05 Janeiro 2023
No dia da posse, ao convidar o cacique Raoni para subir a rampa ao seu lado e ser um dos representantes do povo brasileiro a segurar sua faixa presidencial, Lula mostrou que os povos indígenas serão protagonistas ativos nesse governo.
A reportagem é de Clovis Brighenti e Barbara Arisi, publicada por Amazônia Real, 03-01-2023.
Nesse dia 1º de janeiro de 2023, tomou posse como ministra de Estado Sonia Bone de Souza Silva Santos, a Sonia Guajajara. Seu povo, do tronco linguístico Tupi, vive no Maranhão, região Nordeste, área de transição entre os biomas Amazônia e Cerrado. Nascida em 1974 na Terra Indígena Arariboia, ela viveu grande parte de sua vida na cidade, com formação acadêmica em Letras, Enfermagem e é especialista em Educação Especial.
A novidade não é apenas o fato de Sonia, uma mulher indígena, ocupar o posto de ministra, mas o fato de ser a primeira vez na história do Brasil, desde sua independência, em 1822, que um ministério é criado para os Povos Indígenas. Assim, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em seu terceiro mandato na Presidência da República (2003-2006; 2007-2010; 2023), reconhece a resistência e a luta dos povos indígenas.
Mudanças ocorreram também na recém-renomeada Fundação dos Povos Indígenas (Funai), importante órgão público criado em 1967, presidido, também pela primeira vez, por uma indígena. A chefe da nova Funai é Joenia Batista de Carvalho, a Joenia Wapichana, do povo Wapichana (família Aruak), que vive em Roraima, na região amazônica, na fronteira com a Venezuela. A fundação foi rebatizada no Diário Oficial da União. O nome anterior, criado na época da ditadura civil-militar, era Fundação Nacional do Índio.
Joenia Wapichana, como deputada federal, já havia apresentado projeto de lei que foi aprovado pela Câmara dos Deputados para trocar oficialmente o nome do Dia do Índio, 19 de abril, para Dia dos Povos Indígenas. São passos importantes no rumo da reparação histórica e também para criar pontes de boas relações entre as instituições federais com os povos indígenas.
Em comum, a indicação dessas duas lideranças indígenas significa o reconhecimento efetivo dos povos indígenas e com destaque especial para o protagonismo das mulheres indígenas. As indicadas para esses dois cargos são importantes lideranças do movimento indígena brasileiro: Joenia Wapichana foi a primeira pessoa indígena a fazer uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal (STF) quando era discutida a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Também foi a primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal em 2018. Sonia Guajajara foi eleita deputada federal no pleito de 2022.
Ato simbólico de retomada da Funai, que passou a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Foto: Amazônia Real/INA/Thiago S Araújo)
Sonia Guajajara disse ao “retomar” a sede da nova Funai, nesta segunda-feira (2), que é graças à luta dos movimentos indígenas que ela, Joenia Wapichana e Célia Xakriabá estão nos lugares onde estão. Em live compartilhada em uma das redes sociais pelo advogado Eloy Terena, a ministra disse que esse é mais um passo no caminho para que uma pessoa do movimento indígena chegue à Presidência da República. A ministra havia sido candidata a vice-presidente do Brasil pelo PSOL nas eleições de 2018. Sonia também teve a honra de ser a primeira ministra a tomar posse do governo, e levou o mbaraká para soar durante e após a cerimônia. Lula, após fazer a foto oficial, também ressoou o mbaraká, importante instrumento xamânico de comunicação com os seres encantados e outras forças.
É importante lembrar que, desde 2016, quando ocorreu o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), os povos indígenas enfrentam um dos mais incessantes processos de negação de direitos, caracterizado por um cenário extremamente adverso que se traduz em violência brutal contra esses povos, da parte da sociedade e do Estado brasileiro. Esse contexto se agravou em 2019 com a posse do presidente Jair Bolsonaro (PL), que já no seu primeiro discurso, no dia 1º de janeiro de 2019, anunciou que não iria respeitar a Constituição Federal ao afirmar que não demarcaria sequer “um milímetro a mais de terra para os indígenas”.
Essa foi a tônica desse governo, que se caracterizou por retomar a política do século XIX ao insistir que os indígenas deveriam desaparecer ao se integrar à sociedade nacional. Não reconheceu a existência dos povos indígenas ao ponto de reproduzir o discurso do general norte-americano George Armstrong Custer de que “índio bom é índio morto”.
Por seu turno, os povos indígenas não se deixaram intimidar. Durante os últimos quatro anos, o movimento indígena foi dos poucos que se fez presente e se manteve ativo em campanhas, tais como a “Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais”, no cenário nacional e internacional ao combater a política genocida do governo Bolsonaro.
Inúmeras mobilizações foram realizadas em nível nacional como o Acampamento Terra Livre, para impedir a aprovação de projetos de leis e emendas à Constituição no Congresso Nacional; para impedir que a Suprema Corte aprovasse o Marco Temporal – um argumento infundado criado pelos setores contrários aos indígenas, que poderá significar um dos maiores retrocessos no reconhecimento dos direitos. Além disso, os povos indígenas organizaram muitas mobilizações regionais e locais. Em nada se avançou, mas tampouco se aprovaram leis contrárias.
Graças a essa coragem, tivemos esse resultado positivo da luta do movimento indígena, em meio a uma realidade onde o próprio governo federal incentivava o ódio e a agressão contra os corpos de pessoas indígenas. As violências contra indígenas não se deram apenas por omissão do Estado em cumprir seu dever constitucional de preservar e garantir os direitos e as vidas, foram incentivadas pelo ex-presidente da República. O relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, publicação anual do Conselho Indígena Missionário (CIMI), que monitora diversas áreas como o Mato Grosso do Sul, registrou ano passado 355 casos de violência (o maior índice desde 2013, quando começaram a realizar essa pesquisa).
De acordo com levantamento do CIMI, ainda há pendências em 871 das 1.393 terras indígenas no país para sua efetiva regularização, ou seja, em 62% delas. Em 598 terras, até agora o Estado não tomou nenhuma providência para começar o processo de demarcação. Essa certamente será uma das prioridades da pasta criada para o Ministério dos Povos Indígenas.
Se retrocedermos um pouco na história e tomarmos o marco da aprovação da Constituição Federal de 1988, quando pela primeira vez os povos indígenas no Brasil foram reconhecidos, esse 1º de janeiro de 2023 se torna uma data histórica, pois é a primeira vez que se vislumbra um avançar otimista no sentido de efetivar os dispositivos da Constituição Federal promulgada. A partir de sua aprovação, em 1988, testemunhamos um festival de iniciativas do Executivo e do Legislativo federal no sentido de reduzir ou interpretar mesquinhamente os direitos que estavam já aprovados pelo Congresso Constituinte. Nesses 35 anos, os poucos avanços legislativos se concentraram em temas da saúde e educação escolar. As iniciativas contrárias à proteção dos povos indígenas e de suas áreas de biomas ricos em diversidade biológica se avolumam assustadoramente, tanto que a tramitação do Estatuto do Povos Indígena está paralisada no Congresso Nacional desde 1994.
Ainda assim, estamos esperançosos que a criação desse ministério resgatará os princípios constitucionais de que os indígenas são povos originários, sociedades de direitos coletivos e, como coletividades, devem participar ativamente do Estado brasileiro. A criação do ministério inova ao tratar os indígenas como povos, algo que a Constituição não teve a capacidade de reconhecer (tratou com outros termos, tais como ‘índios’ e ‘comunidades’). Tardiamente, o Brasil reconheceu a Convenção 169 da OIT, a muito custo, pesava contra ela também justamente a expressão “povos indígenas”.
Nesse contexto histórico, a criação do Ministério dos Povos Indígenas é um ato inovador tanto no sentido de criar espaço específico para pensar políticas públicas para os povos indígenas como no reconhecimento da importância da existência desses povos, como destacou o presidente Lula no seu discurso de posse. Nada tão atual como o mote do movimento indígena: “Nunca mais sem os povos indígenas”. Se a Constituição reconheceu a existência dos povos indígenas, o terceiro mandato do governo Lula finalmente reconheceu a capacidade e o direito desses povos formularem suas próprias diretrizes de relacionamento com o Estado e com o governo.
Evidentemente que os desafios são enormes. O primeiro deles é pensar uma estrutura que comporte a diversidade de povos que vivem no território brasileiro e também que o ministério seja capaz de atuar como espaço de reparação histórica.
Será importante contemplar os anseios da rica diversidade sociocultural dos 305 povos indígenas no Brasil e suas mais de 270 línguas (de acordo com o Censo de 2010). Essa diversidade se manifesta para além do mosaico de culturas, por expectativas distintas, desde povos livres (autônomos ou “em isolamento voluntário”) a povos que tem também a língua brasileira/ portuguesa como sua língua materna; desde povos apegados às tradições e que preferem viver sem tanta relação com as metrópoles a povos que desejam estar em atuação permanente com a economia e sociedade nacional.
São décadas de problemas e de demandas reprimidas que certamente o ministério não terá condições de atender rapidamente, podendo gerar frustrações. Para isso é fundamental que o movimento indígena e que nós todos, parceiros dos povos indígenas, entendamos que esse ministério não é uma etapa final. Sabemos que não é apenas com sua existência que todos os problemas serão solucionados. As contradições e disputas sociais terão continuidade e, para isso, o movimento indígena articulado e fortalecido é tão ou mais importante que o ministério.
O papel das associações e de todas e todos do movimento indígena será indispensável para fazer com que o ministério seja atuante e consiga cumprir com o que se propõe, dando sustentação e fazendo o papel crítico. Afinal, o Ministério dos Povos Indígenas pertence ao Estado e ao governo brasileiro. A Associação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) festeja a participação de tantas lideranças, mas também se prepara e certamente estará atenta aos próximos desafios. Nós, que trabalhamos na defesa dos direitos indígenas, também vamos somar esforços a esse momento de unir e reconstruir o Brasil.
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“Nunca mais sem nós”: ministério e fundação dos povos indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU