06 Março 2023
"Com mais de 30 anos da hegemonia dos conservadores nas igrejas cristãs, em especial nos seminários teológicos, e imersos na cultura neoliberal com a ideologia da 'meritocracia' (a riqueza dos ricos é merecida, 'justa', assim como a fome dos pobres), setores majoritários das igrejas cristãs não têm uma visão positiva do que chamamos de 'opção pelos pobres'. Precisamos retomar, na Igreja e na sociedade, o debate sobre Deus e a fome", escreve Jung Mo Sung, teólogo, cientista e professor titular da Universidade Metodista de São Paulo no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
Segundo ele, "a Campanha da Fraternidade sobre a fome, e/ou programas sociais de combate à fome, não é somente uma questão social, mas é um tema teológico-espiritual".
Por coincidência ou não, há uma convergência entre a Campanha da Fraternidade deste ano – com o tema “Fraternidade e Fome” e o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16) – e o discurso do presidente Lula de combate à fome no Brasil. Se o ex-presidente Bolsonaro tivesse vencido a eleição, ao invés de convergência, teríamos um conflito ideológico nas redes sociais e nos meios de comunicação sobre a questão da fome, especialmente a relação entre a fome e a religião.
Após uma disputa cerrada, Lula ganhou e o seu governo retoma como uma das suas prioridades o combate à fome, tirar de novo o Brasil do “mapa da fome” da ONU. Mas, com mais de 30 anos da hegemonia dos conservadores nas igrejas cristãs, em especial nos seminários teológicos, e imersos na cultura neoliberal com a ideologia da “meritocracia” (a riqueza dos ricos é merecida, “justa”, assim como a fome dos pobres), setores majoritários das igrejas cristãs não têm uma visão positiva do que chamamos de “opção pelos pobres”. Precisamos retomar, na Igreja e na sociedade, o debate sobre Deus e a fome.
A fome, na vida cotidiana de todos, é uma sensação que nos lembra que devemos comer, repor energias, para continuarmos as atividades em geral e viver. Se puder comer algo saboroso, a fome é boa. Afinal, estar em um banquete e não ter fome é desagradável. Franz Hinkelammert, meu mestre e amigo, me ensinou: no Reino de Deus, imaginado como um banquete celestial, haverá fome, pois sem a fome não haverá a alegria e o prazer de compartilhar com amigos e amigas uma boa comida.
A “dor da fome” é outra coisa. Para entendermos melhor a importância da Campanha da Fraternidade, que coloca o tema da fome dos pobres – dos que não têm dinheiro para entrar no mercado capitalista e matar a fome –, como um assunto teológico-pastoral, vale a pena discutir teologicamente a fome dos pobres.
A fome dos pobres tem dois aspectos, ou de outra forma, os pobres, como todos seres humanos, têm dois tipos de fome. Primeiro é o imediato e o óbvio: matar a fome para evitar de morrer aos poucos. Mas, como disse Jesus, o ser humano não vive só do pão. O “pão” é a condição de possibilidade material do pobre, sem alimento ninguém vive, mas o ser humano tem uma outra necessidade básica: o reconhecimento como “gente”. Pessoas que não se sentem reconhecidos por ninguém acabam indo para o caminho do suicídio. A frase de Jesus, “Está escrito: 'Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus'" (Mt 4,4), costuma ser interpretada como o pão não é importante, mas sim aceitar os ensinamentos religiosos e as leis de Deus. Eu penso de outro modo.
A fala que vem Deus-Javé é a Palavra-Revelação que reconhece a humanidade de todos seres humanos. A história do povo de Israel começa com Deus reconhecendo que os escravos do Egito, assim como outros povos escravizados na história, são reconhecidos por Deus e o por isso chama “profetas” para os libertar da escravidão. Relembrando que os escravos não eram e não são considerados humanos e que Deus escolheu como seu povo esse grupo de “animais que falam e trabalham, mas não são humanos”. Não porque eram israelitas, que ainda não eram, mas porque eram escravos clamando por libertação.
Sociedades opressivas estabelecem uma fronteira entre quem são humanos e grupos que não são reconhecidos pela sociedade como tais. No atual capitalismo neoliberal, os não humanos ou sub-humanos são os pobres, os que estão excluídos do mercado. A verdade que Deus revela à humanidade é que todos seres humanos, independentemente da sua condição social, são dignos de serem reconhecidos como tais. E se a sociedade não reconhece a humanidade dos oprimidos, Deus o reconhece e ouve os seus clamores e caminha com eles e elas. Cabe a todo grupo que crê nessa fé testemunhar essa verdade.
Essa fome do reconhecimento se conecta diretamente com a fome do “pão”. As pessoas pobres desejam que a sua fome de pão seja reconhecida como algo importante para a sociedade, isto é, que a sua fome importante para a sociedade porque é a fome de uma pessoa que é reconhecida como gente. Sabemos da importância de uma pessoa quando os problemas dessa pessoa são considerados importantes para outras.
Programas econômico-sociais para combater a fome podem oferecer o “pão”, mas por si só não satisfazem a fome do reconhecimento. A produção desse “pão-reconhecimento” é fruto não só de cálculos e produções materiais, mas de uma cultura espiritual, de relações humanas movidas pelo Espírito que humaniza a todos nós.
A Campanha da Fraternidade sobre a fome, e/ou programas sociais de combate à fome, não é somente uma questão social, mas é um tema teológico-espiritual.
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A fome, o mercado e a Palavra. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU