19 Março 2022
Efrém, o Sírio, Rufino de Aquileia, autores cartuxos: como a literatura cristã antiga pode inspirar a compreensão do tempo presente.
O comentário é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 13-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há figuras da literatura cristã antiga que necessariamente entraram nos manuais de história do pensamento ocidental: um exemplo entre OUTRO, Santo Agostinho, bispo e teólogo.
Por outro lado, é mais escasso o conhecimento daquela imponente bacia cultural que se expandiu desmedidamente na época medieval posterior. É a essa área que agora recorremos, de modo meramente exemplificativo, propondo algumas figuras por meio de uma edição recente dos seus escritos.
Comecemos pelo Oriente Próximo, com uma personalidade de alto perfil, Efrém, o Sírio, nascido em Nisibi em 306 e falecido em Edessa em 373, “descoberto” também pela cristandade ocidental quando Bento XV o proclamou Doutor da Igreja universal em 1920.
O fascínio da sua produção está ligado à hinologia confiada a “poemas didáticos” teológicos que ele também fazia com que fossem executados por coros de vozes femininas. Muitas das suas obras foram traduzidas também para o italiano: agora, aparece uma curiosa miniantologia temática organizada por Tomasz Szymczak, a quem também se deve um vivaz guia de leitura que consegue conduzir Efrém idealmente até aos dias da Covid, porque ele morreu contagiado pelos empesteados por ele tratados.
O eixo dessa coletânea é um delicioso fragmento que tece de novo, poeticamente, a cena da pecadora pública que se joga aos pés de Jesus sentado à mesa na casa do fariseu Simão, beija-os, enche-os de perfume, banha-os com as suas lágrimas (Lucas 7,36-50).
Cristo aparece aos olhos de Efrém como médico das almas, é o pescador que arranca de Satanás os pecadores, deixando-o em lágrimas pela derrota, é o boticário que, no almofariz, elabora o fármaco da vida, é o rapinador que “rouba os pecados”.
Mas verdadeiramente fascinante é a representação da mulher que tira a máscara, braceletes, túnica de linho fino, sandálias luxuosas, perfumes caros (é curioso o diálogo com o perfumista) e que se apresenta na verdade nua da sua existência conturbada e da sua feminilidade humilhada. Só a leitura dessa homilia cantada, porém, pode traduzir a criatividade de Efrém, diácono e poeta da Síria.
Permaneçamos ainda no século IV, mas passemos para um extraordinário centro de Friuli, Aquileia, cujo nome logo traz à memória a soberba basílica românica e sobretudo para o antigo piso de mosaico que o autor que agora apresentamos também tinha contemplado, recém-saído da fantasia iconográfica dos artistas paleocristãos. Estamos falando de Rufino, um dos grandes intelectuais e teólogos daquele tempo, emblema daquela Igreja patriarcal, dotada de um rito próprio e de uma identidade nobre própria.
Gabriele Pelizzari, da Universidade Estatal de Milão, e o teólogo de Verona Giuseppe Laiti nos oferecem, com o texto latino à sua frente, a versão da sua “Explicação do Credo” professado por aquela comunidade cristã, a “Ecclesia aquileiensis nostra”, como Rufino a definia.
É interessante identificar as várias afirmações, começando por “Deus Pai todo-poderoso, invisível e impassível”, para se centrar no Cristo, amplamente seguido especialmente na sua paixão e descida aos infernos, antes de se revelar na Páscoa, para concluir com o Espírito Santo, a Igreja, a remissão dos pecados e a ressurreição final.
Confrontando-se com os símbolos da fé de Roma e das Igrejas do Oriente, Rufino identifica a matriz original do crer cristão já então compartilhado pelas diversas comunidades eclesiais. Muitos outros componentes menores constituem a trama dessa profissão de fé que se tornaria uma espécie de código de referência da Idade Média latina.
Neste ponto, ampliemos o nosso horizonte com uma incursão no silêncio monástico dos Cartuxos, a comunidade religiosa da mais rígida ascese. Porém, ela também foi a fonte de um rio literário espiritual rico em águas límpidas e que matam a sede. Quem recolhe esse fluxo místico é uma vasta antologia de autores, desde as primeiras vozes que ecoam no deserto silencioso da contemplação, como São Bruno de Colônia e Guigo I e II de Grenoble (estamos nos séculos XI-XII), até testemunhos que ressoam em comunidades incrustadas no tumulto do nosso século XX, como as de François Pollien ou Augustin Guillerand.
Alguns filamentos luminosos se ramificam de modo constante nessas páginas, mesmo que a fonte de luz seja sempre a contemplação e o diálogo silencioso com Deus ao qual se ascende por meio de uma “escada” ideal, um símbolo caro à mística de todos os tempos e terras (citemos apenas João da Cruz e Teresa d’Ávila).
Uma “escalada”, portanto, cujos degraus – segundo o já citado Guigo II – são a leitura, a meditação, a oração, a contemplação. O ápice é o mistério divino, mas o pecado é quem nos puxa para o vale; quem nos leva de volta à altitude são a purificação do coração e a humildade; e quem nos sustenta é o Espírito Santo, que é como a própria mão de Deus que se estende para a nossa liberdade.
Muito mais se descobrirá ao escutar essas vozes tão diferentes e tão sinfônicas, que clamam no deserto exterior e íntimo, um espaço vazio de coisas e palavras vãs, mas cheio de verdade e beleza. Lá está plantada, sólida e estável, a cruz de Cristo, dum volvitur orbis, enquanto o mundo gira frenético, como diz o lema da Ordem dos Cartuxos.
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Homilias e textos para a “Ecclesia nostra”. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU