30 Março 2017
As relações das diferentes sociedades com o céu variaram ao longo da história. Não obstante, também em um mesmo contexto podem conviver múltiplos enfoques. Enquanto nas grandes cidades as novas tecnologias limitam as possibilidades humanas de conexão com a natureza e o meio ambiente, os povos originários estabelecem complexas relações com o universo. Alejandro López é astrônomo, antropólogo e pesquisador adjunto do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET), no Instituto de Ciências Antropológicas da Faculdade de Filosofia e Letras (UBA). Desde 1999, estuda os modos como os grupos indígenas chaquenhos se vinculam, pensam e constroem ideias sobre o céu. Nesta oportunidade, explica a necessidade de estudos interdisciplinares a partir do diálogo entre as ciências sociais e naturais, discute acerca do modo como as populações indígenas e os portenhos pensam o mundo celeste, e promove o gosto das crianças pelos fenômenos do universo, diante de tanta exibição e estímulo tecnológico.
A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 29-03-2017. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Desde pequeno, tinha o costume de olhar o céu com um telescópio...
Sim, desde pequeno tive interesse pelas ciências sociais e as naturais, e uma das atividades que mais me apaixonava era observar o céu. Tive alguns binóculos e depois um telescópio. Quando passou o cometa Halley, em 1986, tinha 15 anos e através do museu municipal de Moreno (Buenos Aires), organizamos um pequeno evento para que todos pudessem observá-lo.
E do que se recorda?
Que não foi observado em toda sua beleza porque esteva muito nublado. De qualquer forma, consegui fazer com que todos os vizinhos da redondeza pudessem apreciá-lo, assim, fiquei satisfeito.
Você se licenciou em Astronomia (UNLP) e realizou um doutorado em Antropologia (UBA). O que possuem em comum?
Quando comecei a universidade, escolhi Astronomia porque um montão de temáticas me atraiam, como a matemática e a física. No entanto, na metade da carreira comecei a notar que me sentia incomodado, algo me inquietava. Precisava de um terreno intermediário que fosse capaz de nuclear meu interesse pelo universo, mas também pelas ciências sociais.
Desse modo, orientou-se para a “astronomia cultural”. Do que se trata?
É um termo que é utilizado desde os anos 1990 para descrever uma série de estudos interdisciplinares que tentam pensar a astronomia como um produto sociocultural. Isto pode ser realizado por meio de diversas aproximações: a “arqueoastronomia”, cuja abordagem parte do emprego das técnicas da arqueologia; a “nova história da astronomia”, que sustenta uma perspectiva mais antropológica e sociológica; e, por último, a “etnoastronomia”, que pretende explicar as ideias e as práticas que foram construídas por diferentes culturas a respeito do céu.
Como foi a relação do ser humano com o céu ao longo da história?
A primeira suposição que devemos desconstruir é a que todos os seres humanos olham o céu da mesma maneira. Por exemplo, os habitantes de Buenos Aires são muito mais diversos do que tendemos a pensar e do que o imaginário nacional de alteridades tratou de impor. Deste modo, se as práticas e nossas ideias a respeito do céu são um produto sociocultural, não é possível que a Argentina construa uma visão homogênea. O mesmo ocorre ao longo da história, pois também foram desenvolvidas uma multiplicidade de pontos de vista. No entanto, em diferentes contextos espaço-temporais emergem instituições que pretendem unificar o discurso.
Então, reformulo a pergunta: o que o discurso hegemônico ressalta a respeito do modo como os seres humanos se relacionavam e se relacionam com o céu?
Existe um discurso científico que coloca a astronomia em um lugar de privilégio, como se tivesse uma natureza diferente do restante do conhecimento humano. Ou seja, como se não fosse o produto de uma representação e uma construção coletiva. No entanto, tudo o que produzimos tem natureza social, inclusive, os saberes que em aparência seriam os mais científicos e objetivos. A maneira de perceber o céu se dispõe sobre a divisão de natureza e cultura, característica do pensamento ocidental e coloca os fenômenos astronômicos no primeiro dos grupos. Isto constitui uma grande diferença em relação ao modo como outros grupos sociais pensaram o céu.
Refere-se, por acaso, às sociedades americanas que estuda.
Exato. Os povos originários da América, em geral, desenvolveram uma perspectiva sobre o cosmos em seu conjunto, ou seja, um enfoque “sociocósmico”. Isso implica que o universo estaria habitado por múltiplas sociedades humanas e não humanas. Ao mesmo tempo, sua estrutura fundamental estaria modelada por essas sociedades e as relações que tecem entre si. De modo que o céu faria parte de um conhecimento “cosmopolítico”, pois para as comunidades americanas as relações com o céu explicam os vínculos com outras sociedades que tem seus próprios planos, interesses e ideias do que deve ocorrer. Por isso, acreditam ser fundamental o estabelecimento de relações diplomáticas com o universo.
Por exemplo?
As relações que tecem os mocovies, no sudoeste de Chaco, com os fenômenos meteorológicos (como o aumento das precipitações) buscam estabelecer pactos com os seres que detêm o controle desses recursos. A partir daí, a centralidade de especialistas em cada grupo (os xamãs) que devem conhecer a posição das estrelas e o movimento de certos animais, para poder se comunicar com entidades que têm presença em sua dinâmica social. Essa política em nível cósmico está integrada à política de relação com outros grupos humanos. Ou seja, os mocovies contam com vizinhos humanos e não humanos, com os quais precisam gestar acordos.
O céu pode ser observado como um cenário no qual são produzidas intensas lutas de poder.
É um assunto muito interessante que supera o modelo ameríndio que descrevi até o momento, pois inclusive no modo como o Ocidente pensou no céu também há lugar para as tensões e o poder. Tem a ver com o fato que, de modo corrente, tende-se a acreditar que o que ocorre no céu seria central em relação ao que acontece em todo o universo. Por isso, as sociedades projetaram aí suas convicções acerca do poder. Inclusive, muitas vezes, o estabelecimento das hierarquias humanas se justifica a partir das hierarquias no mundo celeste. A corrida para colocar um homem na Lua, em plena Guerra Fria, é um bom exemplo a esse respeito.
Afirmaram que o céu é “inclusivo”. O que você diz?
Que os seres humanos realizaram enormes esforços para gerar acessos diferenciados. Muitos sítios arqueológicos permitem observar a disposição dos edifícios construídos, que descrevem – claramente – como os grandes fenômenos do universo eram observados a partir de uma localização preferencial por um setor privilegiado. Na atualidade, todos podemos ver determinados acontecimentos no céu, mas não é qualquer pessoa que pode ir a um observatório e utilizar um telescópio de última geração, por razões técnicas, mas também simbólicas.
De que forma você acredita que é possível promover o gosto humano pelo céu?
O progressivo aumento da população urbana faz com que nossa relação com o céu tenha se transformado drasticamente. A iluminação oculta os astros, os edifícios modificam o perfil do horizonte e as luzes fazem com que a vida se privatize com telas interativas que concentram nossa atenção. Além disso, a cotidiano é mediado pela experiência televisiva. Muitas crianças não fazem ideia de onde sai o sol, mas conhecem os buracos negros, porque o observam nos programas animados. Para recuperar o gosto pelo céu, é necessário começar pela observação dos astros mais amáveis: a lua e o sol. A ideia será fomentar uma percepção mais cuidadosa que recupere as perspectivas dos povos originários, cuja relação com o universo é muitíssima mais direta que a nossa.
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O céu, uma questão de poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU