28 Janeiro 2023
"O impedimento à liberdade de expressão advém de um exercício burocrático da autoridade, cuja finalidade principal é a autopreservação do sistema", escreve Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, em artigo publicado por Settimana News, 25-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini<span
O impedimento à liberdade de expressão advém de um exercício burocrático da autoridade, cuja finalidade principal é a autopreservação do sistema. As minorias são ignoradas e muitas vezes se veem totalmente excluídas de qualquer decisão.
O paradoxo é que se organizam as "cátedras dos não crentes" e os "pátios dos gentios" para dar voz e escuta a quem está "fora" e muitas vezes fica frustrado o desejo de quem está "dentro" de poder falar sobre as questões da pastoral ou da liturgia ou de outros setores da vida cristã: onde, quando e quem encontrará igual espaço e atenção para ser escutado?
Infelizmente, porém, assim como resulta gratificante estabelecer um diálogo com os "distantes" e abrir a mente para os pontos de vista e perspectivas de quem está "fora" (também permite bancar a imagem de estar "aberto" e missionário...), para quem tem a presunção de apontar o dedo a partir de dentro, não há espaço.
A Igreja não teme a verdade, seja ela qual for; a liberdade de consciência é um valor indispensável ("irrenunciável"?) da fé; a comunidade é enriquecida pelos dons de cada um, exercidos segundo a sua madura responsabilidade e a sua "graça de estado"; num grupo de irmãos há espaço para todos, mesmo para aqueles que exercem o incômodo direito de criticar... Infelizmente não é assim, ou pelo menos não me parece.
“A Igreja é o sacramento da liberdade. Essa expressão tão densa de significado é incompreensível para quem concebe a Igreja como uma organização vasta, misteriosa, antiga, veneranda e poderosa, com uma série quase infindável de prescrições, ofícios, competências, definições doutrinárias. Ao contrário, a Igreja é o sinal sensível neste mundo da liberdade mais essencial e eficaz, da liberdade entendida no sentido mais autêntico da palavra (…). É liberdade de pensamento, expressão e ação, e constitui um direito inalienável de todo membro do Corpo Místico de Cristo, qualquer que seja sua função como hierarca ou simples seguidor"[1].
“A Igreja – já observava Pio XII em seu discurso aos participantes do Congresso Internacional da Imprensa Católica (18 de fevereiro de 1950) – é um corpo vivo, e algo estaria faltando em sua vida se não existisse nela a opinião pública. A culpa dessa falta recairia sobre os pastores e os fiéis"[2].
O impedimento à liberdade de expressão advém de um exercício burocrático da autoridade, cuja finalidade principal é a autopreservação do sistema. As minorias são ignoradas e muitas vezes se veem totalmente excluídas de qualquer decisão. “Há e deve haver também liberdade de expressão na Igreja e, portanto, mesmo aqueles que não podem trazer nada além de sua opinião totalmente privada e pessoal têm o direito de expressá-la e de serem ouvidos benevolamente”[3].
A “revolução conciliar” – agora “revolução sinodal” – é mais um mito do que uma realidade. A dura realidade é a estabilidade da Igreja como instituição e o retorno a um sistema de governo centralizado e autoritário, com a cumplicidade de yesmen subservientes ao sistema. Enquanto se difunde a retórica de uma nova visão da Igreja como "povo de Deus", faltam os instrumentos jurídicos e pastorais para realizar essa visão ou para transformar a instituição. Nós nos limitamos a derramar vinho novo em odres velhos.
“Ao longo da história da Igreja, houve formas diversas e mutáveis de acordo com as condições dos tempos, com as quais a opinião pública se expressava na Igreja. A participação de todo o povo fiel na escolha do bispo e do resto do clero, na admissão ao batismo e à reconciliação de um pecador, a estrutura particular da Igreja na Alta Idade Média, o direito ao patronato, os direitos dos bispados, esses e outros costumes eram basicamente tantas maneiras pelas quais uma opinião pública assegurava sua influência sobre a hierarquia. Por outro lado, essas formas tinham a particularidade de serem redigidas e ordenadas juridicamente e de constituir uma parte do direito dos leigos na Igreja.
Essas formas, juridicamente reguladas, foram condicionadas pelos tempos, e muitas vezes ligadas a abusos. Ninguém almejará que retornem assim como eram. No entanto, permitam-nos dizer, diante dessas formas antigas, as formas jurídicas com as quais a opinião pública na Igreja pode se fazer valer hoje são bastante escassas no direito canônico atual, se não totalmente ausentes. Não queremos dizer que hoje não exista na Igreja uma opinião pública: certamente seria falso afirmar isso. Mas pode-se constatar que hoje não existem na Igreja formas juridicamente garantidas [4] para o exercício dessa opinião pública na Igreja"[5].
É urgente voltar a um maior equilíbrio entre as três "vozes da Igreja" definidas pelo card. Newman: aquela do governo, aquela da teologia e aquela da experiência pastoral.
O medo de derivas democráticas, a falta de lucidez ao abordar a questão do poder na Igreja, o entrincheiramento da canonística na exegese do Código de Direito Canônico, levavam a não compreender adequadamente o impulso que veio do Vaticano II para promover a participação de todos na edificação e na missão da Igreja.
Por toda parte se verifica uma diminuição da participação na vida social, e a Igreja não está isenta das dinâmicas em curso na sociedade em geral; pelo contrário, pode-se constatar que na Igreja se pode insinuar uma forma de ideologia baseada na dimensão hierárquica da comunhão.
Certamente não pode causar confusão que na Igreja o ministério ordenado tem uma função de guia que está enraizada em um sacramento. Porém, quando se enfatiza esse enraizamento, corre-se o risco de esquecer que o Espírito suscita múltiplos ministérios e doa numerosos carismas também a quem não recebeu o sacramento da ordem. O bem da Igreja não é garantido apenas pela hierarquia.
Acredita-se que as decisões sejam tarefa apenas de quem recebeu o sacramento da ordem com o poder de jurisdição anexo, e corre-se o risco de parar para ponderar os diferentes graus de poder a serem exercidos. A questão do poder é inevitável, mas sobretudo por causa de uma canonística um tanto engessada, corre-se o risco de defender o poder de alguém em detrimento daquele de outros.
A reflexão teológica que pôs em evidência a categoria da comunhão (deve-se recordar também que o termo koinonia significa também "participação" e não só "comunhão") ensejou necessidade de reconhecer que a comunhão eucarística está no princípio da Igreja, a ser pensada como um lugar onde o próprio Senhor Jesus, colocando-se ao serviço dos seus discípulos, indica o que significa e como o poder deve ser exercido na Igreja.
O que ainda parece faltar nas realidades eclesiais é uma verdadeira práxis de comunicação. Corre-se o risco de produzir na comunidade dos fiéis uma uniformidade cinzenta e a negação do pluralismo e do confronto. Ainda é possível nas realidades eclesiais continuar a desconsiderar um confronto teórico e decisório enquanto se fala de sinodalidade? A liberdade de expressão é uma necessidade urgente para todos, em vista da construção de comunidades eclesiais nas quais haja lugar para todos. Sem liberdade de expressão, o próprio pensamento é sufocado.
Um "problema" sobre o qual, no entanto, é importante debater é aquele da opinião publica eclesial, um verdadeiro lugar de confrontação comunitária, um campo em que o diálogo (sobre o qual o Papa insistia no seu discurso em Florença) concretiza-se no saber ouvir e saber falar, de explicar melhor a própria visão das coisas, mas também para entender plenamente a posição alheia e experimentar até mesmo o dissenso[6] não como uma ameaça, mas como recurso, não como uma arma, mas como ferramenta de colaboração. Seria uma boa maneira para buscar uma efetiva sinodalidade [7].
Ao longo da história, a sociedade viu regimes repressivos usarem os métodos do sigilo e da redução ao silêncio para controlar o comportamento e até os pensamentos das massas dominadas. Visto que a discussão pública dos problemas pode questionar e desafiar o status quo e o papel do governo no poder, o diálogo público é temido e proibido nos regimes repressivos. “Não deve ser assim entre vocês”, adverte o Mestre.
Também nas realidades religiosas, como nas seculares, a autoridade recorre ao segredo e ao silêncio forçado. A autoridade eclesiástica é reconhecida por toda pessoa razoável como responsável por articular a verdade que o Espírito de Deus continua a pronunciar na comunidade. Muitas vezes, porém, a forma como essa responsabilidade é exercida parece refletir uma visão de mundo que Walter Brueggemann define como "consciência régia"[8].
“Consciência régia” é um termo que Brueggemann usa para descrever a cultura dominante dos reis israelitas, que administravam o Templo e seus sacerdotes. Ao controlar o acesso ao Templo, a monarquia controlava o acesso a Deus. Nessa consciência ou visão do mundo, a autoridade é concebida como uma investidura divina, portanto não está aberta a outras visões do mundo ou à crítica contra si mesma. Os fiéis têm a certeza moral de saber que a verdade é possuída em sua totalidade e será preservada sem ambiguidade.
Questionar uma decisão é percebido como um atentado à autoridade. A imposição do silêncio torna-se um meio necessário para gerir opiniões contrastantes ou discordantes que podem causar confusão e representar ameaças potenciais à unidade e à comunhão. É impedido que visões ou opiniões dissidentes se tornem de domínio público, ou os indivíduos são proibidos de falar publicamente. Até mesmo os "lugares" destinados ao debate e à discussão tornam-se "espaços blindados" porque o dissenso não é tolerado (nem mesmo nas mídias sociais), mas nem mesmo as perguntas.
Ultimamente nos ambientes eclesiais evoca-se seguidamente o bicho-papão da fofoca, esquecendo que é gerada pelo fato de não haver possibilidade de expressar o desacordo ou o dissenso nos lugares apropriados onde isso deve ser claramente manifestado, nos Conselhos, nos órgãos de comunhão. Quando isso não é permitido, eis que o mal-estar se espalha por toda parte.
Quando a comunhão eclesial é envolta pelo véu opaco de silêncio, faz com que nos sintamos anônimos, perdidos. O silêncio priva da possibilidade de escutar as justificativas para cada argumentação de uma questão complexa.
Preservar o conhecimento em vez de partilhá-lo é uma injustiça para com a pessoa e, portanto, ofende o bem comum e o sentido da fraternidade. Estender sempre o véu do segredo sobre tudo significa ter poder, o poder de limitar ou controlar o fluxo de informações.
Ser transparente torna vulnerável, mas também mais credível aos olhos dos interlocutores. Qual é o limite do segredo? Qual o limite da transparência? Um dos desafios de toda realidade eclesial é manter juntos abertura e confidencialidade, caso contrário, o léxico de comunhão, fraternidade, sinodalidade se torna um mero exercício de retórica.
Na Pacen in terris (cf. n. 7) afirma-se claramente que cada pessoa tem o direito de exprimir e comunicar a sua opinião. O silêncio forçado é uma estratégia inútil para o desenvolvimento da vida moral, que implica injustiça de tratamento para com as pessoas e que, em última análise, não serve ao bem comum.
O principal argumento para impor o silêncio é que isso evitaria a confusão provocada por questões controversas entre o povo de Deus. Tal raciocínio é paternalista: trata os adultos como crianças a serem protegidas. Inibir o desenvolvimento moral dos indivíduos reivindicando a certeza é uma injustiça para com a pessoa e, portanto, não pode contribuir para o bem comum.
Silenciar as opiniões de um indivíduo, mesmo por parte da instituição religiosa a que pertence, é uma violação de um direito humano fundamental. Isso está de acordo com o Artigo 19 da Declaração universal dos direitos humanos, que afirma o direito fundamental de todo ser humano à palavra.
Em 1971, foi elaborado um documento pela Segunda Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos intitulado A justiça no mundo e ratificado pelo Papa Paulo VI. Ensina claramente que deve haver liberdade de expressão dentro da Igreja, bem como fora dela. Afirma que a Igreja reconhece o direito de todos a uma apropriada liberdade de expressão e pensamento, e isso inclui o direito de todos serem ouvidos em um espírito de diálogo que preserve uma legítima diversidade dentro da Igreja (cf. n. 44).
Ninguém deve ser privado de seus direitos comuns por estar associado à Igreja de uma forma ou de outra. Isso também se aplica àqueles que servem a Igreja através do seu trabalho, incluindo sacerdotes e religiosos[9]. O documento A justiça no mundo, portanto, não legitima a obrigatoriedade do silêncio como forma de controlar opiniões divergentes.
Assim é posta em discussão a ideia de ser obrigado, por assim dizer, a defender a linha do partido. Todo o povo de Deus tem o direito de expressar sua opinião, para que o Espírito de Deus possa se manifestar em toda a comunidade.
Na busca honesta da verdade, é necessário o compartilhamento público de um discurso. Não é excluindo o dissenso que as vozes mais verdadeiras se destacarão melhor, mas sim protegendo as vozes mais frágeis.
Na Igreja, todos devem ser ouvidos "para sentir o que sentem, até mesmo os insultos". É uma das passagens mais significativas do longo e denso discurso que o Papa Francisco dirigiu à diocese de Roma, recebida em audiência na Sala Paulo VI em 18 de setembro de 2021.
[1] K. Rahner, Libertà di parola nella chiesa, Borla, Roma 1964, p. 12.
[2] Discorsi e radiomessaggi di Sua Santità pio XII, IX, Tip. Poliglotta Vaticana, 1955, pp. 363-371.
[3] K. Rahner, Libertà di parola, o. c., pp. 16-17.
[4] O Código de Direito Canônico de 1983 introduziu novos órgãos de participação, mas continua sem solução a questão do poder consultivo e não deliberativo.
[5] K. Rahner, Libertà di parola, o. c., pp. 54-55.
[6] Cf. P. Picozza, Consenso-dissenso nella Chiesa, Aracne, Roma 2006.
[7] Cf. G. Cannobio, Libertà di parola e sinodalità, AVE, Roma 2017.
[8] Cf. W. Brueggemann (1978), The Prophetic Imagination, Philadelphia, Fortress Press, 1978.
[9] Cf. Sinodo Generale dei Vescovi, Giustizia nel Mondo, III, 30 novembre 1971.
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Liberdade de expressão e o mito da sinodalidade. Artigo de Domenico Marrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU