"Celebrar a Assunção de Maria, em nossos dias, significa não retomar o poder glorioso e triunfalista a ela atribuído na sua Assunção, o que representou o poder da Igreja Medieval, mas resgatar o poder libertador que ela nos mostrou no canto Magnificat, em Lc 1,39-57 e no Apocalipse".
O comentário do evangelho sobre a Solenidade da Assunção de Nossa Senhora é elaborado por Frei Jacir de Freitas Faria, OFM.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.
Na celebração da Assunção de Maria, a liturgia nos propõe como leitura Ap 12,1-10, texto que fala de uma mulher vestida de sol, um dragão poderoso e um filho indefeso. Essa passagem revela o poder da mulher Maria e a força da linguagem apocalíptica.
Apocalipse 12,1-10 trata, em linguagem apocalíptica, da realidade de perseguição dos primeiros cristãos. O texto fala de esperança e não de medo. Os primeiros cristãos são chamados a resistir, e esperar diante do Dragão, o império romano, que os perseguia. O poder do mal é absoluto, forte, parece invencível, tem sete cabeças, sete chifres e sete diademas. Sua cor é vermelha, o que simboliza o sangue derramado por ele. O dragão, apesar de toda a sua força, será derrotado pela força do ressuscitado, que derramou sangue de vida nova. A mulher vestida de sol está integrada com a criação, tem relação com as comunidades que sofre dores de parto.
Ainda que o poder do mal queira devorar o seu filho, ele nasce e vai para junto de Deus. A mulher foge para o deserto, lugar que simboliza a presença da força de Deus na terra. A mulher é terrena. Seu Filho, o Messias, é divino.
Na história da devoção mariana, o século V marcou no Oriente a celebração única da Theotokos, a Mãe de Deus, celebrada também no dia de Natal, uma semana antes ou um dia depois dele. Na verdade, o nascimento de Jesus era celebrado junto com a sua mãe. Essa devoção foi substituída, com a popularidade dos apócrifos da dormição, para a festa da Dormição, com consequente desmembramento dela do evento do Natal. O século VI marcou no oriente a celebração de duas festas: a da Dormição e a da Assunção.
O Império Romano no Ocidente, no século VII, com o papa Sérgio I incorporou festas marianas importantes, como o Nascimento, a Dormição e a Assunção, no seu calendário. A festa da Assunção de Maria no Império Romano, ao celebrar o natalício de Maria, isto é, a sua assunção, após a dormição/morte, teve como objetivo afirmar que ela é excelsa sobre todos os mártires. Essa festa passou a ser a ‘festa das festas’. Por isso, no dia 15 de agosto, o povo, alegremente, tomava as ruas em honra à Mãe de Deus, assunta aos Céus. [1]
No período da Alta Idade Média (séculos V ao X), a devoção a Maria se expandiu em demasia na piedade popular, influenciada pelos apócrifos marianos assuncionistas, largamente difundidos entre os cristãos. A Igreja assumiu, como parte de seus ensinamentos e celebrações litúrgicas, a festa da Assunção de Maria de corpo e alma para o céu. A Dormição evolui para assunção.
Na Baixa Idade Média (Séc. X ao XV), Maria, por ser a mãe de Jesus, foi revestida de poder para intervir diante do Filho em prol dos cristãos que viviam ameaçados pela Igreja, com o seu discurso de medo da morte e do Inferno. A Igreja esperou muitos séculos para definir o dogma Assunção de Maria, somente em 1950. Essa festa era celebrada, primeiramente do Oriente.
Celebrar a Assunção de Maria, em nossos dias, significa não retomar o poder glorioso e triunfalista a ela atribuído na sua Assunção, o que representou o poder da Igreja Medieval, mas resgatar o poder libertador que ela nos mostrou no canto Magnificat, em Lc 1,39-57 e no Apocalipse. Não o poder do mal, mas da força que nasce de uma vida liberta, quando os poderosos serão destituídos de seus tronos. Alimentemos, com Maria, essa esperança para continuar vivendo em meio a dragões, a exemplo da mulher apocalíptica.
[1] RIGHETTI, M. História de la liturgia. Madrid: Biblioteca de los Autores Cristianos, 1995. v. I. p. 901-904, apud BOROBIO, A celebração na Igreja, v. 3, p. 205.