O cenário de passagem do horizonte moderno da expansão para o horizonte da extinção e os desafios do governo Lula. Entrevista especial com Alana Moraes

Lula e Marina Silva em cerimônia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente no Palácio do Planalto | Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 07 Junho 2023

No último dia 5 de junho, Dia Internacional do Meio Ambiente, uma semana depois do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério dos Povos Originários serem fritados no Congresso Nacional nas barbas do governo, o presidente Lula aparece perfilado com as ministras Marina Silva e Sonia Guajajara para anunciar que a pauta ambiental do governo segue de pé.

O discurso convence? A pauta está efetivamente mantida e protegida a qualquer custo por esse governo? Para a antropóloga Alana Moraes, não. Apesar de toda a luz sobre o meio ambiente nesta semana, ela acredita que a questão não é superada e que o que ocorre no Congresso é apenas um sintoma de uma doença maior. “Os desafios do Lula 3 estão bem além do Congresso. O que se passa no Congresso é só uma expressão dessa guerra que é planetária. Seria o momento de pensar como o Brasil vai se inserir nessa nova composição de forças em que, de um lado, há os agentes da acelerada recolonização planetária e, de outro, aqueles que estão defendendo alguma possibilidade de vida digna nesse planeta”, avalia.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Alana convida a enxergarmos além. “Essa ofensiva está muito além do bolsonarismo, mas é a expressão de um novo momento do capitalismo internacional que vem operando uma flagrante recolonização planetária capaz de produzir esse consórcio entre velhas formas de extração, espoliação de territórios racializados, de ecossistemas e sua gente com novas tecnologias informacionais, extrativistas e securitárias”, indica.

Para ela, o problema é que, apesar da derrota de Bolsonaro nas urnas, é preciso compreender com o ideário do bolsonarismo, que segue incrustado no tecido social, aliás, há séculos. É um ideário que, para ela, está ligado ao pensamento progressista-desenvolvimentista. “Precisamos nos perguntar sobre as linhas de conexões entre o bolsonarismo e o projeto do progressismo. O consenso em torno do agronegócio e da mineração parece ser bem evidente”, indica.

O problema é que, embora negue, o PT e grande parte do governo Lula 3 ainda buscam hidratação em fontes do velho progressismo. “Não acho que o governo Lula nem a maior parte da esquerda brasileira estejam considerando esse cenário de passagem do horizonte moderno da expansão para o horizonte da extinção”, pontua Alana. E, por isso, no fim das contas, seguem defendendo alguns sacrifícios em nome de uma ideia de desenvolvimento. “Não é possível agir para desacelerar a catástrofe ambiental e a devastação de mundos e, ao mesmo tempo, fazer um governo pró-agro, pró-mineração, insistir nas grandes obras de infraestruturas extrativas que destroem territórios”, dispara.

Um caminho é aquele de repensar o mundo tendo presente a ideia de que uma escolha errada levará à extinção de todos. Segundo a antropóloga, enquanto o governo e a própria esquerda não se ressignificarem neste cenário, só lhes restará acordos e associações espúrias em nome de tal governabilidade. “As alianças que devem ser feitas estão sendo feitas bem longe do Palácio ou do Congresso Nacional. É entre mães que perdem seus filhos assassinados pelo Estado e sua polícia; entre indígenas, quilombolas e outras pessoas interessadas e engajadas na construção de autonomias territoriais e tecnologias livres; entre pessoas dissidentes do regime de sexo-gênero construindo redes de apoio; entre abolicionistas penais; entre novos e velhos militantes que ainda atuam por um projeto coletivo de transformação”, resume.

Alana Moraes (Foto: Arquivo pessoal)

Alana Moraes é doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Também é mestre pelo programa de Sociologia e Antropologia da UFRJ e possui graduação em Ciências Sociais pela mesma instituição. Realiza pós-doutorado no Instituto Brasileiro de Informação, Ciência e Tecnologia da UFRJ, o IBICT-UFRJ. É pesquisadora do Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento (Pimentalab) da Unifesp e da rede LAVITS (rede latino-americana de estudos sobre vigilância, tecnologia e sociedade), onde desenvolve ações de pesquisa e de extensão.

Confira a entrevista.

IHU – As tentativas de desmontes na área ambiental por parte do Congresso Nacional revelaram que o ideário do bolsonarismo segue vivo e atuante no Brasil. A partir desse episódio, muitos apontam que o maior desafio do governo Lula será na relação com o Congresso. Como compreender as questões de fundo desse desafio? E o que outros desafios você projeta para esse governo?

Alana Moraes – Não acredito que se trata apenas de desmonte, mas de uma ofensiva bastante ampla que inclui muitos atores: o Congresso Nacional, muitos agentes que estão no próprio executivo, o lobby agro-minerador-tech-financeiro. Este, inclusive, apresenta agora uma agenda de "inovação" e "transição energética" baseada em mais extrativismo predatório, como bem noticiou o Observatório da Mineração, quando do lançamento do chamado "vale do lítio" no Vale do Jequitinhonha, em Nova York, no mês passado. O ato juntou o bolsonarista [Romeu] Zema [governador de Minas Gerais] com o Ministério de Minas e Energia em reunião na Nasdaq, em busca de investidores.

Essa ofensiva está muito além do bolsonarismo, mas é a expressão de um novo momento do capitalismo internacional que vem operando uma flagrante recolonização planetária capaz de produzir esse consórcio entre velhas formas de extração, espoliação de territórios racializados, de ecossistemas e sua gente com novas tecnologias informacionais, extrativistas e securitárias. E isso tudo ampliando a capacidade de destruição, vigilância, repressão distribuída e abrindo novas frentes "modernizadoras".

O bolsonarismo vocaliza esse consórcio de maneira mais direta, sem muitas mediações, mas esse é o consenso que hoje está dando as cartas do jogo. Reparem em todo o investimento do agronegócio hoje na propaganda de que o "Agro é Tech" – como se a tecnologia garantisse, por si só, algum horizonte de justiça socioambiental.

Transição de quê?

A figura abjeta do Elon Musk é bem representativa desse momento global: suas ações (de marketing e financeiras) hoje se concentram na falácia da "transição energética" de carros elétricos via exploração de lítio nos países do sul, combinado com um alto investimento em infraestruturas de internet na Amazônia que hoje são fundamentais para o garimpo ilegal.

E tudo ainda passando pelo controle do regime informacional e de toda a circulação de dados gerados pelas plataformas corporativas e pela centralidade que elas tomaram na organização algorítmica dos debates públicos. O Tech-Extrativismo é um regime político que precisa dos governos nacionais apenas para garantir estabilidade através de suas forças de segurança. É o modo de gestão (econômica-política-técnica-psíquica) distribuída do capitalismo de catástrofe, modo de gestão cibernético que fez da pandemia um grande laboratório.

Vejam a Microsoft, que hoje investe tanto em plataformas educacionais, que são incorporadas sem nenhuma oposição nas universidades e escolas públicas, como na Monsanto e, também, em novas tecnologias prisionais. Esse novo discurso tecnológico – que busca "resolver" todos os problemas relacionados aos limites ambientais planetários – adquiriu tamanha legitimidade porque, como lembra Shoshana Zuboff [psicóloga social], atualizou a promessa do progresso e se atribuiu o papel de emissário do "futuro", pois o mundo governado por algoritmos também é a promessa de um mundo sem conflito.

A despeito dos discursos salvacionistas e de todo o greenwashing que as Big Tech vêm efetuando, Amazon, Google e Microsoft seguem oferecendo infraestruturas informacionais, de serviços de nuvem a ferramentas de Inteligência Artificial para as grandes companhias de petróleo e gás.

Política extrativista e a submissão ao medo

Por toda América Latina, também durante o ciclo de governos progressistas, testemunhamos o crescimento de poderes locais armados que, de certa forma, fazem funcionar nos territórios a face oculta da economia política extrativista submetendo populações ao medo e à contaminação, controlando recursos, corpos e infraestruturas. O bolsonarismo tem muito a ver com esse regime de controle.

Então, os desafios do Lula 3 estão bem além do Congresso. O que se passa no Congresso é só uma expressão dessa guerra que é planetária. Seria o momento de pensar como o Brasil vai se inserir nessa nova composição de forças em que, de um lado, há os agentes da acelerada recolonização planetária e, de outro, aqueles que estão defendendo alguma possibilidade de vida digna nesse planeta.

Não me parece um acaso que as figuras de Marina Silva e Sonia Guajajara sejam as primeiras figuras vulnerabilizadas e atacadas nessa conjuntura – além de serem mulheres, uma negra e outra indígena – pelas pautas que carregam. Elas são as que mais assustam esse grande consórcio de destruição e aniquilação.

Silêncio à esquerda

Não acho que o governo Lula nem a maior parte da esquerda brasileira estejam considerando esse cenário de passagem do horizonte moderno da expansão para o horizonte da extinção. É evidente que os sistemas de governança que existem hoje – tanto nacionais como internacionais – não estão à altura desses problemas porque seguem atrelados aos paradigmas de uma sociedade industrial cujo horizonte era o crescimento perpétuo administrado por pequenas elites predatórias – mas esse crescimento não é mais possível. Hoje, ele significa apenas a aceleração da catástrofe planetária.

Ainda assim, parece que o Lula 3 está paralisado nessa armadilha. A única resposta que ele consegue produzir diante desses impasses globais é a repetição do desenvolvimentismo e isso o obriga considerar as elites do agronegócio como parceiras fundamentais, apostar na extração de petróleo na Amazônia ou investir na estratégia "soberana" de fazer do Brasil um grande celeiro e canteiro de minérios chinês.

Essa receita já apresentou seu limite político em muitos sentidos, ela contribuiu para esvaziar o projeto democrático do PT, fortalecendo as elites que atuaram pelo golpe contra a Dilma, por exemplo. O PT perdeu qualquer vigor para ser um espaço de reflexão coletiva, de experimentação. Não existe nenhum espaço de pensamento porque a reflexão crítica apresentada por movimentos é entendida, hoje, como "ameaça" à estabilidade do governo e isso é muito temerário.

Cultura sindical obsoleta

A cultura sindical (e paulista) do partido foi forjada em mundo composto por dois atores fundamentais: operários e patrões. O horizonte do movimento sindical liderado por Lula era o da ascensão econômica da classe operária, ampliação dos seus direitos atrelada à ampliação das capacidades produtivas que pudessem gerar mais empregos e ganhos para o capital. Essa sociedade industrial entrou em colapso em muitos níveis.

Primeiro porque, cada vez mais, temos trabalhadores sem patrão, vinculados à chamada economia de plataforma.

Segundo, porque a ampliação das "capacidades produtivas" hoje, quase sempre, também quer dizer ampliação das capacidades destrutivas do planeta (pensemos na indústria automobilística, petroquímica, na pecuária industrial, etc.).

Terceiro, porque aquele diagrama de forças não dá mais conta de incorporar as cenas de conflitualidade que definem nosso presente: a luta pela autonomia territorial, a luta por um mundo sem polícia e sem prisões, a luta por justiça socioambiental, a luta contra o poder expansivo das plataformas digitais e seu controle sobre a vida.

Com isso não quero dizer que a figura de Lula, enquanto expressão das lutas sociais de seu tempo, tenha ficado obsoleta e deva ser descartada. Mas a única chance do PT seria a de se aliar e de se deixar fecundar por esses atores, essas pautas, esses movimentos. E não me parece o caso, infelizmente. Qual é a agenda do PT voltada para esses conflitos hoje?

O bolsonarismo, ao contrário, soube ler bem esse diagrama de conflitos e apostou na aliança com o "empreendedorismo de plataforma"; com o agro e garimpo, com a polícia e os grupos armados que controlam territórios. Isso quer dizer que não basta ao governo do PT assumir um compromisso difuso e abstrato com as pautas indígenas, antirracistas ou feministas. Temos que perguntar qual é a política do PT e das esquerdas institucionais para acabar com as torturas nos presídios, com o poder da PM, com a violência do agro contra povos da terra, com a destruição de ecossistemas inteiros em nome de promessas de "desenvolvimento" nunca entregues.

É possível falar de um compromisso real contra o desmatamento sem enfrentar, de fato, o poder do avanço da pecuária e da monocultura no Brasil? Sem enfrentar os usos absurdos de agrotóxicos que hoje são necessários para manter a economia do agro? Não acredito que seja possível.

Máquina eleitoral que tenta dominar ‘a besta’

O partido se tornou uma grande máquina eleitoral que sobrevive com seu único combustível, que é o capital político do Lula, que foi fundamental para derrotar Bolsonaro nas urnas, é verdade. Mas como força política, com capacidade para liderar qualquer projeto de transformação, o PT se apresenta com uma impotência enorme. O problema é que é uma máquina que vai neutralizando e fagocitando também toda a esquerda mais renovada a seu redor. Essa talvez seja a maior vitória da ofensiva fascista (ou ofensiva "Petro-sexo-racial", como o Paul Preciado prefere chamar): o progressismo passa a se autoatribuir a responsabilidade pela domesticação da besta e faz parecer que qualquer movimento mais radical, ousado, pode ser uma irresponsabilidade, pode atiçar a besta novamente.

A notícia ruim é que a besta não surgiu com o bolsonarismo, ela é uma criatura fruto de uma história colonial, escravista, da machocracia espoliadora. Uma criatura que se alimenta dos massacres cotidianos contra os pobres e pretos nesse país; do veneno da soja, da contaminação do mercúrio do garimpo que vem adoecendo de forma acelerada muitos povos indígenas, do trabalho invisível das mulheres que precisam dar conta de uma sociedade sem infraestruturas coletivas de cuidado. Sem dúvida, o bolsonarismo soube e sabe como alimentá-la bem, mas é difícil dizer que o progressismo atuou pelo seu enfraquecimento.

IHU – Considerando estes fatos recentes, podemos afirmar que, mesmo depois de quatro anos de governo Bolsonaro, a esquerda e a ala progressista ainda não foram capazes de compreender o bolsonarismo? E seria por causa dessa falta de entendimento que se entrega a "realpolitik", reeditando as velhas práticas de tudo fazer (e ceder) em nome da governabilidade?

Alana Moraes – Sim, acho que parte do problema vem de uma incompreensão geral do que significa o bolsonarismo. Existe uma compreensão difundida nas esquerdas de que a ascensão e a vitória de Bolsonaro foram consequência de desinformação, das fake news. Quer dizer, Bolsonaro teria sido hábil em montar uma grande maquinaria de mentiras e as pessoas foram todas enganadas, e o que nos resta agora seria restabelecer a verdade.

Essa análise nos deixa confortáveis porque parece que o Bolsonaro foi um raio em céu azul: estava tudo indo bem e, se não fosse pela Lava Jato e pelas fake newsBolsonaro não teria sido possível. É uma análise nada materialista, aliás, porque perde de vista as condições econômicas, materiais, infraestruturais que permitiram a ascensão e a enorme legitimidade deste candidato no país. E por infraestruturas eu incluo também as infraestruturas libidinais que permitiram essa ascensão.

Muitos marxistas, diante da ascensão de Hitler na Europa, se perguntavam o porquê de os trabalhadores alemães o terem apoiado, se o que Hitler representava era o oposto dos interesses da classe trabalhadora. Foram Deleuze e Guattari, com ajuda de Reich, que conquistaram um salto importante: o nazifascismo não tinha nada a ver com "interesse", mas com uma mobilização profunda do desejo: "as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias".

Então, seria a hora de nos perguntarmos coletivamente: por que as pessoas desejaram e ainda desejam o que Bolsonaro é e representa?

A linha que liga o bolsonarismo ao progressismo

É muito incômodo ainda fazer essa conversa – porque ficamos assustados demais e traumatizados com o choque que foi o governo Bolsonaro –, mas precisamos nos perguntar sobre as linhas de conexões entre o bolsonarismo e o projeto do progressismo. O consenso em torno do agronegócio e da mineração parece ser bem evidente, por exemplo. Ex-assessores de Paulo Guedes ocupam cargos estratégicos agora no ministério de Minas e Energia do governo Lula. O consenso em torno do "crescimento econômico" como sinônimo de justiça e bem-estar também me parece um fio de conexão importante entre os projetos.

Terminei de escrever um capítulo de um livro bem legal que vai ser lançado em breve sobre movimentos sociais e autonomias na América Latina. Nele, retomo um pouco algumas ideias de Geoff Mann sobre algo que considero importante lembrar: o paradigma econômico do "crescimento" é relativamente recente na economia. Sua consolidação se relaciona com o contexto do pós-Guerra Fria e, nas palavras de Simon Kuznets, Nobel de Economia em 1971, com o "futuro dos países subdesenvolvidos dentro da órbita do mundo livre". Ele diz que o paradigma do crescimento passava uma mensagem fundamental: agora não há mais necessidade de revolta, os mercados regulados do capitalismo do pós-guerra entregariam, desde que se garantisse um ambiente pacífico, os bons frutos da "modernização" e do "desenvolvimento".

Geoff Mann, professor Departamento de Geografia da Simon Fraser University, é autor de “Climate Leviathan: A Political Theory of Our Planetary Future” (Verso, 2018). | Foto: Simon Fraser University

E aí surge mais um fio de conexão importante: em nome desse projeto de crescimento e desenvolvimento, os governos demandam provas de sacrifício de suas populações: é preciso se arriscar e ir trabalhar durante a pandemia para não prejudicar a "economia"; é preciso entregar territórios para grandes projetos de infraestruturas de energia ou escoamento de commodities; é preciso trabalhar mais para consumir mais e, assim, contribuir para o aquecimento do mercado interno, etc.

Conflito: empecilho a ser eliminado

Me parece que a razão de um governo progressista converteu o conflito e as tensões sociais em matéria de “gestão técnica" que podem ser bem administradas pelas políticas sociais e pelo crescimento econômico. Nessa equação, o conflito é entendido como um empecilho a ser eliminado. Mas as tensões sociais podem ser contidas por um tempo, não eliminadas.

Lula tem repetido muito a ideia, desde de junho de 2013, de que os problemas precisam ser resolvidos "na política" e não "fora dela". Para mim, essa frase expressa um entendimento muito equivocado e autoritário sobre a dinâmica dos conflitos sociais. Para ele, "política" é aquilo que se faz no Congresso ou no governo e quando o conflito se desenrola nas ruas, nos territórios, ele ameaça a "ordem democrática".

Essa é uma conversa longa, mas as instituições políticas, incluindo o congresso, estão cada vez mais longe das tensões, dos anseios, da revolta popular cotidiana. O número crescente de abstenções eleitorais tem sido um dos maiores obstáculos das esquerdas no mundo. Não tenho dúvida de que qualquer forma de transformação social hoje, no Brasil, esteja sendo gestada por agentes que estão fora do jogo da política institucional, e compreender isso como "ameaça à democracia" é fortalecer, mais uma vez, dispositivos de repressão e criminalização das lutas como foi, por exemplo, a lei antiterrorismo aprovada pela Dilma.

Sacrifícios e sacrifícios

Não quero traçar uma falsa simetria perigosa entre os dois projetos [o progressista e o bolsonarista], todos nós sabemos bem das suas importantes diferenças, mas me parece importante superarmos o trauma falando mais desses fios de conexão inclusive para entender até que ponto o governo está mesmo "cedendo" e "abrindo mão" de algumas pautas em nome da governabilidade. Ou se, na agenda estratégica do governo, essas pautas não são, de fato, prioridades.

Qual a diferença de demandar sacrifícios para que as pessoas saiam para trabalhar durante a pandemia ou de pedir para que elas permitam que seu rio, sua terra e, portanto, seus corpos sejam contaminados e devastados muitas vezes de formas irreversíveis? Por que a história de Belo Monte não se tornou um marco de política de "desenvolvimento" desastrosa para que não possa mais ser repetida? Quais as reais diferenças, na prática, entre a política de segurança, a face penal, entre os dois projetos?

Eu gosto da radicalidade do Antônio Bispo, pensador quilombola, que tem feito boas provocações: será que a esquerda e a direita não estariam dirigindo o mesmo trem?

Ou da provocação de Bel Juruna, liderança do Xingu, quando diz: "Vocês falam que temos que ter responsabilidade com o desenvolvimento do Brasil, mas nós estamos falando em ter responsabilidade com a garantia da vida no planeta".

IHU – Marina Silva e Sonia Guajajara são o novo oxigênio desse governo? Temos outras figuras no governo que também trazem novos ares? Que outros embates em torno dos conflitos socioambientais temos em nosso horizonte e quais suas expectativas acerca das posições do governo?

Alana Moraes – Para além de suas figuras, Marina Silva e Sonia Guajajara são expressões de lutas coletivas que chegam ao século XXI com muita força. A chave para essa força também vem do fato de que as duas possuem vínculos com movimentos reais, são cobradas, exigidas, precisam responder a uma coletividade. É bem diferente de figuras como a do [Fernando] Haddad, por exemplo, que sempre se orgulha de definir suas decisões como "técnicas" e assim escamotear suas escolhas políticas.

No entanto, as duas, Sonia e Marina, vão precisar saber convocar essa força coletiva se quiserem seguir no governo lutando por aquilo que as levou até lá. E as duas sabem que essa força não vem do Congresso, muito menos do governo. Lula apostava que as duas poderiam ser figuras "simbólicas" de seu compromisso com as pautas indígenas e socioambientais, mas nada mais perigoso para um símbolo do que a fricção com o real.

A PL 490 [que trata do Marco Temporal] é um dos ataques mais importantes aos direitos territoriais desde 1988. Mas ela não deixa de ser um retrato da condição apodrecida da nossa democracia – como é possível que uma pequena elite predatória possa avançar dessa forma contra a condição já muito precária e frágil dos povos indígenas no tocante aos seus direitos básicos sobre a terra e vida? E como isso tudo pode ser feito em um governo supostamente de esquerda? Como esse governo pode ainda apostar na articulação com um sujeito como [Arthur] Lira [presidente da Câmara], um agropecuarista tão ou mais mafioso que Eduardo Cunha?

E se o governo está rifando as pautas socioambientais (um nome ruim para falarmos de pautas que, na verdade, se relacionam com a garantia da existência humana no planeta), ele o faz em nome de qual projeto? O que é mais "real" – para tomar emprestada essa palavra do que se entende por "realpolitik" – do que as evidências de que estamos vivendo já limites irreversíveis do planeta ou um número que representa o "produto interno bruto"? O massacre contra povos indígenas ou as flutuações do preço da soja no mercado financeiro?

Qual a diferença entre o que se entende por negacionismo climático e a subordinação da agenda socioambiental à pautas consideradas mais "urgentes" porque estariam vinculadas, supostamente, a um projeto de poder que se veja como legítimo defensor da "realpolitik" estando tão distante assim do real, do que ameaça a vida em toda a sua materialidade.

Política do ganha-ganha

Esse é um dilema central para o governo porque inviabiliza um dos principais ingredientes da receita lulista de governabilidade, o ganha-ganha. É possível garantir lucros recordes aos bancos e ao mesmo tempo fazer Bolsa Família ou uma política de valorização do salário-mínimo. Mas não é possível agir para desacelerar a catástrofe ambiental e a devastação de mundos e, ao mesmo tempo, fazer um governo pró-agro, pró-mineração, insistir nas grandes obras de infraestruturas extrativas que destroem territórios.

E a resposta a esse dilema não vai ser essa noção fictícia e vazia de "desenvolvimento sustentável". Não vai ser apostar nos "carros elétricos" como a maior aposta de "transição energética" esquecendo que eles exigem também mais mineração pela extração de lítio; ou nas grandes usinas de energia solar que já estão causando, no semiárido brasileiro, desmatamento, soterramento de açudes, desaparecimento de animais selvagens por conta de seu modelo de implantação.

Não são questões nada simples e o governo deveria agora estar apostando em financiamento de pesquisa, institutos, que pudessem estar inteiramente dedicados a isso, apostar especialmente em projetos de pesquisa que atuem pela colaboração entre pesquisadores e pessoas que habitam territórios mais ameaçados ou atingidos por catástrofes socioambientais; ou aquelas que vêm desenvolvendo um vasto conhecimento sobre os ecossistemas locais e suas transformações recentes.

Novo regime de escalas

A resposta vai ser aprender a criar um regime de escalas que não desprezem a diversidade, aprender com as histórias e experiências locais, as relações entre espécies que sustentam a vida, com os mestres e mestras que colocam limites à conversão da natureza em mero "recurso", em recriar um regime de confiança e colaboração entre ciência, tecnologias e povos da terra para que possamos desacelerar os automatismos impostos pela política estado-centrada e, assim, poder pensar e experimentar alternativas.

Não tenho expectativas de que esse governo possa atuar na defesa dos povos da terra ou que possa abrir algum horizonte de transformação. Acho que as alianças que devem ser feitas estão sendo feitas bem longe do Palácio [do Planalto] ou do Congresso Nacional. É entre mães que perdem seus filhos assassinados pelo Estado e sua polícia; entre indígenas, quilombolas e outras pessoas interessadas e engajadas na construção de autonomias territoriais e tecnologias livres; entre pessoas dissidentes do regime de sexo-gênero construindo redes de apoio; entre abolicionistas penais; entre novos e velhos militantes que ainda atuam por um projeto coletivo de transformação. E que, talvez, estejam menos interessados no espetáculo de grandes mobilizações e suas lideranças e mais atentos às ações silenciosas, mais perenes, que exigem tempo, sagacidade e confiança nos bons encontros, uma política de tocaia que nunca perde de vista o movimento do inimigo.

 

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