06 Dezembro 2022
Em um novo livro, a Sabedoria biblica é comentada com método histórico-crítico e qualidade literária. A “sabedoria do coração” é um antídoto fundamental para os tempos atuais.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 04-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Retomemos em mãos os 502 versículos de um curioso escrito deuterocanônico, ou seja, excluído do Cânone judaico (seguido também pelas Igrejas protestantes), justamente por ter sido composto em grego. O título tradicional é Sabedoria de Salomão, porque o autor – como ocorre também com outras obras bíblicas (Eclesiastes ou o Cântico dos Cânticos) – veste os paramentos simbólicas do célebre soberano hebreu, filho de Davi e considerado o arquétipo da sabedoria bíblica.
Sebastiano Pinto (org.), Sapienza. Paoline, 416 páginas
Foto: Divulgação
Há algum tempo, neste caderno dominical, eu apresentei sobre ele uma espécie de visão de cima, na sequência de um texto panorâmico que dediquei a essa obra para uma coletânea de clássicos publicados pela editora Il Mulino.
Agora, porém, estamos diante de um comentário monumental, finamente elaborado por um importante exegeta da Puglia, Sebastiano Pinto, que há muito tempo se move no horizonte sapiencial, um gênero literário cuja gênese remonta às culturas do antigo Oriente Próximo, sobretudo à egípcia.
Sua abordagem é codificada em nível exegético e se baseia no método histórico-crítico, mas também revela uma fina sensibilidade literária e teológica. Sim, porque a Sabedoria exige uma certa sutileza interpretativa, porque parece colocada sobre um cume, com suas páginas escancaradas para os dois lados. Por um lado, há a cultura helenística de Alexandria do Egito, provavelmente o berço de seu nascimento; por outro lado, porém, sente-se o sopro da matriz judaica do autor.
A duplicidade se revela em muitos outros campos, a começar pela língua grega ora refinada, ora mais corrente e até marcada por filigranas originais e algumas piscadelas semânticas hebraicas. O próprio gênero literário oscila ao longo de correntes que percorrem várias encostas daquele cume ideal (a tipologia protrética, a “midráshica” típica do judaísmo, a comparação antitética clássica, o recorte didático e o epidítico-demonstrativo).
Nessa multiplicidade, também se ramifica a mensagem com uma florescência temática que vai da imortalidade à sabedoria personificada, da apologética à dialética justos-ímpios elaborada recorrendo a uma releitura da antiga história do êxodo de Israel da opressão faraônica, assumida em chave parabólica.
A mesma complexidade repercute quando se tenta isolar a estrutura do livro, certamente unitária, mas tão articulada na sua arquitetura a ponto de manter em suspenso o estudioso na elaboração de um mapa pontual. Sem falar dos destinatários, também neste caso reunidos nos dois lados: a comunidade judaica da Diáspora com seus problemas ideais e de gestão interna, ou os pagãos e um público de fronteira.
Por fim, a Sabedoria certamente se assoma ao horizonte bíblico que a precede, tanto profético quanto sapiencial; mas suas prováveis coordenadas cronológicas no limiar da era cristã (40/30 a.C.) também estimulam a pesquisa sobre uma eventual preparação ou impacto sobre a visão neotestamentária.
Neste ponto, cabe ao leitor iniciar a aventura de percorrer os atuais 19 capítulos em que a obra bíblica está articulada, parando onde mais se envolver. Tradicionalmente, são dois os polos em torno dos quais se enlaçou o fio da atenção, o imortalista, na consciência, porém, de evitar considerar aquelas páginas (capítulos 1-5) como um traçado da reflexão platônica, e o dedicado à sabedoria, com a certeza de que “quem se levanta cedo para encontrá-la não se cansa, pois a encontra vigilante à sua porta” (6,14). São nada menos que 21 os adjetivos que, em cascata, a definem (7,22-23), modulados segundo a simbologia numérica (7x3), assim como são curiosos os conteúdos até mesmo “seculares”, isto é, científico-filosóficos, que a inervam (leia-se 7,16-20).
Mas paremos por aqui, não sem ter aconselhado a não perder os vários apêndices que Pinto anexa, começando por uma preciosa sequência de temas teológicos até mesmo específicos (ressurreição, juízo, idolatria, monoteísmo, a técnica, a política, a feminilidade ausente e assim por diante). À margem, parece-nos significativo acrescentar uma nota justamente sobre essa categoria que deu o título tradicional ao livro e que, como já foi dito, criou um gênero literário específico, o sapiencial.
Roland Barthes, em seu discurso de admissão ao Institut de France, propunha a recuperação da clássica categoria sapientia que, em seu teor original, remetia ao latim sapere: antes mesmo de evocar o “saber”, pressupunha o “ter sabor”. E continuava: “A sapientia é nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de inteligência e o máximo de sabor possível”. Por isso, confessava que “há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas depois vem outra em que se ensina o que não se sabe: isso se chama buscar”.
Esse exercício só pode ser praticado se tivermos um gosto interior, precisamente um saber/sabor. Talvez uma qualidade como essa fosse necessária sobretudo nos nossos dias em que a comunicação informática devastou o conhecimento com pseudoverdades, com brutalidade agressiva, com estereótipos publicitários. Um antídoto poderia ser precisamente aquela “sabedoria do coração”, isto é, da consciência, que Salomão, o sábio por excelência, pedira a Deus no início do seu reino: “Concedei ao vosso servo um coração que escuta” (1Reis 3,9).
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Nos passos da sabedoria de Salomão. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU