13 Junho 2023
"O que aconteceu em junho no Brasil foi 'a primeira grande revolta popular na história brasileira a ter sido demonizada pela esquerda'".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Um dado curioso em minhas participações no Face em abordagens que têm a ver com a questão política é o acirramento dos ânimos. Desde eleições anteriores, todas as vezes que manifesto alguma posição mais crítica aos segmentos do PT, recebo advertências às vezes contundentes que em sua grande maioria insistem na batida tecla de que não é momento para fazer críticas ao governo.
Quando saiu o livro de frei Betto, A mosca azul (2000), fiquei muito interessado e identifiquei-me imediatamente com a obra, escrita por um amigo de décadas, desde o tempo em que saiu da prisão. Fazemos parte de um mesmo grupo de reflexão, Emaús, que nasceu em coincidência com sua saída do presídio, junto com outros dois freis dominicanos.
O livro de Betto vinha ao encontro de uma preocupação semelhante que me movia e provocava. Abria-se, com a obra, a possibilidade de um discernimento mais crítico ao PT. O campo da dissidência ampliou-se em seguida com a criação de outros partidos como o PSOL e a REDE.
Há quatro dias, no meu Facebook, onde busco manter minha visão crítica, um amigo reagiu a uma postagem minha, onde partilhava uma entrevista de uma autora que gosto muito, Alana Moraes. E eis que vejo mais uma vez um argumento que é corriqueiro nesses casos, quando se toca em algo diferente da nota comum. O amigo dizia: “Soam tambores de guerra... Uma guerra fratricida entre setores da base lulista”.
É verdade que nas colocações de Alana estavam toques “dissonantes”, mas isso não significava a presença de “tambores de guerra”, e nem mesmo era uma luta “fratricida” ou de segmentos da “base lulista”. O que estava em curso era uma hermenêutica diversa daquela que comumente ouvimos em certos registros das redes sociais, como os que vemos com frequência em canais como o 247.
Ali no 247, o que visualizamos é quase o “samba de uma nota só”. Em recente debate, no dia 27 de maio de 2023, vimos num dos programas do canal a posição de Joaquim Carvalho, bem crítica a junho de 2013. Ele dizia que ali começara uma “guerra contra o Brasil”. E semelhante posição vinha defendida por Leonardo Attuch, para quem 2013 foi uma “agenda da Rede Globo e da extrema direita”. Com a certeza que caracteriza sua rede, Attuch afirmou com convicção que 2013 foi “o maior crime contra o Brasil de todos os tempos”.
Posições semelhantes às do 247 vemos também em intelectuais como Emir Sader, também admirado entre os setores tradicionais do PT. É um intelectual igualmente crítico ao movimento de junho de 2013, e que argumenta que ali nasceu no Brasil a “tendência de desvalorização da política”, num movimento dominado pela direita, com a Rede Globo como guia promocional. Para ele estava claro que o movimento “foi um instrumento do golpe que abriu o caminho para Bolsonaro” (Opinião, 05/06/2023).
Ainda nesse mesmo barco temos Fernando Haddad, que em entrevista à Revista Piauí de junho de 2017, refletiu também sobre a “explosão de descontentamento” que ocorreu naquele mês difícil, de junho de 2013, quando ocupava o cargo de prefeito da cidade de São Paulo.
Em sua reflexão, Haddad identificou naquele movimento um “desconforto”, que se iniciou com a fagulha do protesto do Movimento Passe Livre, e que gerou um descompasso de proporções gigantescas em seus desdobramentos. A seu ver, a contrário de outras organizações contestatórias, que sempre aderiram a mediações político-institucionais, desta vez ocorria algo de novo, pois apresentavam-se agora como “reivindicações desconexas e às vezes contraditórias entre si”. Chega a aludir que muitas ações de cunho virtual, relacionadas ao movimento de junho, poderiam estar sendo patrocinadas por redes de direita.
Esse tem sido o discurso recorrente de segmentos da esquerda mais identificados com certa linha majoritária do PT, para os quais junho de 2013 foi a chispa inicial e o instrumento do golpe que vai abrir caminho para o governo Bolsonaro.
Felizmente, esta não é a única interpretação em vigor no presente momento. Com a celebração dos dez anos desse acontecimento único em nosso país, interpretações diferentes retomam a sua cidadania, mostrando-nos visões bem diferentes das que enunciamos antes. Vejo aqui, de modo muito particular, a presença do canal do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, abrindo espaços importantes para uma nova hermenêutica sobre junho de 2013. O IHU, como vem conhecido, abre caminho e voz para outras interpretações, com as quais eu me identifico bem mais.
Podemos citar aqui os artigos de Bruno Cava, Vladimir Saflate, Luiz Eduardo Soares, Giuseppe Coco, Idelber Avelar, Alana Moraes, Daniel Bustamante Teixeira e tantos outros. A antropóloga Alana Moraes é uma das autoras de minha preferência nas análises de junho de 2013. Em entrevista ao IHU de 16 de junho de 2023, ela indicou que a “esquerda organizada” foi a mais balançada pelo movimento de junho. Foi “afetada” na medida em que entendeu a presença nas ruas como uma “desobediência” aos padrões vigentes de atuação da esquerda, como se fosse uma “petulância juvenil”.
Não por acaso essa esquerda tentou por diversas vezes “dirigir as mobilizações”, ou canalizá-las para si. O que ocorreu em verdade, argumenta Alana, foi uma total incapacidade da esquerda organizada conectar-se com a indignação em curso. Para Alana, as jornadas de junho foram muito além dessa visão curta de que apenas premeditaram um golpe. Por isso, a seu ver, as jornadas de junho permanecem como um enigma a ser decifrado, e a “disputa por seu sentido” continua em aberto.
Há que reconhecer que mesmo no calor das jornadas de junho, interpretações mais arejadas aconteceram, como as de Luiz Eduardo Soares, também antropólogo. No meio daquela turbulência, Soares reconheceu a vitalidade de um movimento social, que expressava um “caldeirão efervescente”, com possíveis pistas para um repensar a política brasileira. Era a sociedade que estava em ebulição naquele momento histórico, em sintonia com movimentos de rebeldia que ocorriam em outras partes do mundo.
O que estava em jogo era uma ferrenha crítica ao modelo representativo tradicional de política, para além dos encaixes até então vigentes na militância oficial. Como mostrou Soares, em artigo no IHU, de 5 de maio de 2022, o que estava ruindo era a “visão teleológica da história”, dominada por uma visão míope. As ruas mostravam que
“o modelo estava exaurido, o corpo crescia e rasgava o coração, a juventude era outra, a periferia se tornava central – graças em parte a políticas do governo (...). Suas paixões mudavam a chave da militância, o tesão migrava do aparelho para os coletivos autogestionados, o ativismo independente ocupava as arenas”.
Em outro texto, Soares exaltava o acontecimento de junho como algo exemplar, que expressava o “deslocamento de placas tectônicas da sociedade brasileira”, aquelas camadas ainda mais profundas, que agora emergiam fazendo barulho. Era como se houvesse “o desprendimento de energias como num terremoto”, onde ninguém conseguia dominar. O que estava em curso era uma “pluralidade de pautas e valores”, que não permitiam “bandeiras” ou controles.
E o que aconteceu pelo Brasil foi fantástico. Não há como negar o seu devido lugar histórico, como acenou Túlio Ceci Villaça em seu Facebook. Ele expressou um “imenso desabafo”, apontando de forma diversificada e plural uma série de problemas presentes no país e, curiosamente, “muitos preferiram não escutar” e o resultado pudemos ver na sequência histórica. Nem o governo do PT nem os analistas políticos conseguiram captar as demandas que estavam presentes no movimento, tanto aquelas da esquerda como também dos movimentos de direita.
Nem todos captaram outro dado interessante presente nas jornadas de junho, que foi o seu lado lírico, festivo, de ciranda e humor, dificilmente presentes em outras manifestações de rua. Ninguém era capaz de entender o que acontecia, e nem hoje essa percepção ganha clareza. Não se conseguia entender o movimento pelo simples fato de que “os grupos mudavam, as pautas mudavam”. O que ocorria era uma realidade de dinamicidade única, incontornável e imprevisível.
Segundo Angela Alonso, que escreveu o livro Treze. A política de rua de Lula a Dilma (2023), no “ciclo de protestos” que envolveu junho de 2013, o que ocorreu foi uma “simultaneidade dos diferentes”. As pautas também eram diferenciadas, desde o protesto contra o aumento da tarifa dos transportes, contra a corrupção e outros tantos temas. Na introdução de seu livro, a autora sinaliza que aquele junho “não foi isso ou aquilo; foi isso e aquilo; junho foi várias mobilizações simultâneas, um mosaico”. Em sua visão não foi um junho, mas vários, com movimentações variegadas em vários lugares e várias etapas, tendo como motivação algo de maior complexidade.
A reação da esquerda tradicional veio logo em seguida, com as adjetivações dos manifestantes, que agora vinham identificados como “vândalos”, “baderneiros”, e no melhor dos casos “ingênuos”, “otimistas”, “lunáticos” ou “inocentes úteis”. Outros buscavam distinguir os manifestantes em “pacíficos” e “vândalos”. Nunca me esqueço a colocação de um militante sobre um momento particular do movimento de junho no Rio de Janeiro ao dizer que a manifestação tinha sido linda, até chegar à Cinelândia, quando então foi dominada pelos vândalos.
Em artigo publicado no O Globo, de 19/06/2023, Pablo Ortellado traz uma contribuição importante para entender o que ocorreu em junho de 2013. Na visão do articulista, trata-se de um “delírio” querer traçar uma “causalidade direta” entre junho de 2013 e a eleição de Bolsonaro.
O autor contesta claramente a ideia que se firma entre setores da esquerda em relacionar o evento de junho de 2013 como um “ovo da serpente” que estaria a gestar a ascensão da direita no Brasil. Trata-se, segundo ele, de uma retórica antifascista exaustivamente repetida no país, para buscar uma “sequência causal imaginária que liga os protestos de junho de 2013 às manifestações anticorrupção; essas, por sua vez, ao impeachment de Dilma Rousseff, à prisão de Lula e à eleição de Jair Bolsonaro”.
Com base nos estudos realizados sobre as jornadas de junho, Ortellado sublinha que “os jovens que estavam nas ruas não se identificavam com a direita, nem tinham qualquer preferência partidária”. Os protestos giravam em torno da redução na tarifa dos transportes e a melhoria dos serviços públicos de saúde e educação. Nada que pudesse ser enquadrado numa pauta da direita.
Mesmo depois que o movimento se arrefeceu, permaneceu uma insatisfação na população, agora mais “difusa e órfã”. E não nos podemos esquecer da violenta onda de repressão que se espalhou por todo canto, e a mesma presidente Dilma sancionou quase três anos depois de junho de 2013 a polêmica “lei antiterrorismo”, que acabou fragilizando ainda mais qualquer direito de manifestação pública.
Segundo Ortellado, não há coincidência entre os que protestavam em junho de 2013 com aqueles que protestavam contra Dilma em 2015 e 2016. No caso dos manifestantes de junho de 2013, esses “eram jovens com menos de 30 anos, da classe média baixa e da classe trabalhadora. Os manifestantes contra Dilma – e também os que saíram em defesa da presidente Dilma – eram de idade e meia-idade, com escolaridade superior e renda alta”. A adoção de uma identidade de direita, propriamente dita, só vai acontecer de forma organizada após 2018.
No livro de Roberto Andrés em torno de junho de 2013 (A razão dos centavos. Zahar, 2023), ele elenca cinco atores que estavam em cena em junho daquele ano: os grupos de esquerda (de tendências autonomistas e socialistas); os manifestantes avulsos; os grupos de direita; os grupelhos fascistas e os adeptos da tática black bloc. Com respeito à tática black bloc, Angela Alonso, em seu livro, sublinha o traço da “espetacularização do ativismo”, com um duplo objetivo: de convocar a atenção das autoridades e da mídia.
Outro trabalho de relevo sobre o tema veio publicado na Folha de São Paulo, no início de junho de 2023, de autoria do filósofo Marcos Nobre. Trata-se de um artigo exemplar para entender o tema. Ele faz também menção à metáfora bergmaniana do “Ovo da Serpente”, que foi utilizada como senha para a interpretação dominante sobre os episódios de junho de 2013.
Em sua visão, foi a metáfora que “se tornou a senha para quase todas as desgraças dos últimos dez anos”. Trata-se, para ele, de uma frágil e vaga interpretação, que se faz presente até em trabalhos acadêmicos. Ele levanta uma questão pertinente: “A quem serve essa demonização de junho?”. O que ocorre, argumenta ele, é um “segredo de polichinelo”, que serve para “livrar a cara do sistema político pelo que fez ou deixou de fazer em resposta a junho”.
Como indica Nobre, não há como isolar o que ocorreu no Brasil de todo um movimento internacional vigente naquele período, como no caso da Primavera Árabe. Nem pode ser interpretado como uma resposta nacional à crise econômica mundial desencadeada em 2008, pois os efeitos da crise no Brasil vieram depois. O que aconteceu em junho no Brasil foi “a primeira grande revolta popular na história brasileira a ter sido demonizada pela esquerda”.
Com muita clareza, Nobre desvelou o segredo: o “anti-junhismo é a doença infantil do petismo”. Para Nobre, junho permanece sendo um “emblema de risco que corre o PT”, que pode ser “novamente destroçado pelo mesmo sistema político com o qual cerrou fileiras em 2013 e que quase o destruiu no impeachment de Dilma Rousself e na prisão de Lula”. O que permanece problemático, segundo Nobre, é “a incapacidade do PT e do campo mais amplo da esquerda de formular propostas viáveis de rumo e canalização institucional para a energia das ruas”.
E o momento presente levanta um problema ainda mais grave para o governo do PT, relacionado desta vez ao meio ambiente. Na sequência dos acontecimentos de 2013, em entrevista concedida por Eduardo Viveiros de Castro a Eliane Brum, no periódico El Pais (29/09/2014), o antropólogo chama a atenção para a grave situação ecológica, envolvendo os povos originários e a Amazônia. E levanta a questão? “O que estamos fazendo com a Terra onde a gente vive?”.
Agora no governo de Lula 3, essa questão ganhou contornos de acolhida, mas o cenário atual não é favorável para uma continuidade benfazeja. No recente editorial da revista Sumaúma, de autoria de Eliane Brum (07/06/2023), ela lança um grito de alarme com o desmantelamento pelo Congresso dos dois ministérios criados por Lula: o Ministério do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.
A revolta maior da autora é o fato disto acontecer “com o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, bem como dos ministros petistas e os deputados e senadores da base do governo, que não fizeram esforços para barrar a necrófila iniciativa. Infelizmente, sempre em nome da governabilidade, novas e surpreendentes insanidades são cometidas e perpetuadas.
Todos sabemos muito bem a posição clara de Lula em defesa da política institucional. Para ele, como mostra Brum, “os problemas precisam ser resolvidos ´na política` e não ´fora dela”. Trata-se de uma visão míope do que podem representar a dinâmica dos movimentos sociais e dos conflitos a eles relacionados.
E pelo que vemos na pauta em curso, estamos diante de uma calamidade que é tremenda para os tempos atuais. Como diz com acerto Eliane Brum, “não é Lula que foi emparedado pelo Congresso. Somos nós e todos os outros”. Com isso, estamos diante do risco iminente de um posicionamento nacional que se contrapõe ao campo internacional de sensibilidade ecológica e de defesa dos povos originários e o meio ambiente.
Ainda sobre 2013, chamo a atenção para a publicação de quatro livros importantes a respeito: A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (Bruno Cava, 2022); Junho febril (Igor Mendes, 2023); Treze. A política de rua de Lula e Dilma (Angela Alonso, 2023); A razão dos centavos (Roberto Andrés, 2023). Sobre este último livro, comentou Marcos Nobre: “Para quem busca respostas para a pergunta ´Como chegamos até aqui?`, este é um livro não apenas único, é incontornável”.
No livro de Roberto Andrés, publicado pela editora Zahar, ele sinaliza que o sentido das manifestações de 2013 “foi além do jogo democrático. Tratou-se de denunciar o déficit e reivindicar o aprimoramento da vida democrática, o que inclui o sistema político mas também elementos da vida urbana, das condições ambientais, da agenda de costumes e do acesso a serviços públicos, centrais para uma cidadania plena”. Na introdução do livro, Andrés sublinha que em torno ao tema há um “choque entre tendências conflitantes, que foram notadas também por intelectuais dos círculos petistas”.
Como outros autores aqui apresentados, Andrés insere-se entre aqueles que entendem que junho de 2013 tornou-se um “bode expiatório” para tantas das mazelas que estão hoje em curso. Reage contra a visão de que “o sentido majoritário das manifestações teria sido apropriado pela direita”. É uma tese que segundo ele não encontra respaldo algum nos dados, fatos e registros, como vai destacar em seu livro.
Além de livros, iniciativas importantes já estão ocorrendo em vários âmbitos, envolvendo também os espaços acadêmicos, como é o caso do Seminário Junho de 2013, 10 anos depois, patrocinado pelo PPGCOM da UFRJ, do Direito da UERJ e PPGCS da UFRJ, iniciado no dia 05 de junho de 2023, com término em 20 de junho.
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O enigma de junho de 2013: o jogo das interpretações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU