Por: Jonas Jorge da Silva | 21 Fevereiro 2023
A Campanha da Fraternidade de 2023 traz como tema Fome e Fraternidade e lema a exortação de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16). Trata-se de um apelo ao compromisso com a dignidade de cada ser humano e de engajamento na luta pela superação da fome.
Em seu pontificado, o Papa Francisco insiste em denunciar o flagelo da fome. Como exemplo, podemos destacar sua manifestação, em 16 de outubro de 2020, Dia Mundial da Alimentação, ao expressar de forma incisiva: “Para a humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas também uma vergonha. Em grande parte, é provocada por uma distribuição desigual dos frutos da terra, à qual se acrescentam a falta de investimentos no setor agrícola, as consequências das mudanças climáticas e o aumento dos conflitos em várias regiões do planeta. Por outro lado, se descartam toneladas de alimentos. Diante desta realidade, não podemos permanecer insensíveis ou paralisados. Somos todos responsáveis”.
Nessa direção, em consonância com a Campanha da Fraternidade deste ano, no dia 16 de fevereiro, realizamos um debate por videoconferência intitulado Fraternidade e fome: da indiferença à responsabilidade. A iniciativa, promovida pelo CEPAT, contou com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB, Serviço Inaciano de Espiritualidade – SIES de Curitiba, Arquidiocese de Curitiba, Observatório Nacional Luciano Mendes de Almeida – OLMA e Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá – UEM.
O assunto foi abordado pelo Pe. Joaquim Parron, missionário redentorista, professor de moral social na Faculdade Claretiana e integrante do projeto SOS Vila Torres, que está inserido em uma favela na região central de Curitiba. Nos últimos 40 anos, o Pe. Parron vem atuando nos meios populares, apoiando as lutas sociais.
Pe. Joaquim Parron C.Ss.R na atividade "Fraternidade e fome: da indiferença à responsabilidade".
A partir da interpelação da Campanha da Fraternidade, o Pe. Parron ressaltou que a fome é uma negação da própria existência da pessoa humana. O flagelo da fome no Brasil, com 33 milhões de brasileiros sem ter o que comer, é algo paradoxal, pois todos os anos o país bate recordes de produção de alimentos, de exportação de grãos para outros países. O mesmo país que é reconhecido como o celeiro do mundo está também entre os mais desiguais. Esta realidade questiona o tipo de sociedade que historicamente nos tornamos.
Contudo, como é possível que isso seja socialmente aceito? Na avaliação do Pe. Parron, os pobres se tornaram invisíveis aos olhos da sociedade brasileira. “As pessoas não enxergam mais o fenômeno do pobre que passa fome”, lamenta. A esse respeito, cita a realidade da capital paranaense: “Eu chamo Curitiba, que alguns acham que é modelo, de cidade do espetáculo. A arquitetura de Curitiba, para quem conhece essa cidade, esconde a pobreza, a miséria, a fome”, denuncia.
De fato, é preciso descortinar a realidade da fome e, para isso, o contato direto com quem sofre as consequências da fome é fundamental para a sensibilização da sociedade. Em seus trabalhos, o Pe. Parron disse já ter testemunhado muitas mudanças na percepção daqueles que passam a ter contato com essa realidade invisibilizada. “Algumas pessoas começam a chorar e a dizer: Padre, eu não sabia que pessoas passavam fome em Curitiba”, compartilha.
Na medida em que a realidade passa a ser enxergada, surgem perguntas desafiadoras: Como vamos combater a fome, se as crianças não têm nem sequer material escolar? Como queremos que exista um processo de emancipação? Como a sociedade civil pode entrar nesse trabalho? Não basta apenas dar o pão, também é necessário oferecer as condições para que as pessoas se levantem.
“A fome vai além dos números e estatísticas. Ela tem nome, tem rosto e tem história pessoal. Para nós, que acompanhamos as periferias, ela tem rosto, tem nome e tem lágrimas”, afirma o Pe. Parron, em contraponto à indiferença social. Para ele, “sem a nutrição, perdemos talentos, perdemos dons”, e questiona: “Como alguém conseguirá progredir na escola? Como irá conseguir crescer em conhecimento, sabedoria, se não tem nutrientes suficientes para que possa acompanhar esse processo de aprendizagem?”
Em sua intervenção, o Pe. Parron afirmou que, para quem tem fé, discernir a tragédia da fome, um crime contra os direitos humanos mais básicos, passa pelo crivo da Palavra de Deus e da Doutrina Social da Igreja. Além disso, a realidade da fome também pode ser objetada à luz dos direitos humanos.
Em Êxodo, capítulo 3, versículos 7 e 8, Deus diz a Moisés: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel”. Segundo o Pe. Parron, trata-se de um Deus que faz história com o seu povo, sem jamais abandoná-lo na busca por terra, moradia e dignidade. Nesse sentido, a insistência do Papa Francisco nos três “T”, teto, trabalho e terra, está em consonância com o Deus libertador da tradição bíblica.
Jonas Jorge da Silva do CEPAT e Pe. Joaquim Parron C.Ss.R na atividade "Fraternidade e fome: da indiferença à responsabilidade".
Fazendo referência à Doutrina Social da Igreja, o Pe. Parron advertiu que “se celebramos a Eucaristia, mas não estamos em comunhão com as pessoas fragilizadas, celebramos indignamente [...]. Então, nossas rezas e nossas orações se tornam vazias, ritualistas, se não tem uma preocupação, uma interação, uma comunhão com essas pessoas desvalidas”.
Por fim, a partir dos direitos humanos, é essencial reconhecer que ter uma alimentação digna faz parte do direito da pessoa, de sua dignidade. É também um compromisso ético basilar. Aqui, cabe novamente lembrar que a fome é uma negação da própria existência da pessoa humana. Trata-se de uma grave violação, de um crime cometido contra o ser humano.
Na sequência, o Pe. Parron fez um breve relato de como nasceu a iniciativa SOS Vila Torres, em uma favela na região central de Curitiba, onde 70% da população vive do reciclável. Com a pandemia, no final de março de 2020, em razão do confinamento, os catadores e catadoras de recicláveis viram uma drástica redução desses materiais nas ruas de Curitiba. Sem terem o que trazer para os barracões onde acontece o trabalho de separação do que é reciclável, para posterior comercialização, ficaram sem poder comprar alimentos em sua luta cotidiana pela sobrevivência.
Então, em resposta a esse contexto, deu-se início à campanha SOS Vila Torres, que mobilizou muitas pessoas sensibilizadas com as consequências do coronavírus na vida de tantas pessoas. Na medida em que mais pessoas foram se engajando, a iniciativa foi crescendo, bem como as novas demandas que passaram a chegar de outros bairros de Curitiba.
Utilizando uma linguagem metafórica, para o Pe. Parron, o trabalho de coleta e doação de alimentos significa dar o peixe para as pessoas. Contudo, reconhece que isto não basta, sendo necessário também oferecer a vara para pescar e, mais ainda, desafiar-se diante de um lago cercado com arame farpado.
“Começamos a dar curso, tudo dentro da Capela Nossa Senhora Aparecida, que fica dentro dessa grande favela na região central de Curitiba [Vila Torres]. Mas, isso ainda não é o suficiente, porque você ensina a pessoa a pescar, dá a vara de pescar e quando ela vai pescar, o lago está fechado, cercado com arame farpado. Esse arame farpado se chama capitalismo selvagem”, compartilha.
É preciso romper essa cerca e para isso temos o trabalho de conscientização, com a formação para criar consciência crítica, no sentido de que é possível mudar essa realidade social. “Juntos também podemos eleger novos representantes, para que possam pensar como nós, para mudar esse sistema capitalista selvagem que explora homens, mulheres e crianças”, avalia com esperança.
É que o Pe. Parron valoriza muito as experiências coletivas, as redes que vão surgindo da aliança entre movimentos populares, igrejas e instituições. Isto acontece na dinâmica das cozinhas comunitárias ao favorecer a criação de vínculos entre as pessoas.
Em sua avaliação, antes de tudo, a busca de respostas para a superação da fome passa pela valorização da pessoa. A pessoa “tem sua liberdade, tem sua criatividade e também tem a possibilidade de se organizar para lutar”, afirma. O desafio é abandonar o assistencialismo, a tentação de querer impor às pessoas que passam fome um sistema que não diz respeito a elas, às suas crenças. “Nenhum projeto pode chegar pronto nas periferias. Nenhum projeto contra a fome pode estar pronto, acabado”, avalia, reconhecendo a importância de aprender com as periferias.
Esse processo de abertura e aprendizado com o outro passa pela criação de vínculos de solidariedade. “É preciso lavar nossos olhos com as lágrimas de quem passa fome. Quando faço isso, consigo ver a realidade dessas pessoas”, afirma o Pe. Parron.
Em sua avaliação, seria muito importante implementar comitês de combate à fome, no sentido do que foi idealizado por Frei Betto para o Programa Fome Zero, no primeiro governo de Lula, mas que fracassou diante da pressão de prefeitos e de diversas forças políticas que, nos municípios, passaram a controlar o Bolsa Família. Nesse sentido, a sociedade civil perdeu o protagonismo em favor dos políticos profissionais.
O Pe. Parron também respondeu a todas as questões que chegaram pelo chat, demonstrando grande compromisso com a superação da fome e incentivando a mobilização de todas as forças sociais. “Somos convidados como Igreja, como movimentos sociais, como movimentos populares, hoje, com a Campanha da Fraternidade, dentro da solidariedade, a criar comitês de combate à fome”, ressaltou.
Ao final, fez menção ao grave problema habitacional no Paraná, denunciando que o estado possui um déficit de 500.000 moradias, e defendeu uma mudança nas estruturas sociais, acompanhada por uma justa distribuição de renda.
Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A fome tem nome, tem rosto e tem história pessoal” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU