13 Junho 2023
"Nos últimos dez anos, pude ver de perto aquilo que eu achava mais legal no jornalismo crescer, se organizar, se multiplicar, transformar o campo. E arrisco dizer que, sem isso, teria sido impossível resistir à ofensiva contra a democracia que veio depois", escreve Marina Dias, diretora de comunicação da Agência Pública, em artigo publicado por Agência Pública, 10-06-2023.
Me mudei para São Paulo em maio de 2013. Vinda do interior do Paraná e recém formada em jornalismo, resolvi agarrar a primeira oportunidade de trabalho que apareceu, em uma grande agência de assessoria de imprensa.
Fora do horário comercial, eu acompanhava atentamente e via crescer a cada dia um novo tipo de jornalismo feito nas ruas, no meio dos movimentos sociais e nas redes. Foi nessa época que topei com as primeiras matérias da recém-criada Agência Pública. O jornalismo estava em crise, com grandes veículos demitindo às dezenas em sucessivos passaralhos, e o jornalismo independente parecia ser uma luz no fim do túnel.
Em uma manhã, encontrei uma convocação no fim de um texto do Bruno Torturra sobre aqueles passaralhos: “Semana que vem, terça-feira, dia 11 de junho, vou ajudar a promover junto com o Fora do Eixo e o Existe Amor em SP, uma reunião aberta com profissionais de mídia, desempregados ou a fim de se desempregar, para apresentar um projeto que vem sendo elaborado em fogo brando há mais de um ano. E que agora está no ponto para receber todos os que se animarem com a ideia: Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação).”
No dia 11 de junho, saí do trabalho e peguei o metrô rumo ao centro. Mas não consegui chegar ao evento porque, naquela noite, o centro de São Paulo foi tomado por uma névoa de gás lacrimogêneo. Essa era uma das táticas que a polícia usava para reprimir as milhares de pessoas que há alguns dias protestavam contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus.
Pelo meu primeiro smartphone, acompanhei a cobertura feita pela Mídia Ninja e percebi que havia uma diferença grande entre o que aparecia na tela do celular e na tela da TV. No celular, o foco eram as reivindicações e a violência policial; na TV, o destaque era para “vândalos” e “baderneiros” que pioravam o “trânsito”.
Nos dias seguintes, as manifestações cresceram. Jornalistas foram feridos pela polícia, pessoas foram presas por carregar vinagre na mochila para diminuir a ardência causada pelas bombas de gás.
Em poucos dias, tudo mudou. Lembro de me ver refletida num prédio da Avenida Faria Lima no meio de uma multidão de verde e amarelo, um grupo diferente daqueles que originalmente protestavam contra os 20 centavos. Hoje a gente sabe onde aquilo ia dar.
Passado junho de 2013, me aproximei da Mídia Ninja. Ouvia e observava muito, mas tentava não me expor. Passei a acompanhar as atividades e manifestações de movimentos sociais, de indígenas, de professores. Fazia algumas fotos com meu celular e trocava impressões e informações com outros midiativistas por um chat.
No dia 15 de outubro, encontrei com um amigo no metrô Faria Lima para ir a um ato de dia dos professores. Logo que chegamos na Marginal Pinheiros, perto de uma loja Tok&Stok, as bombas começaram. Fomos para a rua de trás e sentamos numa escadaria, esperando o tumulto passar para ir embora. Um vendedor ambulante tentou nos vender capas de chuva.
Mas as bombas começaram a estourar na rua em que estávamos. Entramos junto com outras pessoas no estacionamento da Tok&Stok. Um helicóptero passou e, em seguida, uma fileira de uns 20 policiais passou correndo, entrou no estacionamento e nos mandou sentar no chão. Nos colocaram deitados de barriga pra baixo, enfileirados. Fui separada do meu amigo e colocada no porta-malas de uma viatura com outras três mulheres. A garota do meu lado segurou minha mão. Um dos policiais viu e fez comentários homofóbicos.
Quando chegamos à delegacia da Polícia Civil em Pinheiros, éramos dezenas de detidos. Inclusive o meu amigo e o vendedor de capas de chuva. Vimos quando policiais civis comentaram indignados sobre a polícia militar trazer tanta gente para eles ouvirem e ficharem. Ficamos esperando no pátio da delegacia sem saber o que ia acontecer.
Uma prima advogada veio me socorrer. Contei a história. Disse que não sabia por que estava ali. Não tinha quebrado nada, estava apenas seguindo a manifestação quando as bombas começaram e tive que entrar no estacionamento para me proteger e me distanciar da confusão. Não fui agredida, também não fui revistada. Mesmo assim fui fichada, embora os advogados presentes tenham tentado argumentar com o delegado que aquilo era inconstitucional. Prestei depoimento e fui embora.
Naquela mesma noite, 70 manifestantes foram detidos no Rio de Janeiro. No dia seguinte, enquanto eu trabalhava, recebi uma ligação de uma repórter do jornal O Globo. Com medo, disse que não daria entrevista. A manchete do jornal no dia seguinte foi “Lei mais dura leva 70 vândalos para presídio”. Abaixo do título, fotos e pequenos perfis de três manifestantes detidos no Rio, com frases como “defende o anarquismo” e “coleciona participações em protestos”, como se isso justificasse as detenções.
Uma das pessoas com o rosto estampado na capa do jornal era Elisa Quadros, que em 2013 ficou conhecida como “Sininho”. Elisa foi presa em Bangu duas vezes e teve a vida destruída. “A mídia é muito mais poderosa do que a prisão. A destruição da identidade é eterna”, disse em uma entrevista à Pública em 2017. Quase três anos depois, a entrevista de Elisa bateu forte em mim. Quando perguntada sobre quando virou a “Sininho”, respondeu que foi em 15 de outubro de 2013.
Apesar de detidas no mesmo dia, o que aconteceu comigo foi muito pouco comparado ao que Elisa e tantas outras pessoas passaram naqueles meses. Mas foi suficiente para me deixar com muito, muito medo. Parei de conversar com midiativistas e de fazer posts no Facebook. Adotei um protocolo de não exposição na internet que me acompanha até hoje. Ainda é medo. Em dez anos, é a primeira vez que escrevo um relato sobre 2013.
No início de novembro de 2013, recebi uma intimação para depor no DEIC, o Departamento de Investigações Criminais da Polícia Civil de São Paulo. As oitivas faziam parte do “Inquérito black bloc”, instaurado naqueles dias pela polícia comandada pelo então governador Geraldo Alckmin. O inquérito buscava enquadrar como “associação criminosa” grupos de pessoas que tinham participado de manifestações, em vez de investigar individualmente cada delito de vandalismo. No meu caso, e no de muitos outros, nem vandalismo tinha.
No dia 14 de novembro, fui ao DEIC, acompanhada de minha prima advogada. As pessoas detidas no mesmo dia que eu também estavam lá. A primeira coisa que reparei foi a diferença no tratamento dispensado a mim, uma mulher branca de classe média, acompanhada de uma advogada, e aos rapazes negros, acompanhados por suas mães, com quem os policiais eram bastante estúpidos.
As primeiras perguntas feitas a mim foram onde eu morava, quem me sustentava e onde eu trabalhava. Depois dessas respostas, a conversa mudou. O policial passou a fazer as perguntas meio que se desculpando. Até que ele apareceu com uma edição da revista IstoÉ com uma mulher supostamente adepta da tática black bloc na capa. Abriu a revista na reportagem e começou a me perguntar se eu conhecia aquelas pessoas, se já tinha feito algum treinamento armado em um sítio no interior de São Paulo. Respondia que não, incrédula. Em fevereiro de 2014, a Pública fez uma reportagem que explica perfeitamente o “Inquérito black bloc” e traz relatos parecidos com o meu. O inquérito foi encerrado em janeiro de 2016, sem acusados.
Me lembro de questionar muito a cobertura da mídia tradicional sobre os atos de 2013 antes, mas principalmente depois de ser detida. Tive que convencer familiares de que não tinha nada de errado em ir a manifestações e participar de iniciativas de transformação da minha própria profissão. No fundo, era isso que mais me interessava e foi isso que me levou a estar ali.
O jornalismo no Brasil já estava mudando antes de 2013, mas me parece que a partir dali ficou tudo muito exposto: enquanto as grandes empresas, em crise, demitiam aos montes e tentavam viabilizar a transição do impresso para o digital, veículos recém-criados, como a própria Pública, mostravam que dava sim pra fazer jornalismo de qualidade fora das grandes redações.
Muitos novos veículos surgiram depois de junho de 2013. Em 2016, a Pública lançou o Mapa do Jornalismo Independente, em que mapeamos 79 iniciativas em todo o Brasil. De 2013 para 2014, o número de novas organizações jornalísticas havia saltado de 5 para 18. Em 2015, foram criados 21 novos veículos de jornalismo independente.
Foi nessa época, em 2014, que tive o privilégio de começar a trabalhar em uma redação que contava histórias diferentes das que apareciam nas TVs e nos jornais. Uma redação que, meses antes de eu chegar, já tinha contado melhor que eu toda essa história que relembro hoje, quando investigou o “Inquérito black bloc”. Que fez questão de chamar Elisa Quadros por seu nome.
Uma redação que acaba de publicar um especial sobre os ecos de 2013 que sentimos na pele até hoje. Como a direita tomou gosto pela rua e foi se radicalizando até invadir as sedes dos três poderes em 2023? Qual o perfil dos manifestantes que protestaram nos últimos dez anos? O que aconteceu com o Movimento Passe Livre, que deu o pontapé inicial nos atos de 2013? E o que aconteceu com estudantes que ocuparam universidades em repúdio à PEC do teto de gastos, aprovada durante o governo Temer em 2016? Essas foram algumas das perguntas que procuramos responder no especial “10 anos do Brasil nas ruas”, que você confere no site da Pública.
Nos últimos dez anos, pude ver de perto aquilo que eu achava mais legal no jornalismo crescer, se organizar, se multiplicar, transformar o campo. E arrisco dizer que, sem isso, teria sido impossível resistir à ofensiva contra a democracia que veio depois.
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Os ecos de junho de 2013 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU