21 Fevereiro 2023
Desde o início do papado de Francisco, tem havido uma percepção errônea de que sua crítica constante às elites clericais equivale a uma eclesiologia liberal que estaria abrindo caminho para uma governança mais democrática da Igreja. Esse mal-entendido fica evidente em algumas das reações críticas em Roma ao processo sinodal em andamento – embora seja muito cedo para dizer qual será o resultado do processo e o que Francisco e os bispos farão com isso.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado por Commonweal, 16-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco concedeu inúmeras entrevistas, mas nos últimos anos ele raramente falou ao público em geral sobre o processo sinodal em andamento que ele iniciou em 2021. Uma exceção foi a entrevista de 25 de janeiro concedida por ele à Associated Press, na qual ele falou do Caminho Sinodal na Alemanha.
Ele não aprofundou as especificidades dos pedidos de reforma que os bispos alemães estão fazendo, como o ensino sobre a sexualidade, os novos papéis para as mulheres na liderança e no ministério da Igreja ou as novas estruturas de governo.
O papa disse que, embora o diálogo na Igreja seja bom, “a experiência alemã não ajuda”. Ele continuou: “Aqui, o perigo é de que algo muito, muito ideológico se infiltre. Quando a ideologia se envolve nos processos da Igreja, o Espírito Santo volta para casa, porque a ideologia supera o Espírito Santo”.
Francisco acrescentou: “Devemos ser pacientes, dialogar e acompanhar esse povo no verdadeiro caminho sinodal e ajudar esse caminho mais elitista, para que não termine mal de alguma forma, mas também seja integrado à Igreja”.
Essa não foi a primeira advertência de Roma ao Sínodo alemão. De fato, é apenas a última rodada de trocas miradas e polêmicas entre o Vaticano, de um lado, e o presidente da Conferência dos Bispos Alemães e as lideranças do Caminho Sinodal, do outro. As lideranças eclesiais e sinodais na Alemanha estão enfrentando a oposição de um pequeno grupo de cinco bispos alemães que expressam a resistência de uma minoria de católicos alemães à estrutura e aos resultados do processo sinodal até agora.
As tensões entre Roma e o Sínodo alemão atingiram um ponto alto recentemente com uma carta de janeiro do secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, do cardeal Marc Ouellet, prefeito do Dicastério para os Bispos, e do cardeal Luis Ladaria, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé – e aprovada “in forma specifica” por Francisco –, na qual eles disseram ao Caminho Sinodal alemão que os responsáveis por este não têm a competência para estabelecer um “concílio sinodal” permanente em todo o país.
A entrevista e a carta refletem a cultura social, política e eclesiológica antielitista do Papa Francisco. Houve exemplos anteriores. Ao visitar a Universidade de Roma Tre em 2017, ele criticou a chamada educação de elite, enquanto defendeu a educação popular. Na exortação Gaudete et exsultate, de 2018, ele chamou as elites religiosas gnósticas e pelagianas de “inimigas da santidade”. Em um livro-entrevista de 2018, o papa enfatizou a importância da conexão com pessoas reais e concretas. Sem essas conexões, disse, pode surgir um pecado que “agrada muito a Satanás, o nosso inimigo: o pecado da elite. A elite não sabe o que significa viver no meio do povo. E, quando falo de elite, não me refiro a uma classe social: falo de uma atitude da alma”.
Desde o início do papado de Francisco, tem havido uma percepção errônea de que sua crítica constante às elites clericais equivale a uma eclesiologia liberal que estaria abrindo caminho para uma governança mais democrática da Igreja. Esse mal-entendido fica evidente em algumas das reações críticas em Roma ao processo sinodal em andamento – embora seja muito cedo para dizer qual será o resultado do processo e o que Francisco e os bispos farão com isso.
No entanto, a crítica do papa ao Sínodo alemão como “elitista” é surpreendente por três razões.
A primeira é que, quando Francisco diz “elite” aqui, ele se refere aos teólogos católicos alemães – embora políticos perspicazes e figuras do ramo dos negócios na Alemanha também tenham se interessado pela situação da Igreja alemã: o imposto eclesial na Alemanha, cobrado pelo Estado e entregue às Igrejas, arrecada vários bilhões de euros para católicos e protestantes todos os anos, tornando-os grandes atores econômicos dentro e fora do país.
Quando Francisco identifica a experiência sinodal como um projeto das elites e a descarta por estar sendo sequestrada por intelectuais fora da realidade, ele falha em reconhecer a representatividade desses católicos dentro do Caminho Sinodal alemão. O que quer que se pense sobre as propostas feitas pelo Sínodo alemão (algumas das quais remontam a 50 anos, ao Sínodo de Würzburg, de 1971 a 1975) ou sobre a sempre imperfeita representatividade nas estruturas da Igreja, a teologia acadêmica tem um lugar específico no catolicismo alemão que não tem em nenhum outro lugar.
As assembleias do Celam e a cultura sinodal do catolicismo latino-americano encarnam a história, a experiência, as práticas e as características dessa parte da Igreja Católica, e deve-se dizer o mesmo sobre o Sínodo alemão e o papel que a teologia acadêmica católica desempenha nele, remontando ao início do século XIX.
Além disso, a proposta reconhecidamente inovadora de um “concílio sinodal” permanente em todo o país a ser estabelecido somente após a conclusão do processo sinodal global – que Roma deseja proibir – não viola o Direito Canônico. Além disso, os estatutos do Caminho Sinodal já afirmam que as decisões tomadas pelo Sínodo alemão não podem limitar a autoridade dos bispos individuais e não são vinculantes para eles.
Ironicamente, ao se opor a certas propostas do Caminho Sinodal alemão, a Cúria parece estar virando a mesa em relação à eclesiologia das Conferências Episcopais; a atual defesa da autoridade das Conferências Episcopais pelo Vaticano contra a instituição de novos órgãos sinodais soa como uma reversão do motu proprio Apostolos suos, de João Paulo II, de 1998, mas, mesmo assim, no sentido da proteção do status quo institucional.
Sem se abrir à possibilidade de novas formas de governo da Igreja, “a sinodalidade não seria nada mais do que uma farsa e um pérfido engano para reafirmar, de maneira politicamente correta, o clericalismo como lei suprema da Igreja Católica”, como escreveu o teólogo italiano Marcello Neri (que lecionou na Alemanha por muitos anos).
A segunda razão pela qual a crítica é impressionante é que ela não reconhece que o Sínodo alemão começou como uma resposta ao escândalo dos abusos sexuais, que começou em 2010 com as revelações sobre um colégio jesuíta de elite em Berlim. Obviamente, isso é anterior à própria resposta de Francisco à crise e ao lançamento do processo sinodal global, e forneceu à Igreja Católica global (às instituições acadêmicas romanas, ao Vaticano, mas não só) uma riqueza de recursos intelectuais e financeiros que não chegaram de outras Igrejas.
A “fuga para a frente” da Igreja alemã foi motivada por pressões internas e externas em prol de uma resposta à crise dos abusos, o que levou os católicos alemães a pensarem em um caminho sinodal que levasse a uma conversão eclesial e teológica, não apenas a uma nova postura. É importante notar isso em um momento em que algumas pessoas em Roma e no Vaticano ainda parecem incrivelmente impermeáveis a entender a crise dos abusos, mesmo agora que ela tocou o centro simbólico e administrativo da Igreja Católica global com o caso do jesuíta Marko Rupnik.
A terceira razão é a imprecisão da formulação “elite versus povo”. Trata-se de uma compreensão da elite do fim do século XIX e do século XX como uma vanguarda que engana e ludibria as massas desavisadas. Mas hoje, se há algo que está claro em todas as instituições sociais e políticas, incluindo as Igrejas, é o desaparecimento das elites culturais e intelectuais. O enfraquecimento do papel da teologia acadêmica e das elites intelectuais faz parte de um processo maciço de individualização e de “desculturação global”, como o cientista político francês Olivier Roy definiu recentemente.
A sinodalidade não é democracia, mas também não é demagogia: existem diversos papéis nela, e a teologia acadêmica tem um papel a desempenhar. O fato é que simplesmente não existe um ensino estabelecido sobre a sinodalidade. Existe apenas uma teologia da sinodalidade (tanto vivida quanto acadêmica) e um ensino magisterial embrionário sobre a sinodalidade, e eles estão tentando se falar durante o Sínodo. A teologia acadêmica faz parte disso, mas alguns membros da hierarquia clerical claramente se ressentem desse fato.
No passado, uma teologia clerical do catolicismo piramidal determinava o pensamento sobre os sínodos. Mas isso é passado. Certamente, a sinodalidade não pode ser conduzida por uma cultura individualista e narcisista alheia ao sensus fidei do povo de Deus. E, sim, existe um elitismo entre os teólogos. Mas não podemos fingir que é esse elitismo que ainda domina a Igreja Católica.
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Francisco e o Sínodo “elitista” da Alemanha: por que a crítica do papa é tão surpreendente. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU