24 Fevereiro 2023
Portugal já tem o seu relatório independente sobre abusos um ano depois de os bispos terem encomendado um grupo de especialistas, coordenado pelo psiquiatra infantil Pedro Strecht, para colocar a lupa nesta matéria. Foram validadas 512 vítimas, apenas uma parte das 4.815 projetadas pela investigação.
Embora os especialistas da comissão, chamados Dando voz ao silêncio, apontem que ainda há mais. São abusos cometidos nos últimos 70 anos pelas mãos, em sua maioria, de homens (96%) e padres (77%). As vítimas tinham em média 11 anos quando o abuso ocorreu. Hoje eles têm mais de cinquenta.
A entrevista é de Fran Otero, publicada por Alfa & Omega, 22-02-2023.
Disse nestas mesmas páginas que o objetivo não eram os números, mas sim ouvir as vítimas . Eles fizeram isso?
Acho que sim. Há vítimas que preferiram nos contatar apenas pelo formulário online e anonimamente. Outros o fizeram, mas deixaram nome e contato. Lembro-me de um que dizia que "tenho nome e rosto". Depois disso, tivemos 365 telefonemas. 100 deles precisavam falar e então completaram a pesquisa. 51 solicitaram entrevistas presenciais, sempre realizadas com dois membros da equipe. Com este último, os laços são mais estreitos.
Disseram-lhe alguma coisa depois da publicação do relatório?
Alguns telefonaram entusiasmados para agradecer. De outros, guardamos suas fotos, as de seus filhos e netos. São pessoas que ficarão para sempre em nossas vidas. Que exemplos de força e fé!
Como era a relação com as vítimas?
Muito intenso a nível emocional, mesmo para profissionais da área como o Daniel Sampaio, que é psiquiatra, a Filipa Tavares, assistente social e terapeuta familiar, ou eu próprio. Todos temos experiência em acompanhar pessoas com doença mental, mas estes casos foram diferentes. As pessoas vieram hoje, aqui e agora, falar de um sofrimento muito antigo, de décadas atrás. Eram adultos falando sobre sua infância. Em muitos casos, pude até ver aquela criança de 8, 11 ou 13 anos falando sobre seu passado traumático.
Que difícil...
48% estavam falando sobre isso pela primeira vez em toda a vida. Como não estar perto deles no sentido mais profundo e empático da palavra? Ana Nunes de Almeida, que é socióloga, assistiu a alguns encontros presenciais e terminou-os entusiasmada e com a palavra monstro na boca, referindo-se aos agressores.
O que mais te surpreendeu no estudo?
São tantos que darei apenas alguns exemplos. A resistência inicial de alguns bispos, apesar de ser a própria Igreja a solicitar a investigação; a dificuldade de diferentes entidades da sociedade nos ajudarem a divulgar o trabalho que fazíamos; o sofrimento das vozes que ouvimos, um pesadelo, gritos de uma noite escura, tragédias infantis, e o altíssimo número de testemunhos femininos face a outras obras desta natureza e o número de testemunhos, 512 entre 11 de janeiro e 31 de outubro.
São muitos?
Parecem poucos, mas o número é enorme nesta época e em Portugal. A comissão francesa recebeu pouco mais de 1.200 casos após dois anos de trabalho e uma população sete vezes maior.
Como você acha que toda essa informação afetará os católicos?
Acho que os católicos em geral receberam muito bem este relatório. Esses dias recebi um e-mail do primeiro signatário da carta de mais de 200 católicos que em novembro de 2021 pediram aos bispos que estudassem essa questão. Há outros que nos chamam de hereges, comunistas e bestas. Mas é inevitável, não dá para agradar a todos. Esta é uma oportunidade fantástica para a Igreja se renovar e retirar os frutos podres de árvores frondosas e saudáveis.
Você participa do trabalho da Cremades & Calvo-Sotelo neste assunto. Como tem sido sua colaboração?
A comissão espanhola teve o belo gesto de me convidar para participar. Porém, depois de algum tempo, percebi que nosso trabalho tem outros métodos e não pude ir a Madrid com a frequência que gostaria, porque aqui o trabalho era imenso. Mas eu queria dizer outra coisa.
Diga-me.
Quero agradecer a toda a imprensa espanhola que tanto apoiou o nosso trabalho. Sempre temos que agradecer. Pessoalmente, foi um orgulho ajudar a Espanha em idêntico trabalho. Tenho laços com este país. O meu bisavô era galego e chamava-se Santiago. Minha avó falava espanhol. A minha madrinha de baptismo era espanhola, de Madrid. Por tudo, agradeço à Alfa & Omega e outras mídias por compartilharem seu entusiasmo com o nosso.
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Pedro Strecht após estudar os abusos em Portugal: "É uma oportunidade para a Igreja se renovar" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU