08 Mai 2023
Por que o Papa Francisco assumiu uma posição sobre a guerra na Ucrânia que o coloca certamente mais alinhado com Pequim, Nova Delhi e Brasília do que com Washington, Londres ou Bruxelas? Por que ele quer que o Ocidente pare de armar a Ucrânia pressionando por um cessar-fogo imediato? A resposta a essas perguntas que há algum tempo estão no centro das reflexões em várias chancelarias ocidentais foi fornecida pela conceituada revista Crux, dirigida por John Allen, um dos mais credenciados comentaristas nos Estados Unidos.
A reportagem é de Franca Giansoldati, publicada por Il Messaggero, 06-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em uma longa análise histórica sobre a diplomacia vaticana, ele destacou o quanto a visão geopolítica de Francisco (e consequentemente sua diplomacia) seja hoje afetada pelas fortes mudanças impressas na Igreja. As ações de Francisco sobre a guerra na Ucrânia, incluindo o anúncio da misteriosa missão diplomática revelada à imprensa ao vivo por ocasião do retorno da Hungria na semana passada, “não são nem arbitrárias nem irracionais. No máximo, são uma resposta deliberada à maneira como a Igreja está mudando - e continuará a mudar - no século XXI. Um maior número de católicos em relação ao passado vive fora do Ocidente e não vê a guerra na Ucrânia nos mesmos termos que a veem a Europa e os Estados Unidos. Vista por esse ponto de vista, a posição de Francisco antecipa o futuro da Igreja como força geopolítica, que será muito menos complacente com o Ocidente”. Uma questão de percepção, certamente não mais 'ocidental'.
Naturalmente, esse deslocamento não pode agradar aos líderes ocidentais. Francisco não apenas não poupou críticas aos esforços do Ocidente por ajudar Kiev a se defender dos bombardeios russos, como também julgou várias vezes negativamente o papel da OTAN, a ponto de compará-lo a um cachorro incômodo que latia às fronteiras até provocar Moscou e desencadear sua reação. Naturalmente, neste ano e meio de conflito, o Papa condenou pelo menos 200 vezes o sofrimento da "martirizada população ucraniana", enviando constantemente às pessoas sob as bombas russas ajudas concretas, como remédios, geradores, alimentos e produtos de primeira necessidade, alimentando uma rede humanitária sem precedentes. Nessa conjuntura, porém, a Igreja, ressaltou Allen, evidentemente modificou seu modus operandi na diplomacia, recortando para si um papel mais estranho às grandes potências ocidentais, destacando a diferença de posição que tinha, por exemplo, João Paulo II.
“Agora o Papa está em contraste com as potências ocidentais, em vez de atuar em conjunto com elas. Francisco abraçou aquela que poderia ser considerado a primeira estratégia geopolítica multipolar do Vaticano. Em vez de se ater ao consenso ocidental, Francisco buscou aliados não tradicionais na busca de uma solução na Ucrânia, como o autoritário primeiro-ministro húngaro Orbán, em parte para evitar antagonizar a Rússia”, observa John Allen.
Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco voltou o seu olhar para fora da Europa, sobretudo para o Leste e para o Oriente, consciente que naquela direção do mundo está o grande reservatório de almas a serem conquistadas. Em 1900, havia aproximadamente 267 milhões de católicos no mundo, mais de 200 milhões deles na Europa e na América do Norte. Em 2000, havia quase 1,1 bilhão de católicos, mas apenas 350 milhões eram europeus e norte-americanos. A grande maioria, 720 milhões, vivia na América Latina, África e Ásia. Até 2025, apenas um em cada cinco católicos será um caucasiano não hispânico. Nesse contexto, e com essa visão da Igreja, o conflito no coração da Europa só pode ser avaliado como algo marginal na situação global do mundo.
Que a atenção do pontificado se concentre sobretudo no Oriente não é novidade. A medida também é oferecida por uma interessante análise publicada na Civiltà Cattolica e dedicada à reconciliação entre o Irã e a Arábia Saudita e o papel da China após a assinatura de um acordo em Pequim com o qual os dois países se comprometeram a restaurar em dois meses as relações diplomáticas mútuas rompidas em 2016, depois que a embaixada da Arábia Saudita em Teerã havia sido atacada após a execução de um religioso xiita na Arábia Saudita. O comentário do jesuíta autor do artigo revelava a importância da China como superpotência - também pela "capacidade de explorar o seu poder de forma a servir não para alimentar conflitos mas para a sua solução, e são fatores que tornam a China tão atrativa como parceira, e por isso são cada vez mais numerosos os países que se voltam para o Oriente, como o Irã e a Arábia Saudita”. E o Vaticano.
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Ucrânia, Papa Francisco mais próximo da China do que do Ocidente: por isso o pontífice é pró-Brics, diz editor da revista Crux - Instituto Humanitas Unisinos - IHU