21 Novembro 2022
Formado como programador na Universidade de Hong Kong, Yuk Hui estudou filosofia no Goldsmiths College, Universidade de Londres, onde se formou com o filósofo francês Bernard Stiegler, e se especializou em filosofia da técnica, cultura e estética em mídias digitais. Desde 2014, coordena a Rede de Pesquisa em Filosofia e Tecnologia e, desde 2020, é membro do júri do Prêmio Berggruen de Filosofia e Cultura.
Atualmente, é professor de Filosofia da Tecnologia e Mídia, na Universidade de Hong Kong. Na Argentina, seu nome viralizou em maio de 2021, quando vários usuários nas redes sociais (incluindo ele) destacaram que a vice-presidente Cristina Kirchner tinha um exemplar de Fragmentar el futuro.
Yuk Hui sugere “pensar como a arte pode contribuir para a transformação da tecnologia que sob o impulso do consumismo está se tornando cada vez mais entrópica e destrutiva”.
A entrevista é de Daniel Gigena, publicada por La Nación, 11-11-2022. A tradução é do Cepat.
Qual é o vínculo entre a arte digital e seu meio específico?
Todas as formas de arte são expressas através dos meios de comunicação, da pintura ao teatro. O meio da arte digital é, naturalmente, o meio digital. No século XX, o desenvolvimento da tecnologia digital nos apresenta não só uma variedade de mídias, mas também a possibilidade de melhora e inovação. A arte digital, que tem a possibilidade de se desenvolver com muita rapidez, tornou-se onipresente.
No entanto, justamente porque o meio digital muda o tempo todo e de forma cada vez mais rápida, muitas obras de arte, por exemplo, as primeiras, não podem mais ser “interpretadas” pela tecnologia atual. Recentemente, tive dificuldades para ler um CD porque os quatro computadores que uso em casa e no escritório não têm mais um leitor de CD, muito menos de um disquete.
Por sua alta dependência do meio e a especificidade deste, quando nasce uma arte, podemos também dizer que já está morta. É por isso que na conferência procuro abordar esta questão e, em vez de desenvolver uma visão histórica da especificidade do meio, sugiro estabelecer um confronto entre a arte digital e o seu meio.
Qual é a importância da arte digital?
Em primeiro lugar, temos que entender o que significa digital. Habitualmente, o digital é entendido como uma representação binária, no entanto, esta é uma compreensão reducionista e estática. Para mim, digital significa a possibilidade de automatizar uma forma recursiva (ou para simplificar, não linear) de organização e execução, que pode ser aplicada a textos, imagens, materiais audiovisuais.
Busquei explicar o significado do conceito de digital e seu lugar na história da filosofia em dois livros: On the Existence of Digital Objects (2016) e Recursividad y contingencia (2019), que acaba de ser lançado pela editora Caja Negra. Neste livro, retomo o conceito de recursividade e faço uma leitura da história deste conceito de Kant à cibernética, passando por Schelling, Turing, Gödel e outros, porque para mim a recursividade, no lugar da binaridade, é crucial para a compreensão dos sistemas técnicos contemporâneos.
Voltando à questão da arte, talvez possamos dizer que a arte antes do período digital era em grande medida linear, da pintura ao cinema primitivo. Sabemos que desde os primórdios da arte digital, o conceito de interação ou interatividade se tornou central. A arte interativa foi possível, já que pressupõe circuitos de retroalimentação entre o usuário e a obra.
No século XX, a tecnologia digital só estava ao alcance dos profissionais, mas em fins do século XX se espalha. Hoje, quem tem um computador, um celular, um iPad ou ferramentas de produção profissional é capaz de criar arte. Isto também reabre a questão do amador e a possibilidade de uma nova educação da sensibilidade, que é a questão central de Art and Cosmotechnics (2021).
O que é a cosmotécnica?
É um conceito que desenvolvi nos últimos anos e que se opõe à compreensão universalista da tecnologia. A universalidade da tecnologia é amplamente aceita porque a tecnologia tem sido considerada racional e lógica e, portanto, deve ser universal. Em um nível antropológico, as tecnologias são universais tendo em vista que são a extensão dos órgãos corporais e a exteriorização da memória, ao passo que a cosmotécnica argumenta que todas as tecnologias estão igualmente circunscritas e habilitadas por diferentes cosmologias e contextos. Chamo isso de “antinomia da universalidade da tecnologia”.
Quando observamos a medicina chinesa, vemos que possui uma base epistemológica diferente da medicina ocidental. A medicina chinesa usa vocabulários cosmológicos como ch'i (energia vital; literalmente, gás) e yin e yang, mas esses conceitos não seriam aceitos na medicina ocidental, pois não são demonstráveis. Portanto, há uma tecnodiversidade que foi marginalizada pela modernização.
Também podemos pegar alguns exemplos contemporâneos para compreender a questão da diversidade tecnológica, por exemplo, o historiador Slava Gerovitch demonstrou como todos os cientistas de inteligência artificial (IA) afirmam que seus modelos são universais, mas, na verdade, estão determinados pelo contexto. Houve duas IA diferentes durante a Guerra Fria, disse, e ofereceu duas metáforas interessantes para entender essa diferença: a IA estadunidense é o rato que corre no labirinto e a IA soviética é o morcego que caça uma mariposa no labirinto. A primeira se ocupa de um problema já dado e suas regras do jogo, ao passo que a outra se ocupa da incerteza fundamental.
O que é a tecnodiversidade e qual a importância desse conceito para o estudo das artes?
Como sabemos, para os antigos gregos não havia diferença entre arte e tecnologia, ambas se expressavam com uma única palavra: technē. Como procurei demonstrar em meu trabalho, a tecnodiversidade foi em grande medida ocultada pela modernidade e o processo de modernização. O mesmo acontece com a questão da arte, ou mais precisamente a experiência da arte. Portanto, parafraseando William James, podemos falar sobre as variedades da experiência da arte.
Mas, como vocês sabem, a partir da arte moderna, a arte como experiência se torna quase universal, em grande medida legitimada pelo mercado da arte, e a questão da diversidade fica minada. Em Art and Cosmotechnics procurei demonstrar que é necessário retomar as variedades de experiência da arte e repensar seus significados na era tecnológica. Nesse livro, são apresentadas a tragédia, a pintura shanshui (água e montanha) e a cibernética como três lógicas recursivas.
Como podemos pensar a cosmotécnica no contexto latino-americano?
Devo dizer que não sou um especialista em América Latina, por isso resisto em fazer qualquer afirmação. No entanto, penso que hoje é importante levantar a questão da tecnodiversidade e redescobrir a multiplicidade de cosmotécnicas, e a América Latina, com sua rica diversidade e experiência de descolonização, tem muito a nos ensinar.
Embora eu não tenha um conhecimento profundo para abordar completamente essa questão, dediquei o primeiro número da revista Technophany à questão da cosmotécnica na América Latina. Comecei a planejar este número especial, em 2019, com dois jovens pesquisadores mexicanos e, por meio de sua rede na América Latina e da linguagem comum que utilizam, conseguimos atrair vários estudiosos de diferentes gerações para refletir sobre essa pergunta em especial.
Devo admitir que, devido ao limite da rede e o limite dos recursos, este é apenas o começo. Espero continuar desenvolvendo este projeto em um futuro breve e visitar o Chile e a Argentina, no início de 2023.
Qual é o enfoque de sua filosofia sobre a tecnologia?
Para mim, não existe uma filosofia específica sobre a tecnologia. Ao contrário, a tecnologia é fundamental na questão da tecnologia. Foi o que aprendi com meu mestre Bernard Stiegler, que, por sua vez, foi discípulo de Jacques Derrida, embora Bernard e eu não nos identifiquemos com a escola da desconstrução.
Stiegler diria que a questão da tecnologia foi reprimida (no sentido freudiano) pela história da filosofia, ou seja, a história da filosofia marginalizou o conceito de tecnologia, apesar desse conceito ser fundamental para a própria filosofia, o que demonstrou de forma convincente em sua leitura de Platão a Kant.
Eu gostaria de expandir essa abordagem da tecnologia para além da filosofia europeia porque a filosofia contemporânea da tecnologia é muito eurocêntrica e, portanto, não aborda suficientemente a complexidade em que vivemos. Suponho que isso seja bastante compreensível quando olhamos na perspectiva da América Latina.
Além disso, gostaria de desenvolver a tecnodiversidade como uma forma particular de filosofar sob esta condição planetária, planetária no sentido de que deve ir além da teoria do Estado de Georg Hegel e da teoria do Grossraum (grande espaço) de Carl Schmitt, que foi retomada por Alexandr Dugin e aparece no discurso de guerra de Putin, em fevereiro.
Isso é urgente porque a pandemia acelerou as catástrofes, bem como o sentimento de desespero e desesperança. Os ataques recentes às pinturas de Van Gogh, Monet e Vermeer por jovens ecologistas expressam este sintoma.
As máquinas substituirão os artistas?
Depende de quais atividades artísticas estamos falando e de quais procedimentos poderiam ser automatizados para permitir que os artistas tenham mais tempo para pensar e estudar. No entanto, o medo atual da máquina é problemático. Em vez de se preocupar com a substituição dos humanos pelas máquinas, o que empiricamente falando é supérfluo, porque surgem novas indústrias quando as mais antigas são automatizadas (a automação das fábricas e o surgimento do capitalismo de plataforma aconteceram ao mesmo tempo, ao passo que este último absorveu o desemprego causado pelo primeiro), é melhor planejar o que pode ser um futuro em que os humanos possam coexistir com as máquinas e se beneficiar delas.
Em Art and Cosmotechnics, inverti a tese de Walter Benjamin que propunha não questionar se a fotografia e o cinema são arte ou não, mas pensar como o conceito de arte é transformado por eles. E sugiro pensar como a arte pode contribuir para a transformação da tecnologia que sob o impulso do consumismo está se tornando cada vez mais entrópica e destrutiva. É importante voltar à questão da arte e começar por aí.
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“Há uma tecnodiversidade que foi marginalizada pela modernização”. Entrevista com Yuk Hui - Instituto Humanitas Unisinos - IHU