08 Agosto 2023
“Rezemos uns pelos outros ao Espírito, peçamos-lhe que nos ajude a não cair, tanto na vida pessoal quanto na ação pastoral, naquela aparência religiosa cheia de tantas coisas, mas vazia de Deus, para não sermos funcionários do sagrado, mas apaixonados anunciadores do Evangelho, não ‘clérigos de Estado’, mas pastores do povo. Precisamos de conversão pessoal e pastoral.”
Publicamos aqui a carta que o Papa Francisco enviou aos padres da Diocese de Roma, divulgada pelo boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, 08-08-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Caros irmãos sacerdotes,
Desejo ir ao encontro de vocês com um pensamento de acompanhamento e de amizade, que, espero, possa lhes sustentar enquanto levam em frente seu ministério, com sua carga de alegrias e de fadigas, de esperanças e de desilusões. Precisamos trocar olhares cheios de cuidado e compaixão, aprendendo com Jesus que olhava assim para os apóstolos, sem exigir deles um cronograma ditado pelo critério da eficiência, mas oferecendo atenção e refrigério. Assim, quando os apóstolos voltaram da missão, entusiasmados, mas cansados, o Mestre lhes disse: “Vamos sozinhos para algum lugar deserto, para que vocês descansem um pouco” (Mc 6,31).
Penso em vocês neste momento em que, junto com as atividades de verão [na Europa], pode haver também um pouco de repouso depois dos esforços pastorais dos últimos meses. E, acima de tudo, gostaria de lhes renovar o meu agradecimento: “Obrigado pelo seu testemunho, obrigado pelo seu serviço; obrigado por tanto bem oculto que vocês fazem, obrigado pelo perdão e pela consolação que vocês dão em nome de Deus [...]; obrigado pelo seu ministério, que muitas vezes se realiza entre tantas fadigas, incompreensões e poucos reconhecimentos” (Homilia para a Missa Crismal, 06-04-2023).
Por outro lado, o nosso ministério sacerdotal não se mede pelos sucessos pastorais (o próprio Senhor os teve cada vez menos com o passar do tempo!). No coração da nossa vida, não há sequer o frenesi das atividades, mas sim o fato de permanecer no Senhor para dar frutos (cf. Jo 15). É Ele o nosso alívio (ver Mt 11,28-29). E a ternura que nos consola brota da sua misericórdia, do acolhimento do “magis” da sua graça, que nos permite ir em frente no trabalho apostólico, suportar os insucessos e os fracassos, alegrar-nos com simplicidade de coração, ser mansos e pacientes, recomeçar sempre de novo, estender a mão aos outros.
De fato, os nossos necessários “momentos de recarga” não ocorrem somente quando descansamos física ou espiritualmente, mas também quando nos abrimos ao encontro fraterno entre nós: a fraternidade conforta, oferece espaços de liberdade interior e não nos faz sentir sozinhos diante dos desafios do ministério.
É com esse espírito que eu escrevo para vocês. Sinto-me em caminho com vocês e gostaria que vocês sentissem que estou perto de vocês nas alegrias e nos sofrimentos, nos projetos e nas fadigas, nas amarguras e nas consolações pastorais. Sobretudo compartilho com vocês o desejo de comunhão, afetiva e efetiva, enquanto ofereço a minha oração cotidiana, para que esta nossa mãe Igreja de Roma, chamada a presidir na caridade, cultive o precioso dom da comunhão acima de tudo em si mesma, fazendo-o germinar nas diversas realidades e sensibilidades que a compõem. Que a Igreja de Roma seja exemplo de compaixão e de esperança para todos, com os seus pastores sempre e sempre prontos e disponíveis para conceder o perdão de Deus, como canais de misericórdia que saciam a aridez do ser humano de hoje.
E agora, caros irmãos, pergunto-me: neste nosso tempo, o que nos pede o Senhor, para onde nos orienta o Espírito que nos ungiu e enviou como apóstolos do Evangelho? Na oração, isso volta à minha mente: que Deus nos pede para ir a fundo na luta contra o mundanismo espiritual. O padre Henri de Lubac, em algumas páginas de um texto que eu lhes convido a ler, definiu o mundanismo espiritual como “o maior perigo para a Igreja – para nós, que somos Igreja –, a tentação mais pérfida, aquela que sempre renasce, insidiosamente, quando as outras são vencidas”. E acrescentou palavras que me parecem acertar no alvo: “Se esse mundanismo espiritual tivesse que invadir a Igreja e trabalhar para corrompê-la, atacando seu próprio princípio, seria infinitamente mais desastroso do que todo mundanismo simplesmente moral” (“Meditazione sulla Chiesa”, Milão, 1965, p. 470).
São coisas que já recordei outras vezes, mas me permito reiterar, considerando-as prioritárias: o mundanismo espiritual, de fato, é perigoso porque é um modo de vida que reduz a espiritualidade à aparência: leva-nos a ser “comerciantes do espírito”, homens revestidos de formas sagradas que, na realidade, continuam pensando e agindo segundo as modas do mundo.
Isso ocorre quando nos deixamos fascinar pelas seduções do efêmero, pela mediocridade e pela rotina, pelas tentações do poder e da influência social. E, ainda, pela vanglória e pelo narcisismo, por intransigências doutrinais e por esteticismos litúrgicos, formas e modos em que o mundanismo “se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja”, mas na realidade consiste em “buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal” (Evangelii gaudium, n. 93).
Como não reconhecer em tudo isso a versão atualizada daquele formalismo hipócrita que Jesus via em certas autoridades religiosas da época e que, ao longo de sua vida pública, o fez sofrer talvez mais do que qualquer outra coisa?
O mundanismo espiritual é uma tentação “gentil” e, por isso, ainda mais insidiosa. De fato, ela se insinua sabendo se esconder bem atrás das boas aparências, até mesmo dentro de motivações “religiosas”. E, mesmo que a reconheçamos e a afastemos de nós, mais cedo ou mais tarde ele volta a se apresentar disfarçada de outra forma. Como diz Jesus no Evangelho: “Quando um espírito mau sai de um homem, fica vagando em lugares desertos à procura de repouso, e não encontra. Então diz: ‘Vou voltar para a casa de onde saí’. Quando ele chega, encontra a casa varrida e arrumada. Então ele vai, e traz consigo outros sete espíritos piores do que ele. Eles entram, moram aí e, no fim, esse homem fica em condição pior do que antes” (Lc 11,24-26).
Precisamos de vigilância interior, guardar a mente e o coração, alimentar em nós o fogo purificador do Espírito, porque as tentações mundanas voltam e “batem” de maneira educada, “são os ‘demônios educados’: entram com educação, sem que eu me dê conta” (Discurso à Cúria Romana, 22 de dezembro de 2022).
Gostaria de me deter, porém, em um aspecto desse mundanismo. Quando ela entra no coração dos pastores, assume uma forma específica, a do clericalismo. Perdoem-me se o repito, mas, como sacerdotes, acho que vocês me entendem, porque vocês também compartilham aquilo em que acreditam de modo sincero, segundo aquele belo traço tipicamente romano (romanesco!) pelo qual a sinceridade dos lábios provém do coração, e tem gosto de coração! E eu, como idoso e de coração, quero lhes dizer que me preocupa quando voltamos a cair nas formas do clericalismo; quando, talvez sem nos darmos conta, damos às pessoas a impressão de que somos superiores, privilegiados, colocados “no alto” e, portanto, separados do restante do Povo santo de Deus. Como um bom sacerdote me escreveu uma vez, “o clericalismo é sintoma de uma vida sacerdotal e laical tentada a viver no papel e não no vínculo real com Deus e com os irmãos”. Em suma, denota uma doença que nos faz perder a memória do Batismo recebido, deixando em segundo plano a nossa pertença ao mesmo Povo santo e levando-nos a viver a autoridade nas várias formas de poder, sem mais nos darmos conta das duplicidades, sem humildade, mas com atitudes distanciadas e altivas.
Para nos sacudir dessa tentação, faz-nos bem ouvir o que o profeta Ezequiel diz aos pastores: “Vocês bebem o leite, vestem a lã, matam as ovelhas gordas, mas não cuidam do rebanho. Vocês não procuram fortalecer as ovelhas fracas, não dão remédio para as que estão doentes, não curam as que se machucaram, não trazem de volta as que se desgarraram e não procuram aquelas que se extraviaram. Pelo contrário, vocês dominam com violência e opressão” (34,3-4).
Fala-se de “leite” e de “lã”, aquilo que nutre e que aquece; o risco que a Palavra põe diante de nós, portanto, é o de nutrir a nós mesmos e aos nossos interesses, revestindo-nos de uma vida cômoda e confortável.
Certamente – como afirma Santo Agostinho – o pastor deve viver também graças ao sustento oferecido pelo leite de seu rebanho; mas o bispo de Hipona comenta: “Aceitem o leite das ovelhas, supram as suas necessidades, mas não descuidem a fraqueza das ovelhas. Não procurem o próprio proveito, como se anunciassem o Evangelho só para atender a sua penúria, mas dispensem aos outros a luz da palavra da verdade a fim de iluminar os homens” (“Discurso sobre os pastores”, 46,5).
Da mesma forma, Agostinho fala da lã associando-a às honrarias: ela, que reveste a ovelha, pode nos fazer pensar em tudo aquilo com que podemos nos adornar exteriormente, buscando o louvor dos homens, o prestígio, a fama, a riqueza. O grande padre latino escreve: “Quem oferece a lã, presta homenagens. São estas as duas vantagens que buscam do povo aqueles pastores que se apascentam a si mesmos e não às ovelhas: recursos para prover suas próprias necessidades, honrarias e aplausos” (ibid., 46,6).
Quando nos preocupamos apenas com o leite, pensamos no nosso proveito pessoal; quando procuramos obsessivamente a lã, pensamos em cuidar da nossa imagem e aumentar o nosso sucesso. E assim perde-se o espírito sacerdotal, o zelo pelo serviço, o anseio pelo cuidado do povo, acabando por raciocinar segundo a tolice mundana: “Que me importa? Que façam o que quiserem; meu sustento está garantido, minha boa fama está salva. Tenho leite e lã suficientes; que cada um vá por onde puder” (ibid., 46,7).
A preocupação, então, concentra-se no “eu”: o próprio sustento, as próprias necessidades, o louvor recebido para si mesmo e não para a glória de Deus. Isso ocorre na vida de quem resvala para o clericalismo: perde o espírito do louvor porque perdeu o sentido da graça, o estupor pela gratuidade com que Deus o ama, aquela confiante simplicidade do coração que faz estender as mãos ao Senhor, esperando d’Ele o alimento no tempo oportuno (cf. Sl 104,27), na consciência de que sem Ele nada podemos fazer (cf. Jo 15,5).
Só quando vivemos nessa gratuidade é que podemos viver o ministério e as relações pastorais em espírito de serviço, segundo as palavras de Jesus: “De graça receberam, de graça também deem” (Mt 10,8).
Precisamos olhar justamente para Jesus, para a compaixão com que Ele vê a nossa humanidade ferida, para a gratuidade com que ofereceu sua vida por nós na cruz. Eis o antídoto cotidiano contra o mundanismo e o clericalismo: olhar para Jesus crucificado, fixar os olhos todos os dias n’Aquele que esvaziou a si mesmo e se humilhou por nós até à morte (cf. Fl 2,7-8). Ele aceitou a humilhação para nos reerguer das nossas quedas e nos libertar do poder do mal.
Assim, olhando para as chagas de Jesus, olhando para Ele humilhado, aprendemos que somos chamados a oferecer a nós mesmos, a nos fazer pão partido para quem tem fome, a compartilhar o caminho de quem está cansado e oprimido. Esse é o espírito sacerdotal: fazer-nos servos do Povo de Deus, e não senhores, lavar os pés dos irmãos, e não esmagá-los debaixo dos nossos pés.
Portanto, permaneçamos vigilantes em relação ao clericalismo. Quem nos ajuda a nos mantermos afastados dele é o Apóstolo Pedro que, como nos recorda a tradição, até no momento da morte, humilhou-se de cabeça para baixo a fim de não estar à altura de seu Senhor. Que o Apóstolo Paulo nos preserve, ele que, por motivo de Cristo Senhor, considerou todos os ganhos da vida e do mundo como lixo (cf. Fl 3,8).
O clericalismo, sabemo-lo, pode dizer respeito a todos, também aos leigos e aos agentes de pastoral: de fato, pode-se assumir um “espírito clerical” ao levar em frente os ministérios e os carismas, viver o próprio chamado de modo elitista, fechando-se no próprio grupo e erigindo muros em relação ao exterior, desenvolvendo laços possessivos em relação aos papéis na comunidade, cultivando atitudes presunçosas e arrogantes em relação aos outros. E os sintomas são justamente a perda do espírito de louvor e da gratuidade alegre, enquanto o diabo se insinua alimentando as queixas, a negatividade e a insatisfação crônica com aquilo que não está certo, a ironia que se torna cinismo. Mas, assim, nos deixamos absorver pelo clima de crítica e de raiva que se respira ao redor, ao invés de sermos aqueles que, com simplicidade e mansidão evangélicas, com gentileza e respeito, ajudam os irmãos e as irmãs a saírem das areias movediças da intolerância.
Em tudo isso, nas nossas fragilidades e nas nossas inadequações, assim como na crise de fé atual, não desanimemos! De Lubac concluía afirmando que a Igreja, “ainda hoje, apesar de todas as nossas opacidades [...] é, como a Virgem, o Sacramento de Jesus Cristo. Nenhuma das nossas infidelidades pode impedir que ela seja ‘a Igreja de Deus’, ‘a serva do Senhor’” (“Meditazione sulla Chiesa”, op. cit., p. 472).
Irmãos, essa é a esperança que sustenta os nossos passos, alivia os nossos fardos, dá novo impulso ao nosso ministério. Arregacemos as mangas e dobremos os joelhos (vocês que podem!): rezemos uns pelos outros ao Espírito, peçamos-lhe que nos ajude a não cair, tanto na vida pessoal quanto na ação pastoral, naquela aparência religiosa cheia de tantas coisas, mas vazia de Deus, para não sermos funcionários do sagrado, mas apaixonados anunciadores do Evangelho, não “clérigos de Estado”, mas pastores do povo. Precisamos de conversão pessoal e pastoral.
Como afirmava o padre Congar, não se trata de reconduzir a uma boa observância ou fazer uma reforma de cerimônias exteriores, mas sim de retornar às fontes evangélicas, de descobrir energias novas para superar os hábitos, de inserir um espírito novo nas velhas instituições eclesiais, para não nos aconteça de sermos uma Igreja “rica em sua autoridade e em sua segurança, mas pouco apostólica e mediocremente evangélica” (“Vera e falsa riforma della Chiesa”, Milão, 1972, p. 146).
Obrigado pela acolhida que vocês reservarão a estas minhas palavras, meditando-as na oração e diante de Jesus na adoração cotidiana; posso lhes dizer que elas vieram do meu coração e do afeto que tenho por vocês. Sigamos em frente com entusiasmo e coragem: trabalhemos juntos, entre padres e com os irmãos e as irmãs leigos, iniciando formas e percursos sinodais, que nos ajudem a nos despojar das nossas seguranças mundanas e “clericais”, para buscar, com humildade, caminhos pastorais inspirados pelo Espírito, para que a consolação do Senhor chegue verdadeiramente a todos.
Diante da imagem da Salus Populi Romani, rezei por vocês. Pedi que Nossa Senhora lhes guarde e proteja, enxugue as suas lágrimas secretas, reavive em vocês a alegria do ministério e os torne todos os dias pastores apaixonados por Jesus, prontos a dar a vida sem medida por amor a Ele.
Obrigado por aquilo que vocês fazem e por quem vocês são. Abençoo-os e os acompanho com a oração. E vocês, por favor, não se esqueçam de rezar por mim.
Fraternalmente,
Lisboa, 5 de agosto de 2023, Memória da Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior
Francisco
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“É preciso lutar contra o mundanismo espiritual e o clericalismo.” Carta do Papa Francisco aos presbíteros de Roma - Instituto Humanitas Unisinos - IHU