18 Mai 2023
Tendo se tornado estrutural, a guerra não é compatível com a democracia. As três ruínas do pensamento superadas no século XX e retomadas pelo fascismo profundo: desigualdade, soberania e guerra. A verdadeira reforma de Meloni.
Publicamos o texto de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, para a apresentação à Fundação Basso do livro de Domenico Gallo: Guerra ucraina (Delta 3 Edizioni). A tradução é de Luisa Rabolini.
A visita de Zelensky à Itália e o seu tour pelas capitais europeias, com a bênção dos Estados Unidos, confirmam que a guerra é estrutural na nossa sociedade, no sentido de que toda a ordem internacional se funda e estrutura na guerra e, por isso, a guerra é a sua forma permanente, seja na forma combatida ou em stand-by. Afinal, sempre foi assim, desde o início da história conhecida, com exceção no século XX com a negação da guerra como congênita ao homem na Carta das Nações Unidas e da Pacem in terris de João XXIII e da Igreja depois dele.
Mas a guerra não é compatível com a democracia; isso vale também na Itália, onde, de acordo com o art. 78 da Constituição, o "estado de guerra", deliberado pelas Câmaras, é um estado de exceção - o único - que permite derrogações às regras democráticas.
Isso é ainda mais verdadeiro na comunidade internacional: não por acaso no início da guerra na Ucrânia Zelensky pediu a dissolução da ONU, depois não reconheceu a Rússia na presidência rotativa do Conselho de Segurança, enquanto ficam comprometidas as tentativas de estabelecer um constitucionalismo mundial mais avançado. Portanto, a democracia internacional está suspensa.
No entanto, a guerra não é a única coisa que põe em risco a democracia na Itália. Existem muitos outros sintomas e símbolos que fazem ressoar um "alarme à democracia" que precisam ser reconhecidos.
Em primeiro lugar, se por natureza a democracia é inclusiva, a política é hoje concebida na Itália, como em muitos outros países do Ocidente, como uma contraposição amigo-inimigo, segundo a teorização que dela fez Carl Schmitt. As leis eleitorais majoritárias e bipolares são a consequência.
Para nos alertar hoje sobre o "quem vive?", além disso, existe o risco próprio a todas as democracias, que é da democracia ser um regime maravilhoso, mas frágil, que de forma dissimulada abusando nos instrumentos representativos e jurídicos pode transformar-se em autocracia. Isso aconteceu com o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha; pode acontecer que uma força politicamente e culturalmente não hegemônica que ganha as eleições por acaso alegue que deve permanecer no poder para garantir o bem ou a salvação do país; e pode acontecer, como efetivamente aconteceu com o Fórum Econômico de Davos, que grandes potências econômicas ou políticos internacionais pressionem as políticas nacionais para que "esfriem" a democracia.
Existem muitas democracias, mesmo entre as mais conhecidas, que se mostraram vulneráveis e em risco. Basta pensar nos Estados Unidos, onde até uma eleição presidencial estava sendo derrubada e onde há mais massacres do que escolas, no Brasil onde Lula foi preso, na França que promulga leis retiradas do Parlamento, a Israel que persegue os palestinos e subverte a ordem judiciária e da própria Suprema Corte. A democracia também esteve em risco várias vezes na Itália, com o governo Tambroni (1960), o plano Solo (1964), os massacres, o conluio Estado-Máfia, as Brigadas Vermelhas, o assassinato de Moro: mas na época havia os partidos de massa para presidir a democracia e as secções comunistas eram alertadas quando o perigo se tornava maior.
E hoje os sintomas de perigo estão crescendo gradualmente poucos meses após as eleições de verão geridas descuidadamente pelos partidos, e marcadas por um grande número de abstenções, que quase por acaso produziram um governo de matriz cultural fascista.
São muitos os sintomas de uma emergência democrática. Não é somente a luta aos migrantes, a introdução de novos crimes; há um uso inescrupuloso do sistema de espólios, que se infelizmente é considerado normal no atual sistema político, é uma ferramenta delicada nas mãos de poderes pouco confiáveis. Graças a isso, o governo coloca as mãos na polícia e na guarda de finanças, e ao mesmo tempo (algo nunca antes visto, segundo Bersani) na RAI, INPS, INAIL, ENI, ENEL, LEONARDO e CORREIO. Sobre os migrantes, já foi introduzido o estado de emergência e Salvini controla a Guarda Costeira. Um sintoma grave é a longa suspensão das coletivas de imprensa, substituídas por spots televisivos autoproduzidos pela primeira-ministra no Palácio de Governo. Também foi grave a apropriação distorcida de datas como o 25 de abril e o 1º de maio, o insulto aos sindicatos de convocá-los na noite anterior ao lançamento do decreto trabalhista, a implícita citação fascista do lema “aqui não se faz política, se trabalha” (sobre a festa de 1º de maio). Há um fascismo profundo em Meloni, como diz
Carlo Rossella, berlusconiano e ex-diretor do TG1, que vem de longe, ou seja, da cultura que gerou o fascismo do século XX e que por ele foi assumida em sua pior forma, uma cultura com a qual a própria história estabeleceu uma ruptura de época com a guerra antifascista e antinazista que terminou com a Libertação.
Quais são as correntes negativas daquela cultura, adotadas pelos fascismos do século XX que foram esmagados pela revolução da Segunda Guerra Mundial?
O primeiro é o pensamento da desigualdade por natureza entre os seres humanos. É um pensamento que vem da sociedade senhorial que discriminava senhores e servos, passou pelo regime de cristandade, legitimou a conquista da América e o genocídio dos índios em sua inferioridade em relação aos espanhóis (suspeitava-se que não tivessem alma). A desigualdade por natureza foi depois teorizada por Hegel na distinção entre povos da natureza e povos do espírito, por Nietzsche para quem “os homens não são todos iguais. Nem devem ser!”, até Croce que contrapõe “homens que pertencem à história e homens da natureza, homens capazes de desenvolvimento e incapazes”, sendo estes últimos “homens zoologicamente e não historicamente”, motivação esta de todos os racismos passados e atuais: fica claro, portanto, por que os pós-fascistas que cultivam a integridade da "Nação" militam contra a "substituição étnica" e sonham com um bloqueio naval contra os migrantes.
O segundo tabu que foi removido após a derrota dos fascismos do século XX é o pensamento da soberania incondicional. Vem da época dos antigos Impérios, passou pela definição de Marino da Caramanico de soberania como soberania do poder que não reconhece nenhum outro poder "superiorem" (souverain), acima de si mesma, foi teorizada por Hobbes que no estado moderno vê um monstro bíblico, o Leviatã, que, saindo do estado de natureza e tornando-se, como diz Ferrajoli, um "lobo artificial", monopoliza a violência e promete segurança em troca de liberdade. O fetiche da soberania chega depois até o estado ético do nazismo e Giovanni Gentile; fica claro, portanto, por que os soberanistas se batem contra a unidade europeia e preferem obedecer à OTAN e ao Pentágono em vez de abraçar o multilateralismo constitucional e se reportar ao sistema de segurança da ONU.
A terceira constante perversa que atravessou a história é o pensamento da guerra. Vem desde os primórdios da nossa cultura, desde o fragmento de Heráclito que faz da guerra "o pai e rei de todas as coisas", passa pela teologia medieval da guerra justa, que sobreviveu até o Papa João; na transição para a modernidade, a guerra é exaltada pelo próprio Hegel como higiene dos povos e antídoto contra o seu "enfraquecimento", da mesma forma que "o movimento dos ventos preserva o mar da putrefação a que uma paz duradoura ou perpétua reduziria os povos", ela é depois teorizada pelo general prussiano von Clausewitz, é assumida, com o Inimigo, por Carl Schmitt como "critério do político", até o "acreditar, obedecer, lutar" do fascismo. Após a suspensão garantida pela dissuasão nuclear durante a Guerra Fria, volta a ser recuperada assim que a Guerra Fria termina no conflito do Golfo e chega à "competição estratégica" de Biden que "culmina no desafio com a China" e o "venceremos" de Zelensky; fica claro, portanto, por que aqueles que enviam armas para a competição que está devastando a Ucrânia e depois convocam as empresas para restaurá-la, ignoram o repúdio constitucional à guerra e desempenham dois papéis na comédia, de destruição e reconstrução.
Da velha cultura também vem a concepção do trabalho como desprezível, tanto que no início era destinado aos servos e poupado aos senhores, e através de uma longa história chegou até nós como trabalho escravo, trabalho mercadoria, sempre alienado e explorado, enquanto a Constituição o coloca como próprio fundamento da República democrática.
Mas o sinal mais grave da crise democrática é a tentativa apressada de Giorgia Meloni de institucionalizar um poder pessoal por meio de reformas constitucionais voltadas para o presidencialismo e o sistema com primeiro-ministro. Giorgia Meloni, embora afirme querer estabelecer um sistema que dê mais estabilidade e eficácia ao sistema, diz ser indiferente à escolha entre presidencialismo e sistema com primeiro-ministro, ainda que exista uma grande diferença entre as duas hipóteses: para ela basta que haja alguém eleito no comando. Isso revela a razão muito pessoal pela qual a Presidente do Conselho empreende com tanta urgência o caminho das reformas constitucionais. O seu governo resultou de uma eleição de verão, com a cumplicidade de uma lei eleitoral ruim, de um forte abstencionismo e do descuido dos partidos agora na oposição. É muito difícil, se não impossível, que tais condições venham a se repetir. Querendo perpetuar seu poder para além dos anos desta legislatura, o único caminho para ela é a eleição popular direta, indiferentemente dos dois cargos, na ideia de que o favorecimento à sua pessoa das atuais pesquisas se traduzam em um voto plebiscitário a seu favor. Por outro lado, as reformas foram propostas às pressas à oposição parlamentar, mas pela direita predestinadas a realizá-las "mesmo sozinha". Agora eleição direta e autonomia diferenciada para as regiões, como escreveu Tomaso Montanari, são as pinças com as quais a Constituição da República seria destruída.
Tudo isso inserido na estrutura de guerra imposta à ordem mundial, na já hiperbólica desigualdade de condições de vida e de renda entre ricos e pobres, na soberania do capitalismo globalizado, causaria alarme em qualquer um que estivesse no poder.
Na Itália de hoje existe ainda o risco da fraqueza da eventual resistência que viesse a ser necessária: os partidos foram desmantelados e só agora estão sendo restaurados - as culturas democráticas estão esmaecidas; também entre os católicos avança uma nova fraqueza, muitos se tornaram pós-teístas, acham que Deus é coisa do passado, pré-moderna, que agora temos que fazer tudo sozinhos. Mas os católicos que fazem tudo sozinhos não são grande coisa.
Tudo isso mostra por que hoje existe um "alarme à democracia". Pessoalmente não gostaria do aquilo que eu não fiz aos 13 para conquistar a democracia, tivesse que fazê-lo aos 92 para defendê-la.
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Não é só a guerra. Alerta à democracia. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU