12 Mai 2023
"A justiça não vale apenas entre os seres humanos, mas também em relação à natureza e à Terra, que são portadoras de direitos e, por isso, devem ser incluídas em nosso conceito de democracia socioecológica", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
Temos vivido e sofrido no Brasil tempos sombrios sob o governo de Jair Bolsonaro, onde a ética foi enviada ao limbo e tudo praticamente valia (as fake news, as mentiras, a pregação da violência e a exaltação da tortura). Nos dias atuais, assistimos, desolados, a guerra entre Rússia e Ucrânia. Esta guerra representa a negação de todos os valores civilizatórios, pois uma grande potência nuclear está literalmente destruindo uma pequena nação e seu povo.
Sem perder de vista os dois dados acima referidos, percebo dois fatores principais, entre outros, que atingem o coração da ética: a globalização do capitalismo depredador e a mercantilização da sociedade.
A mundialização do capitalismo, como modo de produção e sua expressão política, o neoliberalismo, mostrou as consequências perversas da ética capitalista: seus eixos estruturantes são o lucro ilimitado, acumulado individualmente ou por grandes corporações, a concorrência desenfreada, o assalto aos bens e serviços da natureza, a flexibilização das leis e a minimização do Estado em sua função de garantir uma sociedade minimamente equilibrada. Tal ética é altamente conflitiva porque não conhece a solidariedade, mas a concorrência que faz de todos adversários, senão inimigos a serem vencidos.
Bem diferente, por exemplo, é a ética da cultura maia. Esta coloca tudo centrado no coração, já que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do Céu e da Terra. O ideal ético é criar, em todas as pessoas, corações sensíveis, justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do “bien vivir y convivir” dos andinos, assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a natureza e com o universo.
A globalização, inter-relacionando todas as culturas, acabou também por revelar a pluralidade dos caminhos éticos. Uma de suas consequências está sendo a relativização geral dos valores éticos. Sabemos que a lei e a ordem, valores da prática ética fundamental, são os pré-requisitos para qualquer civilização em qualquer parte do mundo.
O que observamos é que a humanidade está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial, tal é o descalabro ético que estamos vendo.
O segundo grande obstáculo à ética é a mercantilização da sociedade, conforme descrito por Karl Polanyi em 1944 como "A grande transformação". É a transição de uma economia de mercado para uma sociedade completamente mercantilizada.
Tudo é transformado em mercadoria, como previsto por Karl Marx em seu texto "A miséria da filosofia" de 1848, referindo-se ao tempo em que coisas sagradas, como a verdade e a consciência, seriam levadas ao mercado; o "tempo da grande corrupção e da venalidade universal". Infelizmente, vivemos nesse tempo.
A economia, especialmente a especulativa, dita os rumos da política e da sociedade como um todo, gerando um profundo abismo entre os poucos ricos e as grandes maiorias empobrecidas. Essa realidade revela traços de barbárie e crueldade como poucas vezes na história.
Qual é a ética que pode nos orientar como humanidade que vive na mesma Casa Comum? É aquela ética que se baseia em nossa especificidade enquanto seres humanos e, por isso, é universal e pode ser adotada por todos.
Acredito que, em primeiro lugar, é a ética do cuidado. De acordo com a fábula 220 do escravo Higino, bem interpretada por Martin Heidegger em "Ser e tempo" e detalhada por mim em "Saber cuidar", ela constitui o substrato ontológico do ser humano, ou seja, o conjunto de fatores objetivos sem os quais jamais surgiriam seres humanos e outros seres vivos.
Pelo fato de o cuidado ser da essência do humano, todos podem vivê-lo e dar-lhe formas concretas, segundo as diferentes culturas. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado para a competição. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser bio-sociocentrada.
Outro dado de nossa essência humana é a solidariedade e a ética que daí deriva. Sabemos hoje pela bioantropologia que foi a solidariedade de nossos ancestrais antropoides que permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de solidariedade, começando pela família. O que foi fundador ontem continua sendo-o ainda hoje.
Outro caminho ético, ligado à nossa estrita humanidade, é a ética da responsabilidade universal. Ser responsável é dar-se conta das consequências benéficas ou maléficas de nossos atos pessoais e sociais. Ou assumimos juntos responsavelmente o destino de nossa Casa Comum ou então percorreremos um caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de vida.
O filósofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou “O princípio responsabilidade”, agregou a ele a importância do medo coletivo. Quando este surge e os humanos começam a dar-se conta de que podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural, religioso ou econômico.
Importa também resgatar a ética da justiça para todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa continuar a existir e dando-lhe o que lhe cabe como pessoa: dignidade e respeito. Especialmente as instituições devem ser justas e equitativas para evitar os privilégios e as exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente no Brasil, um dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo, mas daquelas elites endinheiradas que não aceitam o direito para todos, mas querem preservar seus privilégios.
A justiça não vale apenas entre os humanos, mas também para com a natureza e a Terra, que são portadoras de direitos e, por isso, devem ser incluídas em nosso conceito de democracia socioecológica.
Por fim, devemos incorporar uma ética da sobriedade compartida para lograr o que dizia Xi Jinping, chefe supremo da China: "uma sociedade moderadamente abastecida". Isso significa um ideal mínimo e alcançável.
Estes são alguns parâmetros fundamentais para uma ética válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Caso contrário, poderemos conhecer um armagedom social e ecológico.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O colapso atual da ética. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU