22 Julho 2023
Mariana Mazzucato é uma das economistas mais brilhantes do cenário internacional, possui uma abundante produção literária e já assessorou instituições e governos em todo o mundo. Até o Papa recomendou a leitura de um de seus livros: O valor de tudo.
Mazzucato (Roma, 55 anos), professora de Economia da Inovação e Valor Público da University College London (UCL), defende um Estado forte, ambicioso, que seja capaz de inovar e criar riqueza. Ao mesmo tempo, alerta sobre as políticas de austeridade - “não funcionam” - e a ultradireita: “É um problema que muitos governos caminhem para o populismo”, afirma em entrevista pelo Zoom.
A entrevista é de Laura Delle Femmine, publicada por El País, 21-07-2023. A tradução é do Cepat.
A pandemia e a crise energética reforçaram o papel do Estado ou perdeu-se uma oportunidade?
Em alguns países, perdeu-se a oportunidade. No Reino Unido, onde moro, o auxílio às empresas durante a covid não estava condicionado a que fossem boas. Na Espanha, as empresas que receberam auxílio para mitigar o impacto da inflação não podem demitir alegando um aumento no custo da energia. É parte integrante do auxílio. É como um dar e receber, que eu chamo de relação simbiótica, em oposição à parasitária. É assim que boas relações público-privadas vão sendo forjadas.
Além dessas colaborações, o que mais falta para que o Estado não seja um simples regulador?
Em meu recente livro The Big Con, digo que devemos investir na capacidade do Estado, forjar boas alianças público-privadas, fortalecer os sistemas de saúde, perceber que estamos todos juntos, por exemplo, na mudança climática. O custo da inação é muito maior do que o da ação. Não adianta dizer que tudo fede, que as empresas são más, que o Governo é mau...
Precisamos entender onde as políticas governamentais e comerciais inteligentes e o setor público-privado inteligente fortalecem as economias. Em grande parte, a taxa de inflação espanhola caiu muito em comparação a outros países devido à restrição no preço do gás [para a geração de eletricidade, a chamada exceção ibérica], à restrição nos aumentos dos aluguéis para moradia, à gratuidade do transporte público e, talvez, o mais importante, à tributação dos lucros caídos do céu.
Nenhum Executivo é perfeito, mas as políticas equilibradas deste me impactaram: nada muito extremo, mas sempre pensando no que é possível fazer para conter custos para os cidadãos, ajudar as empresas, mas pedindo algo em troca e fortalecendo a capacidade do Governo.
Os Governos costumam delinear políticas de curto prazo, porque inovar pode levar a erros que, depois, supõem uma punição nas urnas.
Você colocou o dedo na ferida. Aceitamos a experimentação das empresas. Admitimos que, para cada sucesso, existem muitos fracassos. Contudo, quando o setor público comete um erro, aparece na primeira página dos jornais. Nós não o permitimos experimentar. Por isso, tenho proposto que se invista em laboratórios governamentais. O Chile tem O laboratório do Governo.
Fazer as coisas bem nem sempre é um processo linear. Em parte, é por isso que os Executivos terceirizam para empresas de consultoria, para que outro cometa o erro. No entanto, o essencial é aprender com os fracassos. Não basta fracassar. E isso só é possível se você investe em suas capacidades. Voltando à Espanha, penso que muitas coisas foram bem realizadas. Também coisas ruins, como em qualquer governo.
É mais importante redistribuir ou criar valor?
Quando só se pensa em redistribuição, não resta nada para criar. É preciso investir o suficiente no que gera valor, por exemplo, em Pesquisa e Desenvolvimento. O Plano Nacional de Recuperação e Resiliência da Espanha está muito focado na pesquisa e desenvolvimento. Conta com 50 milhões para missões de Pesquisa e Desenvolvimento em torno da inteligência artificial. Existe o programa RETECH IA, com 260 milhões, e o PERTE da nova economia da linguagem. Tudo isso é para gerar valor.
Este Governo tem recebido críticas por conceder auxílios generalizados contra a inflação.
Os impostos, é claro, precisam ser progressivos. A Espanha tem uma taxação solidária à riqueza e impostos sobre os lucros caídos do céu, que não prejudicam as pequenas empresas. A questão é: o que fazer com o que se arrecada? Aí está a criação de riqueza.
É necessária uma tributação inteligente e progressiva que vá para um fundo comum para melhorar a vida dos cidadãos, financiar o transporte público gratuito e reduzir a tarifa de energia. A criação de riqueza é também reinvestir esse dinheiro em políticas que aumentam a produtividade.
Estes impostos devem ser mantidos?
Depende. Em escala mundial, as empresas farmacêuticas sempre obtêm o que eu definiria como lucros excessivos, porque cobram muito pelos medicamentos, embora tenham recebido investimento público. Nesse caso, a mudança deve ser permanente. Trata-se muito mais de assegurar que os preços sejam justos.
Idealmente, é necessário um sistema em que os lucros das empresas sejam adequados desde o princípio. Isso requer, como argumentei em meu livro O valor de tudo, que os governos entendam melhor a diferença entre lucros e receitas. Algo que foi abordado por Adam Smith e David Ricardo. Não é uma noção marxista. As empresas devem obter lucros. Não se resolve nada com a caridade. Contudo, precisamos de uma teoria que nos diga se são exagerados.
Muitas empresas de energia começaram a ganhar muito não por serem inovadoras, mas por causa de um shock no sistema global, e devemos tributar esses lucros excessivos. A permanência desses impostos depende da capacidade de um governo em distinguir quais lucros provêm dos investimentos de uma companhia, de sua inovação, e quais de uma guerra ou outra crise internacional. Além disso, neste momento, temos um problema no mundo: há muitos Governos que estão se movendo em uma direção populista. Na Itália, também podemos dizer fascista.
Na Espanha, é provável que a extrema direita entre no Governo com o Vox.
É um grande problema. Por isso, é preciso saber o que um país faz. O que o atual Governo fez na Espanha é muito positivo em comparação com o que vejo em muitos países. No Reino Unido, depois do Brexit, não existe uma fórmula para que o público e o privado trabalhem juntos na transição energética, na lacuna digital, na saúde.
Na Itália, meu outro país [esclarece que tem nacionalidade estadunidense, britânica e italiana], deixou-se de investir na administração pública. Falta um pacto sólido entre sindicatos, governo e empresas. Muitos trabalhadores se sentiram enganados e votaram na direita. Na esquerda, há anos, batalham entre eles e isso tem levado a uma ausência de atitude progressista como existe na Espanha.
Na Espanha, este Governo desenvolveu políticas muito importantes sobre energia, metas de desenvolvimento sustentável, acordos com empresas, trabalho... Penso que este é o futuro do capitalismo. O século XXI precisa desse tipo de atitude. Também deve ter cometido erros. O problema é se as pessoas sentem que não conseguem chegar ao fim do mês e, por isso, votam em uma direita que só ataca os imigrantes, a burocracia, a criminalidade...
Além disso, de modo insensato. A criminalidade não se combate apenas com mais policiamento, mas investindo em suas causas, que geralmente são socioeconômicas. Um governo deve investir nas pessoas oferecendo boa educação, benefícios, políticas habitacionais... Contudo, não faz isso ou se faz é sem comunicar, sem ter uma narrativa, o que também é um problema.
A narrativa da direita sempre é contra alguém: os imigrantes, o Governo, a Europa... Já vi isso em todos os países. O Executivo de Sánchez não foi um néscio que só pensou na redistribuição. Usou uma estratégia sustentável, ajudando as empresas, promovendo aquelas que investem verde e, ao mesmo tempo, desestimulando o excesso de lucros, o que não significa desestimular os lucros. Acredito realmente nessa estratégia: gerar riqueza, investir em tecnologia, saúde, capacidade das cidades e contar com impostos progressivos.
Os países europeus, entre eles a Espanha, dispararam suas dívidas com a pandemia. Bruxelas está pedindo cortes. Haverá um retorno à austeridade?
Os cortes, como foram feitos depois da crise financeira, com a austeridade, não funcionam. O que mais importa na relação dívida/PIB são os investimentos, tanto públicos quanto privados, que são feitos no denominador. É preciso cortar onde há esbanjamento, sempre e não só agora, mas também investir no que gera valor: educação, Pesquisa e Desenvolvimento, programas de IA aplicados à saúde, agricultura, energia. Apenas cortar, esperando que a dívida diminua, não funciona. Se o PIB não cresce, se a produtividade não cresce, voltamos ao ponto de partida.
É muito importante que não ocorra outra onda de austeridade. O investimento público no curto prazo pode aumentar a dívida, mas no longo prazo a diminui, porque cria a riqueza com a qual financiá-la. Os países que só aplicam a austeridade não criam riqueza e a dívida continua crescendo. Também porque surgem os problemas de saúde, de criminalidade... A falta de bons sistemas de saúde e de educação pode representar um custo maior para o Estado do que investir mais desde o início.
É preciso fazer uma pré-distribuição.
Exatamente.
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“É muito importante que não ocorra outra onda de austeridade”. Entrevista com Mariana Mazzucato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU