06 Outubro 2023
Acossados por inflação, empobrecidos e precarizados, metalúrgicos fazem greve histórica nos EUA. Nova direção sindical superou a pasmaceira, lançou métodos de luta criativos e tem a solidariedade dos inconformados com o neoliberalismo.
A reportagem é de Teddy Ostrow, publicada por Progressive International e reproduzida por Outras Palavras, 04-10-2023. A tradução é de Antonio Martins.
Atualizações:
> Uma coalizão de grupos da sociedade civil anunciu no início do mês planos para um dia nacional de ação solidária com os grevistas. Participam movimentos como Public Citizen, Greenpeace, 350.org, Rede Green New Deal, Sunrise Movement e os Socialistas Democráticos dos EUA. Os atos ocorrerão em 7 de outubro. [Saiba mais]
> Vale também ler o notável (embora breve) discurso da deputada Alexandria Ocasio-Cortez aos grevistas de Wentzville, em 24/9.
Pouco antes da meia noite de 14 de setembro, um grupo de membros do sindicato nacional dos metalúrgios automobilísticos dos EUA [United Auto Workers (UAW)] e seus apoiadores começou a se reunir em frente a fábrica da Ford em Wayne, estado de Michigan. Uma fila de carros buzinantes já começara a sair dos portões. Do lado de fora da sede local 900 da UAW, adjacente à indústria, as vans brancas estavam prontas e, bem rápido, as linhas de piquete estavam montadas.
À meia-noite, era oficial: pela primeira vez na história do sindicato, os trabalhadores da UAW nas “Três Grandes” montadoras – Ford, GM e Stellantis[1] (anteriormente Chrysler) – estavam em greve simultaneamente. A nova estratégia do sindicato de greves “stand up”, em que locais selecionados eram gradualmente convocados para entrar em greve em suas plantas, começou a vigorar. Duas horas antes, às 22h, em uma transmissão ao vivo no Facebook, o presidente da UAW, Shawn Fain [2], havia anunciado os primeiros alvos do sindicato.
Em poucos dias, quase 13.000 trabalhadores haviam abandonado emprego, interrompendo a produção de caminhões e SUVs no Complexo de Montagem de Toledo da Stellantis, em Ohio, na linha da GM em Wentzville, no Missouri, e nos departamentos de montagem final e pintura da Ford em Michgan. Milhares de outros trabalhadores estão em casa, e espera-se que outros juntem-se a eles, depois que a GM temporariamente demitiu 2.000 funcionários em sua fábrica de Kansas, seguindo demissões de grupos menores na Ford e na Stellantis.
A nova liderança sindical, bem mais militante, da UAW vinha alertando as “Três Grandes” há meses de que uma greve estava a caminho, se um acordo provisório não fosse alcançado antes de expirarem os contratos anteriores, em 14 de setembro. Mas essas ameaças não sensibilizaram as empresas na mesa de negociações, como evidenciado por suas tímidas propostas de contrato.
É difícil resumir tudo o que está em jogo nesta luta. Os membros da UAW estão determinados a recuperar décadas de retrocessos e concessões, sob direções sindicais anteriores, e o que viram escorrer pelos dedos a cada novo acordo. Para tanto, o sindicato está lutando por aumentos de dois dígitos, pela reinstalação de reajustes salariais automáticos para repor a inflação, pela redução das desigualdades exorbitantes de salários e benefícios, pela restauração dos benefícios médicos e previdenciáios, segurança no emprego diante de fechamentos de fábricas, melhor equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e fim do recurso abusivo aos trabalhadores temporários.
Assim como ocorreu com outras greves históricas do sindicato, nas décadas de 1930 e 1940, a luta atual da UAW contra as “Três Grandes” pode ter implicações para a classe trabalhadora em geral. Seus resultados podem construir um novo cenário para sua batalha existencial por sindicalizar e elevar os padrões laborais das indústrias crescentes indústrias de veículos elétricos e baterias — que receberam centenas de bilhões de dólares do governo Joe Biden e do Congresso, na forma de subsídios governamentais, empréstimos e incentivos fiscais, embora com poucas contrapartidas trabalhistas.
“A parte vergonhosa da transição para veículos elétricos é que está sendo financiada por nossos impostos; as empresas estão levando todo o dinheiro, como sempre, e nem mesmo consideram a mão de obra”, disse-me Fain na linha de piquete da fábrica de Michigan. “As corporações e bilionários ficam com todo o dinheiro, e a classe trabalhadora é deixada para trás. Isso precisa acabar.”
Apesar dos lucros recordes, que totalizaram um quarto de trilhão de dólares na América do Norte ao longo da última década, as “Três Grandes” alegaram pobreza e pintaram as demandas da UAW como totalmente inviáveis. Mas os negociadores corporativos falharam completamente em compreender o quão sérios os ativistas estão em relação às suas demandas e à sua disposição de obtê-las em luta.
Naquela primeira noite, a cena na fábrica de Michigan estava animada, e relatos das outras duas linhas de piquete sugeriam ânimo semelhante.
Em Wayne, alguns trabalhadores juntaram-se ao piquete. Era território novo para a maioria dos trabalhadores da Ford, que não entravam em greve desde 1978. Mas a surpresa era inevitável em todos os locais. Os alvos da greve foram mantidos intencionalmente em segredo pelo sindicato, — tanto das empresas quanto de seus membros –, para causar confusão entre as “Três Grandes” e impedi-las de agir antecipadamente para mitigar os efeitos da greve. Repórteres do site alternativo In These Times confirmaram com a Stellantis que a empresa não tinha ideia de que sua fábrica Jeep de Toledo (estado de Ohio) era um dos primeiros alvos da greve.
Apesar de uma mistura vertiginosa de empolgação, ansiedade e até alguma confusão nos primeiros dias da greve, trabalhadores em três linhas de piquete me disseram que estavam prontos e dispostos a lutar. “É minha primeira greve, mas estou aqui. Me sinto forte”, disse Brandi White, operária de linha de montagem com sete anos de experiência em Michigan, na linha de piquete da Ford após a meia-noite. Momentos depois do início da greve, White descreveu-se como “surpresa, mas feliz”.
“Sinto que todos nós nos unimos por uma causa maior. Todos nós estamos aqui lutando, e estamos tornando isso público”, disse ela. “É uma história sendo feita”, disse Robert Harrison, operador de empilhadeira na Michigan Assembly. “É para o futuro. É um começo aqui. Isso abrirá muitas portas da nossa geração os mais jovens.” “Estou ansiosa para saber qual será o resultado”, disse Adelisa Lebron, que trabalha há três anos na linha de motores da Ford.
Segurando um cartaz de piquete com sua filha pequena ao lado, Lebron disse que estava preocupada em viver com um salário de greve de 500 dólares por semana. “Sou mãe solteira, tenho três filhos, e esse dinheiro não vai dar para cobrir o que tenho que pagar”, disse ela.
Ainda assim, ela acredita que a greve é necessária, e está irritada com as empresas, não com o sindicato: “É irritante para pessoas como nós que trabalhamos aqui, nos esforçamos todos os dias, e a direção simplesmente não se importa.”
Oitenta quilômetros ao sul, no Complexo de Montagem de Jeep (Stellantis) em Toledo, os trabalhadores irromperam em aplausos quando Shawn Fain anunciou, em transmissão ao vivo do Facebook, que sua planta estava entre as três primeiras a serem convocadas para a greve.
Melanie Smith, que trabalha na Stellantis há nove anos, estava ao telefone com sua mãe, também trabalhadora automobilística, no turno da tarde no setor de carrocerias da Jeep, quando a notícia se espalhou.
“Eles estavam indo à loucura, muito animados para finalmente lutar pelos nossos direitos”, disse Smith sobre os trabalhadores, cuja voz se ouviu no fundo de sua chamada telefônica. “Todo mundo começou a gritar.”
Na sexta-feira, 15 de setembro, fui até complexo da Stellantis em Toledo.
Cheguei a um dos portões onde os trabalhadores se reuniam, do lado de fora, muitos deles dançando ao som do hip-hop que saía de uma caixa de som. Um barril de lenha a queimar e uma pilha de madeira picada aguardavam o uso, durante os turnos noturnos mais frios. Vi cenas semelhantes de alegria em todos os outros portões ao redor da fábrica.
Samantha Parker, que trabalha há dez anos na linha de montagem da Jeep, balançava seu cartaz de piquete à beira da estrada, ganhando buzinadas de solidariedade dos que passavam.
“Estamos aqui porque queremos um contrato justo – e para recuperar aquilo a que renunciamos quando ajudamos a salvar a indústria automobilística”, disse ela.
Parker se referia às concessões que a UAW fez às “Três Grandes” após as falências e os subsequentes resgates com dinheiro dos contribuintes da GM e Chrysler em 2009. Naquele ano, para ajudar a manter as empresas à tona em meio a uma crise financeira mundial cada vez mais profunda, os trabalhadores automobilísticos abriram mão de ajustes salariais segundo o custo de vida (COLA [3]). Esta havia sido uma cláusula nos contratos da UAW por mais de meio século, e garantia que os salários acompanhassem a inflação. Ao discutir sua demanda por COLA, os trabalhadores na linha de piquete mencionavam a pressão financeira causada pelos aumentos de inflação sem precedentes dos dois anos anteriores.
Dois anos antes das falências, o sindicato já havia estabelecido um sistema de dois níveis nas fábricas, à medida em que negociava a eliminação de benefícios de aposentadoria definida e de benefícios médicos — a que tinham direito todos os trabalhadores contratados após 2007. Em vez disso, os assalariados “de segundo nível” receberam planos de aposentadoria inferiores, dependentes do mercado, e salários iniciais e máximos mais baixos. Algum dia, seus contratos igualariam os direitos dos trabalhadores do primeiro nível, mas apenas após oito anos, que os sindicalists consideram um tempo irrazoavelmente longo.
A falta de benefícios de aposentadoria suficientes é insultante, de acordo com Parker. “Nós sacrificamos tanto de nossos corpos e tempo para construir Jeeps, e não somos valorizados por isso”, disse ela. Então, apontou para o pulso esquerdo. “Tenho síndrome do túnel do carpo bilateral. Acabei de fazer uma cirurgia em uma das mãos e tenho que fazer na outra. Tenho um filho de dois anos e dói até para segurá-lo”. “É assustador”, continuou ela, “porque se meu corpo já está se desgastando agora, como será depois de estar aqui por 20, 30 anos?”
Na linha de piquete de Toledo, a frustração também se concentrava no abuso de trabalhadores temporários pela empresa. O número de “temporários” explodiu nas “Três Grandes” após os resgates, mas especialmente na Stellantis.
Devin Dominique, que trabalha na linha de produção na fábrica Jeep de Toledo desde 2018, é temporário em meio período, algo que ele chamou de “um pouco de merda”.
Na Stellantis, o salário inicial dos temporários é um pouco menos de 16 dólares por hora, e o teto é de cerca de U$19. Está muito aquém do salário máximo de U$32 por hora dos trabalhadores permanentes em tempo integral. Dominique acha ridículo que haja uma disparidade tão grande entre ele e os permanentes, porque faz o mesmo trabalho que eles e trabalha regularmente 60 horas por semana.
“Acredito que todos os temporários sintam o mesmo que eu”, disse ele. “Acho que todos querem ser contratados [permanentemente], e não acho que seja pedir muito.”
Os dois avós de Dominique trabalharam e se aposentaram no complexo de Toledo. Ele diz que gostaria de fazer o mesmo. Mas depois de cinco anos como temporário, não tem certeza de quando isso acontecerá, pois não há um caminho garantido para sua contratação permanente. Ele apoia a pressão do sindicato para que as “Três Grandes” contratem todos os seus temporários atuais imediatamente e estabeleçam um prazo de 90 dias para o status permanente, em futuras contratações temporárias.
Perguntei a Dominique como se sentiu quando soube que sua fábrica entraria em greve. O pai de dois filhos estava em casa quando ouviu a notícia. “Minha namorada realmente começou a chorar porque está preocupada com o pagamento de nossas contas”, disse ele. “Mas eu disse a ela que esta é a primeira vez que tenho um sinal de alívio nesta empresa, há muito tempo”, continuou ele – “porque sei que esta é uma das únicas maneiras de conseguirmos o que queremos e precisamos.”
Para a maioria dos trabalhadores nas linhas de piquete da Ford e da Stellantis, era a primeira greve. Na fábrica da GM em Wentzville, no entanto, muitos tinham ido para a linha de piquete com 48.000 colegas sindicalizados, em 2019.
Kyle McLaughlin, que trabalha na linha de produção da montagem de Chevy Colorados e Canyons, foi um. Em uma ligação telefônica, ele explicou que ele e seus colegas se sentiram muito mais preparados desta vez. “Definitivamente sinto que o sindicato está se comunicando melhor”, disse McLaughlin, referindo-se às notícias atualizadas sobre negociações, oferecidas pelo presidente da UAW, Fain, nas transmissões ao vivo via Facebook e ao compromisso geral com uma maior transparência, estabelecido entre a liderança atual e os membros do sindicato.
McLaughlin não gostou de a liderança sindical anterior realizar negociações a portas fechadas em 2019. Naquele ano, não se obteve muito para compensar as concessões dos anos anteriores. Agora, ele acredita que o sindicato está adotando posições mais duras nas negociações, e ele aprecia o fato de que o salário de greve semanal foi aumentado de U$ 400 para U$ 500, o que ajudará financeiramente os grevistas. “Vai ser muito mais fácil para todos”. McLaughlin acredita que isso colocará o sindicato em uma posição mais forte para conquistar suas demandas.
Mas as mudanças descritas por ele refletem uma mudança mais ampla, ocorrida na UAW nos últimos meses. Por quase 80 anos, até março deste ano, o sindicato era dirigido por uma única corrente interna. Uma sensação generalizada de traição pelos recentes escândalos de corrupção nas diretorias anteriores da UAW, juntamente com a insatisfação geral com anos de retrocesso na mesa de negociações, convenceram a maioria dos membros de que o próprio sindicato precisava de uma mudança. Com a ajuda dos esforços de organização do movimento de reforma da base dos trabalhadores Unite All Workers for Democracy (UAWD), os membros do sindicato finalmente conseguiram romper a corrente. Na primeira eleição direta de dirigentes, os membros escolheram uma chapa de líderes apoiada pela UAWD[4], que prometeu levar a sério suas demandas orgânicas e responsabilizar as “Três Grandes”.
A estratégia de greve “stand-up” é apenas uma das muitas inovações da atual liderança que rompem com a maneira antiga de fazer as coisas. Em vez de convocar todos os trabalhadores para a greve em massa, o sindicato tem como alvo fábricas específicas e está usando a ameaça de aumentar a dor econômica das empresas com mais paralisações. A lógica é manter as corporações obrigadas a adivinhar onde o sindicato pode entrar em greve no momento seguinte, a fim de maximizar a alavancagem na mesa de negociações.
A estratégia também ajuda a preservar o fundo de greve de U$ 825 milhões da UAW, pois os membros em outras fábricas, que podem ser demitidos devido à escassez de peças, recorrem ao seguro-desemprego, em vez dos cofres do sindicato. “Acho que é uma estratégia nova, empolgante e criativa, e quero vê-la funcionar”, disse Sean Crawford, membro da UAW Local 160, trabalhador da GM no Warren Tech Center, e membro da UAWD. “É mais provável que funcione porque seremos capazes de estender a greve e o fundo de defesa”.
Embora muitos trabalhadores tenham elogiado a nova estratégia nas linhas de piquete, alguns que não estavam em greve desejavam que fosse uma guerra total, com todos os 146.000 trabalhadores automobilísticos das “Três Grandes” em greve ao mesmo tempo. Afinal, o sindicato tem uma longa e orgulhosa tradição militante, e eles querem ser parte disso.
Mas a UAW internacional buscou manter a energia mesmo entre os membros que ainda estão trabalhando. Shawn Fain encorajou os não-grevistas, com o apoio de suas lideranças locais ou não, a “levantar-se” de qualquer maneira que puderem – mantendo a pressão sobre seus empregadores com comícios, por exemplo, ou recusando horas extras voluntárias, como alguns trabalhadores fizeram nas “Três Grandes”, para retardar a produção. Enquanto isso, Fain enfatizou que o mais importante era “não deixar que ninguém fique para trás” e fazer com que todos os membros se sentissem envolvidos na greve.
Apesar dos obstáculos, os grevistas nas três fábricas continuavam a mostrar determinação e otimismo sobre sua capacidade de vencer esta luta.
Do lado de fora da fábrica Jeep em Toledo, Melanie Smith resumiu a sensação geral. “Estamos prontos para lutar”, disse ela. “Estamos com você, trabalhadores automobilísticos, onde quer que você esteja. Mantenham-se fortes, e vamos superar isso.”
As greves nas “Três Grandes” ainda estão em andamento, e as negociações estão em curso. A luta pelos direitos dos trabalhadores e melhores condições de trabalho é uma questão importante para a classe trabalhadora em todo o mundo.
[1] Megacorporação global surgida a partir da fusão das antigas FIAT, Peugeot, Citroên, Crysler, Dodge, Opel e outras [Nota de Outras Palavras]
[2] Presidente do UAW. Assumiu em março deste ano, num movimento de reação diante da paralisia e apego ao passado da antiga direção sindical. Ver mais na Wikipedia [Nota de Outras Palavras]
[3] COLA: Cost-of-living Adjustments, ou Reajustes segundo o Custo de Vida [Nota de Outras Palavras]
[4] Movimento nacional pela democratização dos sindicatos, nos EUA. Veja sua página na internet. [Nota de Outras Palavras]
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Luta de classes… onde menos se esperava - Instituto Humanitas Unisinos - IHU