21 Dezembro 2023
Estudo da coalizão Climate Action Against Disinformation encontrou mais de 65 mil postagens apenas no antigo Twitter, com linguagem empregada para distorcer os discursos pró-meio ambiente, além de 34 mil posts com mensagens ofensivas a pessoas ou ações a favor do meio ambiente. Na Amazônia, o discurso de ódio contra ativistas e lideranças segue padrão semelhante, segundo monitoramento do Mentira Tem Preço.
A reportagem é de Eduardo Geraque, publicada por InfoAmazonia, 20-12-2023.
Em 2019, a ativista sueca Greta Thunberg discursou na Cúpula do Clima da ONU, chamando atenção dos ativistas que protestavam pelo mundo contra a falta de enfrentamento às mudanças climáticas globais. Pouco antes disso, Dinesh D’Souza, um teórico da conspiração de extrema-direita nos Estados Unidos, usou o Twitter para associar a ativista (então uma adolescente de 16 anos) ao nazismo: postou uma foto de Greta e suas tranças ao lado de uma imagem antiga de uma jovem com um cabelo parecido, com uma suástica estampada no fundo. “As crianças, principalmente as meninas brancas nórdicas com tranças e bochechas vermelhas, eram frequentemente usadas na propaganda nazista”, escreveu. A fala histórica de Greta foi acompanhada, portanto, de um fenômeno que continua se repetindo: os ataques nas redes sociais a quem defende o meio ambiente.
Greta Thunberg em discurso na Cúpula do Clima, na sede da Organização das Nações Unidas. (Foto: Cia Pak | ONU)
O modus operandi da indústria da desinformação segue funcionando tanto no exterior quanto no Brasil. Um grupo pequeno, mas com financiamento por trás, dá vazão a um discurso extremista anticlima, segundo um levantamento publicado às vésperas da COP28 pela Climate Action Against Disinformation (CAAD), uma coalizão formada por mais de 50 organizações internacionais voltadas a combater desinformação climática.
O estudo encontrou, apenas no Twitter (atual X), mais de 65 mil postagens com uma linguagem empregada para descaracterizar os discursos pró-mudanças climáticas, além de outros 34 mil posts com mensagens ofensivas a pessoas físicas ou ações a favor do meio ambiente. Nesse segundo caso, as palavras-chave usadas foram “ecoterrorista” e “ecoterrorismo”.
As mensagens monitoradas pelo CAAD foram publicadas entre 1º de janeiro de 2022 e 30 de novembro de 2023. As palavras-chave foram buscadas de forma combinada e divididas em três grupos de linguagem: neutra, carregada de preconceitos contra as mudanças climáticas e seguramente anticlima.
Segundo os autores, o volume global de publicações contendo termos como “culto climático” ou “ecoterroristas” não aumentou dramaticamente nos últimos dois anos, mas a quantidade de republicações com comentários contendo essas mesmas palavras-chave em ataques diretos a ativistas ambientais estrangeiros – a pesquisa não aborda o Brasil – mais do que dobrou. As referências negativas, afirma o estudo, estão presentes em postagens de forte repercussão e atreladas a protestos específicos ou a pessoas amplamente preocupadas com o clima.
No Facebook e Instagram, redes também avaliadas na pesquisa, foram encontradas mais de 68 mil postagens, em mais de 35 mil contas únicas, contendo linguagem depreciativa como “lunático climático”, “ecoextremista”, “fanático verde” ou “terrorista Net Zero”. Esse conteúdo foi compartilhado 1,86 milhões de vezes de forma cumulativa nas duas plataformas.
Já no TikTok, devido à moderação de conteúdo mais rigorosa, os disseminadores do discurso de ódio criaram uma cultura de violência codificada. Eles usam de ironia para tentar escapar das políticas restritivas da plataforma chinesa. Mesmo quando o conteúdo original era considerado “neutro” em relação aos ativistas, a retórica violenta estava presente nos comentários. Segundo o estudo, as ameaças diretas a manifestantes climáticos eram raras, mas os usuários frequentemente postavam apoio à violência policial, com defesa para o uso de cassetetes, cães, spray de pimenta e de dispositivos de choque. Bater nos ativistas também estava entre os pedidos encontrados nas redes sociais.
No Brasil, o discurso de ódio contra lideranças e ativistas ambientais segue a cartilha do que está sendo feito lá fora. O projeto Mentira Tem Preço, que monitora discurso de ódio e desinformação sociambiental nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas, encontrou ataques de usuários formadores de opinião e até integrantes do governo contra lideranças e políticos que defendem a Amazônia e a pauta ambiental.
Um deles é de julho deste ano e usa o termo “ecoterrorista”, o mesmo que foi monitorado pelo estudo da CAAD fora do Brasil. Em seu canal no Youtube, o deputado Nikolas Ferreira distribuiu para as suas bolhas um dos discursos feitos por ele no Parlamento. Ao falar da reforma tributária, ele disparou contra Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima: “o imposto do pecado será usado por Marina Silva, por ecoterroristas, para poder taxar o agronegócio. Para poder acabar com a locomotiva aqui do nosso país”.
Em outro caso em janeiro deste ano, o comentarista Rodrigo Constantino, conhecedor das práticas internacionais da extrema direita, também seguiu na mesma linha e usou o mesmo termo na Jovem Pan: “o discurso da Marina Silva é um discurso de ecoterrorismo, da turma ambientalista, globalista, que tem interesses por trás dessa pauta alarmista que visa impedir o desenvolvimento brasileiro”. Em um outro caso de ataque à ministra, o pastor Sandro Rocha a chama de “cretina” no Youtube.
O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pela InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.
Segundo o monitoramento do Mentira Tem Preço, Marina Silva é uma das personalidades ligadas à pauta ambiental mais atacadas nas redes sociais. Em entrevista ao projeto em outubro de 2022, ela disse que a missão de sempre lutar contra a desinformação é algo que veio para ficar por se tratar de um processo a longo prazo.
“Essas mentiras tentam, o tempo todo, inviabilizar qualquer projeto — seja do ponto de vista científico, político e até mesmo empresarial — que possa concorrer ou ameaçar o modelo predatório de destruir recursos de milhares de anos pelo lucro de poucas décadas. É um grande prejuízo. A sociedade brasileira está mostrando, na dinâmica eleitoral, que não quer o caminho que os negacionistas, em aliança com o crime organizado, querem impor para o país”, disse Marina.
Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, em mesa de discussão da COP28, em 2023, em Dubai. (Foto: Mark Field | COP28)
O ciclo vicioso dos discursos de ódio e de desinformação na internet alimenta a violência no mundo real e vice-versa. “Já passei muito tempo excluindo comentários do meu Instagram de pessoas que nos perseguem” afirma Ivaneide Bandeira, a Neidinha Suruí, fundadora da Associação Etnoambiental Kanindé, de Rondônia. Uma emboscada vivida pela indigenista em maio deste ano (assista ao vídeo abaixo) é uma prova cabal, segundo ela, de como os discursos de ódio espalhados contra os defensores da floresta, do meio ambiente e do clima do planeta já extrapolaram as redes sociais.
“Claro que sim. Inclusive, políticos com seus discursos no Congresso acabam incitando as pessoas a nos matarem. A atirar na gente. Quero ver se eles vão ser responsabilizados se algo ocorrer”, afirma Neidinha, que também é a mãe da jovem liderança indígena Txai Suruí. As duas e outros cinco indígenas estavam em uma estrada que dá acesso a um posto de vigilância da Funai em Rondônia, quando foram cercados por invasores da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, como mostrou reportagem da InfoAmazonia.
“Aquilo foi uma emboscada. A situação está muito preocupante e perigosa, principalmente porque ficam jogando a própria população local contra nós. Mas o processo de retirada dos invasores continua e isso precisa ser feito, mesmo que a situação piore”, afirma Neidinha.
Neidinha Suruí e sua filha, Txai Suruí, na COP27, no Egito. (Foto: Divulgação)
Além do ataque ocorrido enquanto estava ao lado de sua mãe, a líder indígena Txai Suruí também foi alvo de discursos de ódio durante a COP26 em Glasgow, em 2021. Após defender os povos indígenas e o meio ambiente em discurso no evento, as redes sociais foram inundadas por imagens que seriam da jovem se divertindo em festas durante a conferência climática, acompanhadas de críticas a seu comportamento. As mensagens afirmavam que era inadequado uma indígena usar o celular e viajar para países estrangeiros. As fotos divulgadas não eram de Txai.
“Minha mãe me disse para continuar com minha mensagem de esperança e meu pai me lembrou de que sou uma guerreira de paz”, disse Txai, em sua conta no Twitter à época.
Lori Regattieri, pesquisadora associada ao Netlab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutora em comunicação e cultura, afirma que o cotidiano vivido por várias lideranças indígenas é resultado de uma “dinâmica complexa” e está, sim, relacionado com os discursos de ódio online: “a desinformação e a retórica inflamada nas plataformas digitais não apenas refletem, mas exacerbam tensões e conflitos reais. É um fenômeno que transcende um ciclo vicioso isolado”, explica.
Para Lori, a difamação nas redes sociais tem um impacto profundo porque realmente catalisa a violência no mundo real. “Particularmente contra povos indígenas, quilombolas e ambientalistas, além de lideranças locais (como sindicalistas, extrativistas, seringueiros, agricultores)”, explica.
Além disso, especialmente no Brasil, setores influentes do ponto de vista político e econômico, como da pecuária, da soja, do dendê e da mineração tornam o quadro ainda mais delicado. “Grupos ligados a esses setores empregam plataformas como WhatsApp e Telegram, além das redes sociais tradicionais, para disseminar um ambiente de medo e desconfiança, frequentemente recorrendo a teorias conspiratórias e desinformação. Essas práticas são particularmente evidentes em debates sobre licenciamento ambiental, direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais e a flexibilização do uso de agrotóxicos. Essas narrativas, muitas vezes, encontram eco nos discursos de figuras políticas e são amplificadas pela grande mídia, formando um ciclo que se sustenta independentemente das ações do governo executivo”, afirma a pesquisadora.
A luta indígena é constantemente atacada nas redes sociais e WhatsApp. Em janeiro de 2022, em um acampamento em Brasília, o cacique Agnelo Xavante, da Terra Indígena Etewawe (MT), foi obrigado a defender as organizações de base e desmentir um vídeo em processo de viralização. As imagens acusavam, sem provas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) de usar recursos do acampamento para outros fins e afirmava que as entidades não representavam as comunidades indígenas de todo o país. “O vídeo chegou em muitos grupos de WhatsApp. Aquilo doeu na gente. Você sabe o que são 320 aldeias xavantes irritadas? Isso nunca tinha acontecido. Eu, guerreiro do povo Xavante, não podia ouvir e ficar calado”, disse o líder Xavante na época.
Um outro levantamento do Mentira Tem Preço descobriu como o governo Bolsonaro criou para os seus adeptos uma Amazônia absolutamente fictícia, que não tem nenhum paralelo com a realidade. Os vários fatos desconectados estavam espalhados em 400 vídeos no YouTube, com cerca de 70 milhões de visualizações e 67 milhões de interações.
Segundo Lori, o problema precisa e pode ser resolvido: “os fatos atuais demonstram a necessidade urgente de protocolos de transparência nas plataformas de redes sociais, permitindo uma auditoria eficaz de seus conteúdos e a investigação detalhada das origens, circulação e impactos desses discursos. A compreensão e mitigação desses efeitos são fundamentais para confrontar esse ciclo de propaganda desinformativa e violência”, afirma.
“As bigtechs, ao priorizarem seus próprios interesses econômicos, negligenciam a responsabilidade com a integridade informacional. Em vez de promover um ambiente digital saudável e informativo, permitem a proliferação de desinformação e discursos de ódio, sem uma fiscalização efetiva. Essa abordagem resulta em um espaço público digital onde as regras são moldadas mais pelas políticas corporativas do que pelo interesse público, impactando negativamente a qualidade do debate e da informação compartilhada”, completa Lori Regattieri.
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Discurso de ódio mira ativistas climáticos e defensores da Amazônia nas redes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU