teodolinda Banfi é a primeira leiga a entrar, ainda que como camareira, no apartamento papal com Pio XI; mas o pontífice que terá que enfrentar Mussolini e Hitler é forçado por críticas da Cúria e, sobretudo, pela atitude autoritária de sua empregada, a aposentá-la depois de apenas três anos. Já a terceira, a famosa Irmã Pascalina Lehnert, chega ao Vaticano com o secretário de Estado Pacelli e lá permanece por quase trinta anos.
O primeiro encontro entre o futuro Pio XII e a religiosa chamada "a papisa" ou virgo potens - usando pela religiosa em uma invocação dirigida a Nossa Senhora – acontece em 1918 em Mônaco de Baviera. No ano anterior, o arcebispo Pacelli havia sido nomeado “núncio apostólico”, ou seja, embaixador do papa: “A figura alta e esguia, o rosto muito magro e pálido, com dois olhos que refletiam a alma e conferiam uma beleza particular” será descrita por madre Pascalina nas suas memórias.
Com apenas 24 anos, a freira bávara é destinada com duas freiras a servir na Nunciatura de Mônaco. Impôs-se de imediato no pessoal da representação diplomática e sobre as próprias coirmãs. Mas, acima de tudo, sabe conquistar a confiança do austero prelado, que a fascina e do qual começa a cuidar. Depois, em 1920, a morte repentina da mãe Virginia - a quem Pacelli é muito apegado – prostra o núncio. “Durante um ano foi sua governanta Pascalina que o acompanhou, cuidou dele, o consolou; sem hesitar, quando mostrava demasiada fraqueza, lhe reservava também um tratamento mais severo. Como a sua mãe”, escreve, acertando na mosca, Bénédicte Lutaud em seu grande sucesso Le donne dei papi (Guerini and Associati, editado por Vittorio Robiati Bendaud).
Os sussurros e as queixas se acumulam, também pela imperiosa prepotência da fiel colaboradora do diplomata. Inutilmente. Irmã Pascalina é indispensável e com ele se muda para Berlim, onde o arcebispo é o primeiro núncio. Nomeado cardeal e em 1930 secretário de estado, Pacelli a leva ao Vaticano, contra todos. Graças ao apoio de Pio XI, que - apesar da diversidade de caráter e pontos de vista – o estima e o apresenta como seu candidato à sucessão. Pascalina acompanha o Secretário de Estado em viagens que o ajudam a ser conhecido no mundo: a Buenos Aires, nos Estados Unidos, a Budapeste. Mas acima de tudo – a única mulher na história –entra no conclave que em menos de vinte e quatro horas em 1939 elege Pacelli.
Detestada pela cúria, mas apoiada por cardeais amigos como Faulhaber, o erudito arcebispo de Mônaco, e Spellman, o poderoso "papa americano" à frente da diocese de Nova York, a religiosa permanecerá ao lado de Pio XII durante todo o pontificado, não apenas como governante, mas como secretária pessoal: o papa confia em Pascalina. É ela, nos terríveis anos da guerra, quem organiza o estoque do pontífice e distribuir dinheiro, alimentos, remédios, roupas, até se definir “administradora da caridade universal do papa”. Ainda é ela quem fiscaliza rigorosamente o apartamento, o dia e os compromissos de Pio XII. E, finalmente, é sempre ela que se preocupa pela saúde do papa, cada vez mais acometido por doenças e que a freira defende sem levar em conta ninguém. Ela pagará por isso: morto Pacelli, na mesma noite de seu funeral deve deixar o Vaticano. Mas ela voltará como morta em 1983, para ser enterrada entre as palmeiras do minúsculo Cemitério teutônico ao lado de São Pedro.
Após os vinte anos dos papas do concílio (Roncalli e Montini) e o apêndice do brevíssimo pontificado de Luciani, com a eleição do polonês Wojtyła outra mulher entra no Vaticano, Wanda Półtawska. Originária de Lublin e hoje com mais de cem anos, à primeira vista pareceria uma réplica de Pascalina, também pelo caráter de aço e pelas visões conservadoras semelhantes, mas é uma leiga, e sua história é bem diferente. Muito jovem resistindo à ocupação nazista da Polônia, foi traída e torturada. Deportada para Ravensbrück, testemunha horrores indescritíveis e, como cobaia, é submetida por cirurgiões do campo a experimentos atrozes: três anos tenebrosos que ela relata em um livro (E ho paura dei miei sogni). Depois da guerra, Wanda estuda medicina e se torna psiquiatra, se casa com Andrzej, um jovem filósofo com quem terá quatro filhas.
Em 1952, em Cracóvia, a virada: em uma antiga igreja no centro da cidade encontra Karol Wojtyła, com quem ela se confessa. "É amor à primeira vista. Um raio espiritual. E como qualquer raio não pode ser explicado” Lutaud define com inteligência a relação entre os dois, que dura mais de meio século, até a morte do Papa. "Venha à missa pela manhã, venha todos os dias", lhe fala o jovem padre confessor no final. Karol se torna parte da família. As meninas o chamam de tio, mas para Wanda ele se torna “o Irmão”. Wojtyła e a mulher – a quem ele sempre chamará de Dusia ou “irmãzinha” – fazem confidências e escreveram um ao outro por décadas, trocando reflexões e meditações.
Todos os sete juntos no verão viajam em barracas pelas montanhas e florestas selvagens ao sul de Cracóvia, mas especialmente entre o futuro papa e sua amiga se consolida um vínculo intelectual e espiritual indestrutível. O pontífice frequentemente a quer no Vaticano, onde Wanda tem a chave do elevador que do pátio Sisto V leva diretamente ao apartamento papal. Após o atentado de 1981, ela descobre com o marido escutas no "palácio apostólico".
Por sugestão do papa, em 1993 começa a escrever suas próprias memórias. “Seria uma pena” queimá-las, confirma João Paulo II pouco antes de sua morte. Assim são publicadas as seiscentas páginas do Diario di una amicizia (San Paolo), com anotações escrito dia após dia, memórias e muitas cartas de Wojtyła. Nem todos aprovam a publicação, e é aberta a hostilidade de dois homens próximos ao papa que sempre se opuseram a ela: o secretário Dziwisz e porta-voz Navarro-Valls, por medo que o livro atrapalhe a beatificação do pontífice.
A antipatia do primeiro, retribuída por Półtawska, não é apenas ciúme por uma relação muito mais antiga e mais sólida, mas torna-se um conflito sobre o arcebispo Juliusz Paetz, acusado de moléstias contra seminaristas, que o poderoso secretário do papa protege e encobre, mas do qual Wanda consegue a destituição em 2002. Wojtyła – escreve Wanda recordando o seu primeiro encontro – “não queria dar si mesmo aos homens, mas conduzi-los a Cristo, por assim dizer, através de si mesmo, mas não a si mesmo". E quatro dias após a eleição, o papa confidencia à sua Dusia: quando Andrzej me disse que você tinha estado em Ravensbrück, "nasceu em minha consciência a convicção de que Deus me dava e me designava a você, de modo que em certo sentido eu ‘compensasse’ o que você sofreu lá. E eu pensei: ela sofreu no meu lugar".
Outras mulheres, escolhidas e magnificamente narradas por Lutaud, estão próximas dos papas recentes. Hermine Speier, uma arqueóloga judia protegida por Pio XI, é a "monsenhorita" por muito tempo noiva do explorador ártico Umberto Nobile. A poderosa e astuta abadessa das Brigidinas Tekla Famiglietti se torna "diplomata secreta" do Papa Wojtyła e chega até Fidel Castro.
Por fim, “a feminista do Vaticano”, a historiadora e jornalista Lucetta Scaraffia, graças a Ratzinger funda e dirige “Donne Chiesa Mondo”, a única revista feminina do Vaticano. “Vocês têm oposições” lhe pergunta Bento XVI em 2018. Não faltam, responde a combativa intelectual de Turim. “Então significa que vocês estão trabalhando bem”, a encoraja o papa emérito.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As mulheres que abriram a brecha nos muros do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU