08 Junho 2023
"Gasto com juros, que só alimenta o rentismo, nunca teve teto. É a segunda maior despesa do Estado, atrás apenas da Previdência, e só neste ano cresceu 50%. Insistir no arcabouço fiscal não nos livrará dessa herança maldita de Bolsonaro e Guedes", escreve Paulo Kliass, doutor em Economia, em artigo publicado por Outras Palavras, 06-06-2023.
Desde que foram anunciados os resultados das eleições presidenciais em outubro passado, as elites vinculadas ao financismo em nossas terras passaram a colocar em movimento uma estratégia de sequestrar o terceiro mandato do presidente Lula. Uma vez derrotado o candidato que eles também haviam apoiado de forma quase unânime em 2018, esse pessoal põe em marcha seu plano B para minimizar a derrota e impedir que as ideias do programa econômico apresentado pelo candidato vencedor à sociedade permanecessem fora de qualquer possibilidade de implementação pelo futuro governo.
Entre a oficialização da vitória de Lula e a data de sua posse, os representantes da oligarquia financeira e os grandes meios de comunicação buscaram indicar nomes para compor a área econômica, com o intuito declarado de evitar uma descontinuidade em relação à gestão de Paulo Guedes e também de Henrique Meirelles. Assim foram meses de balões de ensaio semanais, apresentando e sugerindo figuras com perfil conservador, alinhados à ortodoxia e ao neoliberalismo. Tendo em vista a resistência do futuro presidente em aceitar tais ofertas, surge em cena um plano C. Como não conseguiram emplacar nomes, voltaram-se à tentativa de assegurar um programa que não significasse nenhuma ruptura com os anos de austeridade fiscal e arrocho monetário.
Uma parte dessa tarefa já havia sido cumprida em 2021, quando Paulo Guedes conseguiu convencer seu chefe a apoiar a proposta de conferir independência ao Banco Central (BC). Assim, por meio dos dispositivos da Lei Complementar 179, o presidente e demais diretores do BC passaram a contar com mandato fixo. Por meio de tal artimanha, Lula só poderá indicar o novo presidente da instituição e contar com maioria no colegiado de nove membros a partir de 2024. Em razão de tal golpe perpetrado contra nossa democracia, o novo governo não consegue ter a seu dispor ferramentas essenciais da política econômica, a saber, a política monetária e a política cambial.
Como a diretoria do BC são os próprios integrantes do Comitê de Política Monetária (COPOM), os indicados por Bolsonaro mantêm uma política de sabotagem das intenções desenvolvimentistas do novo governo. Ao longo das 4 reuniões do colegiado responsável pela definição da taxa oficial de juros realizadas desde que foi reconhecido o nome do futuro Chefe do Executivo, a Selic foi mantida nos estratosféricos níveis de 13,75% ao ano. O Brasil permanece como o país de maior taxa real de juros do mundo e esse patamar do custo financeiro inviabiliza a retomada dos investimentos necessários na economia, além de provocar um impacto significativo nas despesas financeiras do governo.
Em outra esfera de atuação, os representantes do financismo metralharam de forma incessante qualquer tipo de proposta de flexibilização mais efetiva da política fiscal. Ainda que Lula tivesse anunciado inúmeras vezes durante a campanha eleitoral o seu desejo e a necessidade de o Brasil revogar a regra do teto de gastos, a pressão vinha no sentido de colocar alguma outra medida de austeridade fiscal no seu lugar. Infelizmente, esse movimento acabou conquistando alguns corações e mentes no interior da própria equipe econômica. Assim o desenho da PEC da Transição, promulgada sob a forma da atual Emenda Constitucional nº 126, incluiu a necessidade de aprovação de uma lei complementar com um novo regime fiscal para que o teto de gastos seja efetivamente revogado.
Fernando Haddad priorizou a negociação e a interlocução com o presidente do BC e com representantes do sistema financeiro para a elaboração de tal medida. O relator Cláudio Cajado (PP/BA), colega de confiança do presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP/AL), conseguiu tornar a proposta ainda mais distante das necessidades de um programa nacional de desenvolvimento. Se a proposta enviada pelo Executivo já mantinha a essência de controlar elevação de despesas em relação ao crescimento das receitas e insistia na lógica de obtenção de superávit primário, as alterações aprovadas pela Câmara aprofundaram ainda mais o caráter pró-cíclico da medida e retiraram as possibilidades de o Estado atuar como protagonista na busca do crescimento e do desenvolvimento.
Assim, corre-se o risco de o Congresso Nacional aprovar um texto que signifique a manutenção da estratégia de redução do peso do setor governamental na economia. A grande imprensa se encarrega de torpedear as propostas de flexibilização das regras da austeridade fiscal, ignorando que tal estratégia há anos já vem sendo implementado nos países do próprio centro do capitalismo, a exemplo dos Estados Unidos e da União Europeia. Como o arcabouço fiscal em tramitação determina que as despesas orçamentárias só poderão crescer a um ritmo de 70% do aumento observado nas despesas, a médio prazo isso terá o significado de um encolhimento relativo do Estado.
Além disso, a malandragem toda reside na manutenção do conceito de superávit primário como métrica de avaliação do sucesso da austeridade. Ao apelar para o economês, o povo da finança esconde sua verdadeira intenção. Trata-se de continuar oferecendo um tratamento VIP às despesas financeiras – leia-se, gastos com juros sobre a dívida pública. Sim, pois estas rubricas não são consideradas “primárias” na terminologia adotada. Isso significa que o modelo pressupõe um enorme esforço para comprimir as despesas como assistência social, saúde, educação, previdência social, salários e outros, para que haja um resultado positivo nas contas públicas não financeiras. E esse saldo credor vai se transformar automaticamente no volume de juros a serem pagos aos detentores dos títulos da dívida pública.
Esse tipo de despesa não era submetido a nenhum limite na política do teto de gastos e vai continuar assim no novo modelo a ser adotado após a aprovação da referida lei complementar. Assim, o que se depreende é que as regras de austeridade fiscal não valem para todos. Os números apresentados oficialmente há poucos dias pelo BC confirmam essa hipótese. Já são conhecidos os valores despendidos pelo governo federal a título de juros ao longo do primeiro quadrimestre do presente ano.
Entre janeiro e abril de 2023 o governo federal gastou R$ 228 bilhões para pagamento de juros da dívida pública. O valor é 48% mais alto do que o a soma relativa ao primeiro quadrimestre do ano passado, que havia registrado R$ 154 bi. Esse total, por sua vez, representou uma elevação de 36% em relação aos R$ 113 bi de 2021. Ora, esses números evidenciam que a herança maldita do governo Bolsonaro & Guedes foi mantida e aprofundada durante os primeiros meses do novo mandato de Lula. A austeridade fiscal não se aplica aos gastos com juros.
Caso o enfoque seja direcionado sobre os valores pagos a título de juros ao longo do ano todo, o cenário se mantém o mesmo, ainda que com índices de crescimento mais atenuados de um período para outro. Os últimos 12 meses encerrados em abril de 2023 indicam um total de R$ 660 bi na conta financeira. Trata-se da segunda maior despesa do governo federal, atrás apenas dos gastos com previdência social. No entanto, como a rubrica é classificada como “não primária”, sobre ela não cabe a imposição de nenhum teto e nem de limite algum.
Esse montante corresponde a um aumento de 13% sobre os R$ 586 bi gastos observados entre janeiro e dezembro de 2022 a título de pagamento de juros. Além disso, a comparação de 2022 com os R$ 448 bi relativos a 2021 representou um crescimento de 31%.
Brasil – Juros pagos – 2021/23 | (últimos 12 meses) – R$ bilhões (Fonte: BC | Reprodução Outras Palavras)
Esses números refletem de forma bastante cristalina a verdadeira natureza do chamado “esforço fiscal”, elemento tão divulgado e idolatrado pelos defensores do financismo e do ajuste conservador. A austeridade tão proclamada como suposta condição para garantia de estabilidade macroeconômica não se aplica de forma isonômica sobre todos os setores da sociedade. À medida em que se introduz de forma sorrateira a separação entre as despesas financeiras e todas as demais não-financeiras, a busca da tão venerada responsabilidade fiscal deixa explícita a característica intrínseca à austeridade: reprodução das desigualdades sociais e econômicas.
Partindo de um modelo conceitualmente viesado em prol do capital financeiro, o equilíbrio fiscal não pode ser considerado como “neutro” ou “técnico”, como costumam qualificá-lo os defensores do regime. A austeridade tem rosto e endereço conhecidos. A exemplo de outros aspectos da política econômica, pouca coisa muda em termos essenciais na comparação entre o teto de gastos da herança Temer & Bolsonaro e o subteto proposto por Haddad. Trata-se de buscar o ajuste em cima de redução dos direitos dos setores de base da nossa pirâmide da desigualdade, ao mesmo tempo em que preserva e até amplia os benefícios concedidos às elites e ao capital, quer sejam os 1% ou os 0,1% do topo da nossa vergonhosa figura geométrica da concentração.
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Austeridade para quem? Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU