19 Setembro 2023
Na tarde de sábado, 19-09-2023, a polícia apossou-se da residência Villa Carmen, propriedade da Companhia de Jesus, na Nicarágua. Nesta residência vivia o padre Adolfo López, 98 anos, e ele não estava na casa naquele momento.
A reportagem é de Hans Lawrence Ramírez, publicado por La Prensa, 18-09-2023
Quando regressou, disseram-lhe que já não podia viver ali porque a propriedade passou a pertencer ao Estado. Padre Adolfo, como ele é chamado, partiu antes da chegada da polícia junto com outros cinco padres que também moravam na residência Villa Carmen, localizada na zona sul da Universidade Centro-Americana (UCA), confiscada três dias antes. Ele guardou apenas o relógio e a carteira, mas o restante de seus pertences, como a coleção de 12 mil peças de conchas e caracóis, foram deixados no local com a polícia.
Segundo um comunicado divulgado pela Província Centro-Americana da Companhia de Jesus, os padres mostraram à polícia a escritura e os documentos que comprovavam que o imóvel pertencia à Associação da Companhia de Jesus da Nicarágua, mas os agentes não lhes prestaram atenção e ordenaram para que saíssem da residência. A Associação Companhia de Jesus funcionava no país desde maio de 1995. Esta foi cancelada na quarta-feira, 23 de agosto, pelo Ministério do Interior, ou seja, quatro dias depois que a polícia tomou Villa Carmen. Nesse dia, o Pe. Adolfo já havia sido acolhido na comunidade San Ignacio do Colégio Centro-América de Manágua, onde permanece atualmente, pois se recusa a deixar o país.
Adolfo López de la Fuente nasceu em Bilbao, na Espanha em 1924, em uma família católica de oito irmãos, quatro meninos e quatro meninas. A família mudou-se para a Inglaterra e mais tarde para a Bélgica. Regressou à Espanha em 1939 e estudou Engenharia no Instituto Católico de Artes e Indústrias (ICAI) de Madri. Em 1949, ingressou na Companhia de Jesus. Logo seria enviado à China em missão religiosa e, em 1951, foi enviado para estudar Filosofia e Teologia nas Filipinas. Foi lá que se interessou pela malacologia, ramo da zoologia responsável pelo estudo dos moluscos. O interesse pela malacologia a levou aos Estados Unidos, onde fez doutorado em Engenharia na Universidade de Missouri, que concluiu em 1967. Mais tarde, retornaria ao continente asiático para lecionar na Universidade Chengkung, em Taiwan, e na Universidade de San Carlos, nas Filipinas. Em 1976, foi enviado à Nicarágua para a Faculdade de Engenharia da Universidade Centro-Americana (UCA) e um ano depois, junto com seu irmão e também padre jesuíta e cientista, Julio López de la Fuente, fundou o Centro de Malacologia e Biodiversidade Animal.
No início, este o Centro de Malacologia dedicava-se exclusivamente ao estudo dos moluscos marinhos, mas a partir de 1988 alargou o seu campo de estudo aos moluscos continentais, aquáticos e terrestres. Estes estudos, liderados pelo Pe. Adolfo, deixaram uma valiosa contribuição para a ciência. Carlos Tünnerman detalhou em escrito que os estudos realizados pelo Centro de Malacologia dirigido pelo padre “resultaram em exemplos de modelos estatísticos e matemáticos de apoio ao ensino e instrumentos de medição do estado da biodiversidade da Nicarágua”.
Padre Adolfo López é membro da Academia de Ciências da Nicarágua. (Foto: Reprodução | Redes Sociais)
Em outubro de 2013, as autoridades da UCA inauguraram um laboratório de engenharia com o nome dos irmãos Julio e Adolfo López de la Fuente, SJ, em reconhecimento pela sua contribuição para a ciência e a investigação no país. Nessa altura, os meios de comunicação oficiais destacaram a construção do laboratório e o trabalho de ambos os padres: o do Pe. Adolfo na área da malacologia, e o do seu irmão, Pe. Julio, com os seus estudos sobre a radiação solar no país. “As aulas de engenharia que aqui ministramos procuram garantir que os formandos tenham em mente não só o propósito econômico e industrial do que fazem, mas também o bem do povo”, disse então o Pe. Adolfo.
Em 2019, o Centro de Malacologia contava com um inventário de mais de 2.000 espécies de moluscos. A maioria era originária da Nicarágua e outros foram coletados no Mar Mediterrâneo, Nova Zelândia, Austrália, Japão, Chile, Cuba e Filipinas. Dezenas de publicações científicas também foram publicadas neste centro de pesquisa, incluindo 4 livros. Em novembro daquele ano, a Academia de Ciências da Nicarágua incorporou o Padre Adolfo como cientista honorário. O acadêmico Ernesto Medina conheceu o Padre Adolfo em 2000, quando era reitor da Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua (UNAN León). Um dia, conta Medina, visitou a UCA e alguém o apresentou ao Pe. Adolfo, que rapidamente lhe mostrou a sua coleção de moluscos.
“Devo confessar que até então nunca tinha ouvido a palavra malacologia. Não era uma ciência que eu conhecesse e fiquei muito curioso e por isso conversei com ele para me explicar o que era a malacologia”, conta Medina, que descreve o Pe. Adolfo como uma pessoa simples e ativa, apesar da idade avançada. O acadêmico conta que, naqueles anos, Adolfo se interessou em fazer o estudo mais completo possível sobre os moluscos da Nicarágua, o que se concretizou em 2008 com a publicação de seu livro Moluscos de Nicarágua, para o qual viajou por todo o país em busca de essas espécies. “Sem dúvida foi um trabalho de santo, porque imagino visitar todas as praias da Nicarágua, com o que isso significa. Debaixo do sol, debaixo da chuva, em estações diferentes, porque com certeza os ciclos de vida desses moluscos eram todos diferentes”, comenta Medina, que considera que a obra do Pe. Adolfo é uma das mais completas que existem na América Latina.
Em 2019, foi incorporado como membro honorário da Academia de Ciências da Nicarágua. Ele está acompanhado na imagem pelo cientista Jaime Incer Barquero. (Foto: Reprodução | Redes Sociais)
Um jornalista científico que conheceu o Pe. Adolfo em 2015, e que pede anonimato, conta que “um dia por curiosidade me ocorreu visitar o seu laboratório. Bati na porta e o velho saiu devagar e me deixou entrar sem problemas. Ele imediatamente começou a conversar comigo sobre o trabalho que fazia e me mostrou a coleção de conchas. Tinha conchas de moluscos por toda parte. Dentro da gaveta, na mesa, no microscópio da gaveta. Lembro bem que o tronco de um peixe-serra estava exposto na parede acima da sua secretária. Ele gostava muito de falar sobre o seu trabalho”, lembra González, que descreve o Pe. Adolfo como uma pessoa séria, intelectual, rigorosa e apesar da sua acessibilidade pode ser difícil conversar com ele devido ao nível de tecnicalidades que utiliza ao falar. Após a expulsão dos jesuítas da residência de Villa Carmen, vários religiosos idosos foram transferidos para uma nova comunidade em El Salvador, mas o Pe. Adolfo não quis sair da Nicarágua. Os jesuítas respeitaram a sua decisão e estarão atentos à sua situação de saúde. O padre já mora na Nicarágua há mais de 45 anos.
Padre Adolfo junto com outros cientistas do país. (Foto: Reprodução | Redes Sociais)
Numa entrevista que concedeu ao meio de comunicação "Onda Local", a única que concedeu após ser expulso de Villa Carmen, o padre disse que não sabia se deveria deixar o país. “Se sairmos daqui não sei para onde irei. Talvez para a Costa Rica, porque não sei se chegarei à Espanha antes de morrer”, disse. “Sou estrangeiro, pedi nacionalidade, mas não me deram, embora eu tenha escrito três livros sobre mariscos da Nicarágua”, acrescentou, e atribuiu que lhe negaram a nacionalidade nicaraguense por ser um dos especialistas que criticou e escreveu sobre o impacto ambiental da construção do Canal Interoceânico. Para Ernesto Medina, o tratamento que o regime tem dado ao Pe. Adolfo é “humilhante”. “Só pode fazê-lo um governo de bárbaros, que não respeite primeiro a idade deste homem e que não tenha ideia, creio eu, do trabalho que este padre e cientista fez para a Nicarágua, porque este é um estudo para a Nicarágua e para a Nicarágua, ou seja, sem ele, sem o seu trabalho, acredito que hoje estaríamos sem conhecer uma parte da Nicarágua”, menciona Medina.
Agora, toda a obra do Pe. Adolfo e o Centro de Malacologia que ele fundou na UCA estão nas mãos da ditadura, que confiscou a universidade e a rebatizou de “Universidade Casimiro Sotelo”. Em entrevista ao Onda Local, o padre sente saudades de tudo que deixou na residência de onde foi expulso. “Deixei tudo em Villa Carmen, todos os meus pertences particulares, além das minhas coisas de malacologia. Deixei uma coleção com 12 mil peças de conchas e caracóis. A única coisa que tirei foi meu relógio e minha carteira. Não pensei que fosse uma despedida e que voltaria no mesmo dia. Envio muitos cumprimentos aos meus colegas da UCA. Não sei se os verei novamente. “Tenho quase cem anos e estou bem agora”.
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Nicarágua. A história do Pe. Adolfo López, de 98 anos, que ficou desabrigado pelo regime de Ortega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU