11 Novembro 2015
“Do ponto de vista do interesse público, não há necessidade nem da urgência nem do projeto”, assegura o advogado.
Foto:www.sidneyrezende.com |
Pilatti frisa ainda que a Lei antiterrorismo é uma “falsa solução para um problema que não existe”. E explica: “Não há notícia de existência ou de instalação de organização terrorista no Brasil, que sediou uma Copa do Mundo em várias capitais sem precisar de uma excrescência legal como essa para controlar e reprimir. Salvo engano, hoje as únicas organizações que praticam atos terroristas cotidianamente no Brasil, provocando pânico, mortes, lesões graves e depredação de patrimônios de modestas famílias são as polícias militares. Terrorista no Brasil é o Estado”.
Na avaliação de Adriano Pilatti, o ponto mais polêmico do PL 101/15 é a permissão do uso de “conceitos indeterminados ou abertos, cuja interpretação dá margem a uma gigantesca subjetividade. De acordo com seus preconceitos, policiais, promotores e juízes poderão enquadrar quem quiserem como terrorista, ou financiador ou facilitador de terrorismo, ou apologista de terrorismo”.
Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro — Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I — La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte — Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 — Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que avaliação faz da aprovação do PL 101/15, conhecido como Lei antiterrorismo, no Senado? Que fatores contribuíram para a aprovação da lei?
Adriano Pilatti - Do ponto de vista das liberdades individuais e coletivas e dos direitos fundamentais, trata-se de um desastre. Um retrocesso que nos joga de volta para os tempos do arbítrio e do terror de Estado e que pode produzir injustiças e sofrimentos em quantidades industriais. Uma tocaia covarde contra os movimentos e levantes dos “de baixo” contra a violência de Estado & Capital. Um golpe mortal contra as liberdades de manifestação e expressão, acima de tudo.
Pilatti durante evento no IHU
Foto: João Vitor Santos/IHU
Os fatores são muitos: em primeiro lugar, e essa primazia nada lhe retirará, o projeto e o pedido de urgência encaminhados pela presidenta Dilma. Na sequência, a nociva hegemonia reacionária hoje existente na Câmara e no Senado, com a cumplicidade de boa parte da bancada governista-petista. Conta também o silêncio vergonhoso de amplos setores da comunidade jurídica, sejam os conservadores de sempre, sejam os garantistas “ad personam”, que hoje priorizam a defesa do governo Dilma a qualquer custo e evitam criticar publicamente o projeto (que em off também condenam) a pretexto de não prejudicá-la, e essa velhacaria um dia lhes será cobrada. Além disso, o compromisso de desinformar que caracteriza a imprensa comercial, as pressões do ministro da Fazenda [Joaquim Levy] e dos setores do capital que por sua boca falam, os governos e os grandes grupos econômicos envolvidos nas obras faraônicas e nas Olimpíadas e a correlação de forças são de assustar.
IHU On-Line - Por que o PL está sendo votado em caráter de urgência? Há tal necessidade?
Adriano Pilatti - Está sendo votado a toque de caixa porque a presidenta da República assim o quis (fê-lo porque qui-lo), a Constituição lhe dá poder para decidir isso. E se recusou a retirar a urgência inobstante os inúmeros pedidos nesse sentido, vindos de setores do PT, dos movimentos sociais e até de setores do PMDB! Do ponto de vista do interesse público, não há necessidade nem da urgência nem do projeto. Quem dele necessita são as forças dominantes já mencionadas na resposta anterior, para que possam facilitar o aprofundamento do projeto de predação e saque a que hoje se dedicam, silenciando resistências, encarcerando e desqualificando resistentes. Governo e governistas alegam que isso é uma exigência do GAFI [Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo], grupo internacional de ação contra crimes financeiros e de financiamento de ações criminosas, mas isso não chega sequer a ser meia verdade porque o GAFI não exige a tipificação penal. Talvez quem o exija sejam os financiadores de campanha.
De todo modo, trata-se de uma falsa solução para um problema que não existe. Não há notícia de existência ou de instalação de organização terrorista no Brasil, que sediou uma Copa do Mundo em várias capitais sem precisar de uma excrescência legal como essa para controlar e reprimir. Salvo engano, hoje as únicas organizações que praticam atos terroristas cotidianamente no Brasil, provocando pânico, mortes, lesões graves e depredação de patrimônios de modestas famílias são as polícias militares. Terrorista no Brasil é o Estado. Inclusive quando legisla, basta ver a pauta regressiva do Congresso.
Além disso, cabe lembrar que o Brasil já possui legislação repressiva mais do que suficiente. Como lembrou recente Nota Técnica da Rede Justiça Criminal - Conectas Direitos Humanos, já temos definições penais tipificando: “o homicídio qualificado (artigo 121, § 2º do Código Penal), a extorsão mediante sequestro (artigo 159 do Código Penal), o incêndio e explosão (artigos 250 e 251 do Código Penal), o desastre ferroviário (artigo 254, § 1º do Código Penal), o sinistro em transporte marítimo, fluvial ou aéreo (artigo 261, § 1º do Código Penal), o envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal (artigo 270 do Código Penal), a epidemia (artigo 267 do Código Penal), a inundação (artigo 254 do Código Penal), o uso de gás tóxico ou asfixiante, desabamento ou desmoronamento (artigos 252 e 256 do Código Penal), o fabrico, fornecimento, aquisição, posse ou transporte de explosivos ou gás tóxico, ou asfixiante (artigo 253 do Código Penal)”. Só a vontade de repressão precisa de mais tipificações.
“Só a vontade de repressão precisa de mais tipificações” |
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IHU On-Line - Quais são os pontos mais polêmicos do texto aprovado no Senado?
Adriano Pilatti - Antes de mais nada, polêmica é a própria definição penal do que seja terrorismo. Por isso a imensa maioria dos Estados não o faz. Dos 193 países em que hoje se divide o mundo, somente cinco definem penalmente o terrorismo. Ao longo das décadas, a ONU já examinou mais de 150 propostas de definição de terrorismo, rejeitou todas, e não recomenda que os Estados que a integram o façam em suas legislações.
Não esqueçamos que durante muitos anos Nelson Mandela foi considerado terrorista pelo governo norte-americano. Dilma Rousseff e Aloysio Nunes, autores do projeto original e do substitutivo aprovado no Senado, também já foram considerados terroristas pelo governo brasileiro. Há no Rio de Janeiro um jovem negro e pobre preso há 30 meses e condenado a cinco anos por ter sido encontrado com água sanitária, vassoura e Pinho sol na noite de uma manifestação de que não participara, o então catador Rafael Braga Vieira, que poderia, pelo projeto, ser condenado à pena de 12 a 20 anos.
IHU On-Line - O que o PL entende por "atos de terrorismo”?
Adriano Pilatti - O maior problema do projeto Dilma-Aloysio é exatamente a indefinição das condutas. O projeto usa o que em Direito chamamos de conceitos indeterminados ou abertos, cuja interpretação dá margem a uma gigantesca subjetividade. De acordo com seus preconceitos, policiais, promotores e juízes poderão enquadrar quem quiserem como terrorista, ou financiador ou facilitador de terrorismo, ou apologista de terrorismo. As definições são vagas, obscuras. O próprio autor do substitutivo aprovado no Senado reconhece que ficará a critério do juiz decidir se uma conduta será enquadrada como dano patrimonial decorrente de manifestação ou como “terrorismo contra coisa”, contribuição sua para a estupidez penal, que dá ao capital direitos maiores do que às pessoas.
Tipos abertos e indeterminados são aqueles que, à primeira vista, todo mundo acha que sabe o que é, mas na hora de explicar todo mundo se embaralha. Alguns exemplos das indefinições vagas e obscuras que abrirão avenidas ao arbítrio de policiais, promotores e juízes são as seguintes expressões usadas no projeto:
1- “extremismo político”: para um juiz fascista será o comunismo, para um juiz comunista o fascismo, afinal em política extremista é sempre o oponente…
2- “ato que atentar gravemente contra as instituições democráticas”, a vagueza e a indeterminação são quase totais;
3- “objetivo de causar pânico generalizado”: trata-se da tentativa de criminalização de intenções, sempre difíceis de identificar adequadamente, e quem vai afinal dizer se o objetivo era ou não esse ou aquele será a trindade policial-promotor-juiz.
Sejamos claros: os alvos preferenciais da lei que eventualmente resultar desse asqueroso projeto serão os que contestam a máquina de destruir natureza e gentes que é o sistema estabelecido. Ninguém ignora que, com a homenagem às exceções de sempre, as corporações policiais, o MP e a magistratura são majoritariamente conservadores, quando não reacionários. Para usar o exemplo do chamado “processo dos 23” instaurado contra ativistas no Rio, no Judiciário há muito mais “Itabaianas” do que “Darlans”, lastimavelmente.
IHU On-Line - Caso o PL seja aprovado, há riscos de criminalização dos movimentos sociais? Quais são as brechas da lei que possibilitariam esse tipo de criminalização?
Adriano Pilatti - Não se trata de risco, mas de favas contadas. Acontecerá o mesmo que aconteceu com a lei chilena, condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos exatamente por violentar os movimentos sociais a pretexto de combater o terrorismo. A impressão que fica é que um grupo de tiras passou em revista tudo que aconteceu de 2013 para cá nas ruas, e também as práticas de movimentos já tradicionais como o MST, decompôs tudo em condutas e as tipificou como crimes. Vejamos alguns exemplos:
1- “danificar edifício público ou privado, motivado por extremismo político”, conduta sujeita à pena de 16 a 24 anos, o que entra aí? jogar tinta vermelha na fachada de estabelecimento implicado em crime de sangue? quebrar um caixa eletrônico? forçar uma porta ou janela durante uma ocupação? danificar um posto de pedágio?
“Os alvos preferenciais da lei que eventualmente resultar desse asqueroso projeto serão os que contestam a máquina de destruir natureza” |
2- “apoderar-se de rodovia, escolas, estádios esportivos, ou edifício público ou privado”, condutas também sujeitas à pena de 16 a 24 anos, criminaliza excessivamente todas as ocupações;
3- “fazer, publicamente, apologia de autor de ato terrorista”, crime de opinião sujeito à pena de 3 a 8 anos — como fica ao arbítrio do juiz decidir o que é ato terrorista, quem quer que exercite a liberdade de expressão para defender a reputação de ativista ou manifestante injustamente acusado poderá ser também incriminado, criminalizando-se assim a solidariedade;
4- “quem de qualquer modo contribui para a obtenção de ativo, bem ou recurso financeiro, com a finalidade de financiar, total ou parcialmente, pessoa que tenha como atividade secundária, mesmo em caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei” fica sujeito à pena de 12 a 20 anos, o que também pode criminalizar atos de solidariedade traduzidos em ajuda material para alimentar, abrigar ou transportar alguém injustamente acusado de crime de terrorismo…
Em suma, do ponto de vista dos movimentos, o projeto é insuscetível de melhoria ou aperfeiçoamento, é um perigo intrínseco. Tem de ser derrotado, retirado ou vetado pela presidente, com pedido de perdão aos movimentos por tê-lo apresentado. Justamente o que causa maior perplexidade é que tenha sido proposto por alguém que na juventude experimentou na carne os efeitos do arbítrio e da criminalização do suposto terrorismo.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Adriano Pilatti - Não esqueceremos.
Por Patricia Fachin
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Lei antiterrorismo: uma falsa solução para um falso problema. Entrevista especial com Adriano Pilatti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU