13 Mai 2023
Há desdobramentos “novos, mas, é claro, confidenciais” na missão da Santa Sé para acabar com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. O cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, deu a notícia sobre os “novos” desdobramentos ao falar com jornalistas na Universidade Lateranense em Roma no dia 10 de maio, mas não deu mais detalhes. No entanto, ele acrescentou significativamente: “Acredito que a missão de paz seguirá em frente”.
A reportagem é de Gerard O’Connell, publicada em America, 10-05-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco revelou pela primeira vez em 30 de abril que uma missão destinada a impedir a guerra entre a Rússia e a Ucrânia “está em andamento”. Nos dias seguintes, porta-vozes dos presidentes Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky disseram que suas respectivas partes não sabiam nada sobre tal missão. O cardeal Parolin, braço direito do papa, contestou essas negações no dia 3 de abril e disse que ambos os lados foram informados.
Então, o que está acontecendo? Existe uma missão de paz? Por que Kiev e Moscou negariam qualquer conhecimento disso? O que podemos esperar daqui pela frente?
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, o Papa Francisco procurou maneiras de parar a guerra. Para alcançar esse objetivo e atuar como mediador, ele procurou evitar tomar partido. No entanto, afirmou claramente que a Rússia é a agressora e, várias vezes por semana, fala da “Ucrânia martirizada”. Ele se manifestou contra a guerra que já dura mais de 430 dias em nada menos do que 120 ocasiões, em discursos, homilias, coletivas de imprensa e entrevistas.
Desde o início da guerra, o Papa Francisco falou duas vezes por telefone (26 de fevereiro e 22 de março) com o presidente Zelensky, com quem se encontrou pessoalmente no Vaticano em 8 de fevereiro de 2020. Além disso, ele recebeu o primeiro-ministro ucraniano e muitos parlamentares em audiências privadas desde a invasão russa e também se encontrou com as esposas de soldados ucranianos cujos maridos eram prisioneiros de guerra, e com muitos refugiados, incluindo crianças.
A Santa Sé tem um núncio, um embaixador, em Kiev, o arcebispo Visvaldas Kulbokas, nascido na Lituânia, que tem estado lá durante toda a guerra e informa regularmente sobre a situação ao papa e ao Vaticano.
Francisco fez com que o Vaticano se envolvesse em iniciativas humanitárias durante a guerra. Ele enviou o cardeal polonês Konrad Krajewski em várias missões à Ucrânia, com várias formas de ajuda humanitária, incluindo ambulâncias e camisetas térmicas. Francisco também esteve envolvido na troca de prisioneiros entre a Rússia e a Ucrânia. Os delegados do presidente Zelensky levaram ao papa as listas de nomes em pelo menos cinco ocasiões, e ele as repassou para as autoridades russas; muitas centenas de prisioneiros foram libertados em ambos os lados.
Na véspera de sua visita a Budapeste, em 27 de abril, o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal, visitou Francisco no Vaticano e pediu-lhe que facilitasse o retorno de milhares de crianças ucranianas levadas à força para a Rússia durante a guerra. O papa prometeu fazer todo o possível a esse respeito.
Esses esforços humanitários têm sido como estrelas que brilham na noite escura da guerra.
Desde o início da guerra, o Papa Francisco tentou fazer um contato direto com o presidente Putin, mas até agora sem sucesso. No segundo dia da guerra, deixando de lado o protocolo, Francisco visitou a embaixada russa na Santa Sé e pediu ao embaixador que transmitisse uma mensagem ao presidente Putin, dizendo que estava disposto a ir a Moscou para falar com ele, mas o líder russo recusou-se a ter qualquer contato direto com o papa desde que lançou a invasão. Em vez disso, ele fez com que seu ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, respondesse a Francisco dizendo que seu envolvimento “não era necessário”.
Um telefonema posterior em nome do papa, em 8 de março de 2022, do cardeal Parolin a Lavrov, repetindo o pedido de Francisco pelo fim dos combates, foi igualmente malsucedido.
Falando a jornalistas em 15 de setembro de 2022, após sua visita ao Cazaquistão, o Papa Francisco, respondendo às críticas por não ter convocado Putin, enfatizou a necessidade de diálogo, mesmo que isso signifique se envolver “com Estados que começaram a guerra”.
Ele disse: “Eu não excluo o diálogo com qualquer potência que esteja em guerra, mesmo que seja com o agressor. Às vezes, o diálogo deve ser feito assim, mas deve ser feito, ‘fede’, mas deve ser feito. Sempre um passo à frente, de mão estendida, sempre! Porque, caso contrário, fechamos a única porta razoável para a paz”.
Ao voltar de Budapeste no mês passado, Francisco procurou explicar seus esforços para manter o diálogo aberto. “Acredito que a paz sempre se faz abrindo canais; nunca se pode fazer a paz com o fechamento. Convido todos a abrirem relações, canais de amizade. Isso não é fácil”, disse ele.
Ele afirmou que disse isso a várias pessoas, incluindo o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, com quem ele se encontrou em Budapeste e que é o único líder dos 27 Estados da União Europeia aliado do presidente Putin. Orbán se recusa a permitir que armas sejam transportadas para a Ucrânia através da fronteira de quase 140 quilômetros entre os dois países e afirma que ele e Francisco são os únicos líderes que estão trabalhando pela paz.
Embora Francisco tenha conseguido se comunicar direta e indiretamente com o presidente Zelensky desde o início da guerra, o mesmo não ocorre com o presidente Putin, com quem ele se encontrou pessoalmente três vezes (2013, 2015, 2019).
Eles se falaram pela última vez quando Putin telefonou para lhe cumprimentar pelo seu 85º aniversário em dezembro de 2021. Desde então, disse Francisco, sua principal linha de comunicação tem sido por meio do embaixador russo na Santa Sé, Aleksandr Avdeyev.
No voo de Budapeste, ele disse: “Eu tenho uma boa relação com o embaixador que agora está saindo, ele é embaixador no Vaticano há sete anos, é um grande homem, um homem comme il faut, uma pessoa séria, culta, muito equilibrada. Minha relação com os russos é principalmente com esse embaixador”.
O papa se comunicou com o Kremlin também por meio do cardeal Parolin, secretário de Estado do Vaticano, que se encontrou com o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, durante a Assembleia Geral da ONU em Nova York, em 22 de setembro de 2022.
Além disso, o Vaticano tem um núncio em Moscou, o arcebispo italiano Giovanni d’Aniello, que tem estado lá durante a guerra e pode enviar relatórios a Roma.
Além dos canais diplomáticos formais, Francisco também tenta usar os canais não diplomáticos para se comunicar com a liderança russa e especialmente com as autoridades da Igreja Ortodoxa Russa, embora a maioria deles, como o Patriarca Ortodoxo Russo Kirill, seja subserviente a Putin. Apenas um pequeno número de padres ortodoxos se opôs à guerra e agora estão na prisão.
Em 16 de março de 2022, Francisco teve uma conversa de 40 minutos pelo Zoom com Kirill. Defensor declarado da guerra, o patriarca procurou defender a “operação militar especial”, mas Francisco o chamou para ser um pastor, e não um “coroinha do Estado”. A afirmação do papa incomodou Kirill, de acordo com fontes; eles não se falaram diretamente desde então. Eles deveriam ter se encontrado pessoalmente em Jerusalém em junho de 2021, mas Francisco cancelou a viagem devido à guerra.
Desde sua conversa via Zoom, Francisco se comunicou com Kirill por meio do presidente do Departamento de Relações Exteriores da Igreja do Patriarcado de Moscou, primeiro o Metropolita Hilarion e, desde junho de 2022, por meio de seu sucessor, o Metropolita Anthony de Volokolamsk.
Anthony visitou o papa no Vaticano em 5 de agosto de 2022 e discutiu as relações ortodoxo-católicas no contexto “dos processos políticos que ocorrem no mundo”. Logo depois, ele informou que Kirill não compareceria ao Congresso das Religiões Mundiais e Tradicionais no Cazaquistão (13 a 15 de setembro), onde Francisco discursaria e onde alguns esperavam que o patriarca e o papa teriam um encontro face a face.
No voo de Budapeste, Francisco afirmou que o encontro com o patriarca “vai acontecer”, mas não deu nenhuma indicação de quando. Fontes do Vaticano, que pediram para não serem identificadas porque não estavam autorizadas a falar, disseram à America que é improvável que Francisco se encontre com Kirill enquanto a guerra não terminar.
Em Budapeste, o Papa Francisco recebeu o Metropolita Hilarion em uma audiência privada de 20 minutos. Hilarion havia sido presidente do Departamento de Relações Exteriores da Igreja do Patriarcado de Moscou de 2009 a 2022, quando foi rebaixado e transferido para Budapeste em junho de 2022, supostamente por sua oposição à guerra. Hilarion foi sucedido por Anthony.
Francisco conhece Hilarion desde 2013 e já se encontraram várias vezes. No avião ele disse: “Hilarion é uma pessoa que eu respeito muito e sempre tivemos um bom relacionamento. E ele teve a cortesia de vir me ver [em Budapeste], depois esteve na missa, e eu o vi também aqui no aeroporto. Hilarion é uma pessoa inteligente, com a qual se pode conversar, e essas relações precisam ser mantidas, porque, se falamos de ecumenismo e depois dizemos ‘disto eu gosto, disto eu não gosto’, devemos ter a mão estendida para todos e também receber a mão alheia”.
Questionado se havia conversado sobre a paz com Orbán e Hilarion, Francisco disse que, na reunião, “conversamos sobre todas essas coisas. Falamos disso porque interessa a todos o caminho da paz. Eu estou disposto. Estou disposto a fazer tudo o que se deve fazer. Agora também está em curso uma missão, mas ainda não é pública. Veremos... Quando for pública, eu falarei sobre isso”.
A posição de Hilarion é delicada e, em resposta às especulações da mídia, ele deixou claro em seu portal que “não houve nada [no encontro com Francisco] sobre as relações bilaterais entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Russa. Nenhuma questão política foi discutida. O encontro foi de natureza pessoal entre dois velhos amigos”.
Após o retorno de Francisco ao Vaticano, o Metropolita Anthony foi a Roma (de 1º a 4 de maio) “com a bênção do Patriarca Kirill”. Sua visita, no entanto, era para assuntos privados que não estavam relacionados à missão de paz do papa, disseram fontes do Vaticano à America. Ele se encontrou com o arcebispo Claudio Gugerotti, prefeito do Dicastério para as Igrejas Orientais, e saudou o Papa Francisco por alguns minutos no fim da Audiência geral da quarta-feira na Praça São Pedro. Ele também visitou o bispo Brian Farrell, secretário do Dicastério para a Promoção da Unidade dos Cristãos, que ele conhece há muitos anos, mas não se encontrou com o cardeal Kurt Koch, prefeito do dicastério, que naquele momento estava em Israel.
A presença de Anthony em Roma e sua saudação ao papa geraram inevitáveis especulações na mídia de que a visita estava ligada à missão de paz, mas o cardeal Parolin negou isso categoricamente no dia da Audiência, dizendo: “Não teve nada a ver com isso!”.
Ao mesmo tempo, o cardeal Parolin expressou surpresa pelo fato de porta-vozes dos presidentes da Ucrânia e da Rússia alegarem desconhecimento sobre a missão de paz do papa. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse a repórteres em 2 de maio que Moscou não tinha nenhuma informações sobre a iniciativa.
A CNN informou que uma autoridade ucraniana não identificada, próxima do gabinete presidencial, disse: “O presidente Zelensky não consentiu com tais discussões em nome da Ucrânia. Se as conversas estão ocorrendo, elas estão ocorrendo sem o nosso conhecimento ou a nossa bênção”.
“Sei que ambas as partes foram informadas”, disse o cardeal Parolin em 3 de maio. “Pelo que eu sei, elas estavam e estão cientes disso”. Ele acrescentou: “Até onde eu sei, elas sabem”.
A observação seguinte do cardeal, no entanto, pareceu sugerir que o primeiro objetivo do papa é fazer com que ambos os lados concordem com um cessar-fogo, antes que o processo de paz possa começar. “Não sei se hoje existem as condições para um cessar-fogo. Esperamos... Acredito que essa iniciativa – se houver – do Vaticano também deve ir nessa direção”, disse o cardeal. O Vatican Media informou que o cardeal acrescentou que a esperança é que o fim dos combates possa ocorrer e que um processo de paz possa começar.
Em 4 de maio, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, citado pela RIA Novosti, uma agência de notícias estatal russa, deu uma resposta mais nuançada à sua negação original: “Sabemos que o papa está constantemente pensando na paz e em como acabar com esse conflito, mas não estão cientes de nenhum plano detalhado proposto pelo Vaticano”.
O fato de que tanto a Rússia quanto a Ucrânia tenham negado uma missão de paz é até certo ponto compreensível, já que nenhum dos lados quer parar de lutar neste momento. A Ucrânia quer recuperar seu território perdido antes de levar em consideração um plano de paz e está prestes a lançar uma grande ofensiva militar para alcançar esse objetivo.
A Rússia, por sua vez, quer defender todo o território conquistado desde 2014 e, se possível, obter mais ganhos. Dizer que se está disposto a discutir um cessar-fogo, muito mais um plano de paz, seria o equivalente a um sinal de fraqueza da parte ucraniana e deixaria a Rússia em uma posição mais forte, já que detém o território ucraniano. Os russos também não querem um cessar-fogo; eles precisam obter mais ganhos se quiserem consolidar o que já conquistaram.
Fontes disseram à America que Francisco quer estabelecer um cessar-fogo o mais rápido possível, para parar a matança e a destruição, antes de passar para a área mais problemática das negociações de paz. Uma fonte vaticana disse: “Embora Putin não esteja aberto a uma comunicação direta com o papa neste momento, o cálculo aqui é que ele pode estar mais disposto para isso em alguns meses, se a guerra não estiver ocorrendo do seu jeito”.
Alguns em Roma acham que o Papa Francisco pode ter em mente o esforço total feito por João Paulo II em 2003 para evitar a guerra no Iraque. Naquele ano, o papa polonês enviou o cardeal francês Roger Etchegeray a Bagdá para falar com Saddam Hussein. O líder iraquiano o recebeu em 15 de fevereiro e iniciou uma conversa que parecia oferecer um vislumbre de esperança para uma saída de última hora da crise.
Duas semanas depois, João Paulo II despachou o cardeal italiano Pio Laghi, amigo da família Bush, a Washington, para falar com o presidente George W. Bush. Quando se encontraram no Salão Oval em 5 de março, o cardeal entregou a Bush uma carta pessoal do papa, mas o presidente a colocou sobre a mesa sem abri-la e informou ao cardeal que acreditava estar “fazendo a vontade de Deus” ao lançar a guerra. A mente do presidente Bush estava fechada para a mediação, e as consequências negativas de sua decisão ainda estão presentes hoje, como Francisco viu quando visitou o país de 5 a 8 de março de 2021.
A situação que Francisco enfrenta, é claro, é totalmente diferente daquela enfrentada por João Paulo II há 20 anos. O presidente Putin já lançou a guerra e hoje, mais de 430 dias depois, não mostra nenhuma intenção de acabar com ela. Tampouco mostra qualquer sinal de estar aberto a uma proposta de cessar-fogo de Francisco mais do que o presidente Bush em relação ao esforço de João Paulo II para impedir a guerra.
O Papa Francisco acredita no poder da oração, sabendo que nada é impossível para Deus. Ele acredita que “não é impossível” que ele vá a Moscou, como ele disse ao La Nación em 10 de março. Ele sabe que é uma tarefa árdua fazer com que ambos os lados concordem com um cessar-fogo, mas sente que é seu dever moral tentar esse esforço e também procurar envolver outros chefes de Estado e de organizações internacionais.
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Missão de paz secreta do Vaticano para as relações entre Ucrânia e Rússia: novos desdobramentos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU