10 Mai 2023
"É o círculo demoníaco da pulsão de morte: quanto mais as defesas do sistema se fortalecem pela exclusão da alteridade, mais se vai de encontro à dissolução do sistema", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pávia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 09-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Trecho do livro de Recalcati “A pugni chiusi. Psicoanalisi del mondo contemporâneo” (De punhos cerrados. Psicanálise do mundo contemporâneo, em tradução livre), Feltrinelli.
A pugni chiusi
Os punhos cerrados são um símbolo de protesto e revolta. Mas também de sofrimento e raiva. O mundo contemporâneo colocou nossos nervos brutalmente à prova nos últimos vinte anos. A grande crise financeira, o terrorismo, a pandemia e a guerra foram e continuam sendo uma série impressionante de traumas individuais e coletivos que se desenrolaram ao longo de um tempo histórico muito breve.
A análise desses fenômenos e, sobretudo, do seu impacto psicológico nas nossas vidas é o foco deste livro. Essa série de traumas comportou – como acontece com qualquer tipo de trauma – uma precarização do arranjo do mundo interno e do mundo externo. Segundo Freud, o pai da psicanálise, a psicologia individual desde sempre foi social. Não existe vida psíquica separada da vida da cidade, não incluída num vínculo, dissociada do que acontece no mundo. O mundo interno já é um mundo externo e o mundo externo não poderá deixar de ter recaídas profundas sobre o interno. Mais que dois mundos separados, eles sempre aparecem topologicamente intrincados, como acontece na fita de Moebius onde o interno e o externo estão em uma relação de estreita continuidade.
Neste livro, tentei ler as dinâmicas sociais e políticas dos últimos vinte anos com a lentes da psicanálise sem abusar de sua instrumentação clínica. Mesmo as análises dedicadas a algumas figuras que marcaram os últimos vinte anos da vida política nacional e internacional – de Berlusconi a Grillo, de Renzi a Mattarella, de Trump a Putin – não visam formular diagnósticos psicopatológicos, mas tornar essas figuras sinais simbólicos do nosso tempo, encarnações de uma tendência mais geral, de um movimento de conjunto mais amplo que transcende as suas individualidades.
Nesse sentido, este livro tem às suas costas uma longa e respeitada tradição de estudos psicanalíticos aplicados ao discurso político e social, a começar pelo próprio Freud. Os estudos sobre o fascismo de Reich e Fromm, aqueles de Fornari sobre a guerra e aqueles de Fachinelli sobre a vida política da Itália são apenas alguns dos exemplos mais ilustres dessa tradição que tem sido para mim uma referência fundamental.
Portanto, não se trata de colocar os terroristas jihadistas ou os nossos próprios políticos no divã do analista. Ao contrário, é o analista que se reconhece como cidadão, na rua, numa cidade, também ele inevitavelmente apanhado nas redes de sua época, necessariamente envolvido na sua atividade intelectual, num espaço público. Na verdade, mesmo que seus punhos estejam cerrados, é porque o a psicanálise permanece, além de uma forma particular de terapia, uma teoria crítica da sociedade, atenta a presidir o espaço da subjetividade como irredutível a qualquer abuso de poder.
A primeira parte do livro centra-se na interpretação da nossa vida social, que coloca em destaque alguns grandes temas: a evaporação do pai, a crise generalizada do discurso educativo, a desconforto dos pais e de seus filhos, a transformação da família, o grande problema do "fim vida", as novas dependências patológicas, o recurso à violência, a hiperconexão como alienação, os mitos hipermodernos do sucesso individual e do gozo imediato, a rejeição neo-libertina do sentido da Lei e outros que oferecem um retrato composto da nossa Civilização.
A partir desse quadro se deduz como o nosso tempo se caracteriza por uma angústia sem precedentes: por um lado, o domínio da técnica consagrou o homem como senhor da Terra, de outro lado, esse domínio se revela como potencialmente ameaçador para a própria vida do homem, bem como para o mundo inteiro. Configura-se uma nova forma de mal-estar coletivo: enquanto para Freud o desconforto do homem surgia da condição inconciliável entre o programa da pulsão - impulso para a satisfação imediata – e aquele da Civilização – adiamento da satisfação imediata –, hoje o programa da pulsão parece ter-se imposto ao da Civilização.
Não é mais a Civilização que segura o impulso destrutivo e autodestrutivo da pulsão, mas é esse mesmo impulso que parece ditar a lei. Se para Freud, de fato, o conflito que está no âmago do mal-estar do homem decorria da contraposição da instância transgressora do desejo com aquela normativa da Lei, hoje a situação parece muito diferente. Por um lado, observamos um vazio de Lei - uma sua evaporação – e, por outro lado, a tentativa desesperada de restaurar o rosto patriarcal da Lei.
De forma que, se por um lado a crise do neoliberalismo e da euforia com a globalização dos mercados tornou-se manifesta, pelo outro – como se fossem remédios extremos para essa crise – o fortalecimento dos nacionalismos, o soberanismo populista, a guarnição militar das fronteiras, a loucura fundamentalismo parecem ser os novos sintomas do mal-estar da Civilização. O poder destrutivo e autodestrutivo da pulsão não se manifesta apenas na ganância ilimitada dos mercados ou no hiper-hedonismo contemporâneo que reivindica uma liberdade sem Lei, mas também nos movimentos reacionários que gostariam de recuperar nostalgicamente uma ordem agora irreversivelmente ultrapassada.
A dimensão de segurança da pulsão é, de fato, o outro lado da moeda de seu desencadeamento neo-libertino. Após a crise financeira e a precarização do mundo do trabalho, os golpes do terrorismo, da pandemia e da guerra fortaleceram ainda mais o impulso enclausurador e defensivo da pulsão. É o teatro contemporâneo: a vida protege-se da vida, cimenta as suas fronteiras, potencializa o sistema imunitário, empenha-se a defender a própria identidade. Também a violência da guerra desencadeada pela Rússia de Putin contra a Ucrânia ou pelos aiatolás contra as mulheres iranianas gostaria de reafirmar o caráter inviolável das antigas fronteiras.
Existe, de fato, um impulso de autopreservação da pulsão que nunca deveríamos ignorar.
No entanto, esse mesmo impulso, como se vê dramaticamente bem tanto na guerra da Ucrânia quanto na repressão no Irã, acaba se revelando, como Freud havia sinalizado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, um impulso de autoaniquilação. É o círculo demoníaco da pulsão de morte: quanto mais as defesas do sistema se fortalecem pela exclusão da alteridade, mais se vai de encontro à dissolução do sistema.
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A psicanálise do mundo. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU