18 Novembro 2022
Um sentimento de compromissos em baixa e pactos inconfessáveis envolve ainda a Copa do Mundo quatro anos depois da Rússia.
O artigo é de Paolo Condò, jornalista, publicado por Repubblica, 17-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se houve um momento preciso em que o palco montado pela Fifa e o Catar caiu definitivamente, foi quando Khalid Salman - embaixador da Copa do Mundo e ex-jogador da seleção do Catar – em entrevista à TV alemã Zdf definiu a homossexualidade como um "dano mental". Aconteceu duas semanas atrás praticamente ao mesmo tempo que a infeliz carta do presidente da Fifa, Gianni Infantino, na qual se esclarecia que o futebol não pode dar conta de todos os problemas do mundo, e por isso – no fundo – tratem de aproveitar a Copa do Mundo e parem de encher o saco com essas histórias de direitos e deveres.
As palavras de Salman, a naturalidade medieval com que foram pronunciadas, tiraram a última folha de figueira da ilusão, um pouco hipócrita mas não insincera, de que mesmo de uma escolha mundial errada algo de positivo poderia surgir. A esperança numa espécie de escambo: o futebol (e os consequentes negócios, muitos negócios riquíssimos) em troca de direitos, não só o direito comercial de beber alcoólicos, aliás mal e mal tolerado, mas também de amar quem quiser. Porque se o futebol é a linguagem mais difundida do planeta, e o é, certamente teria força para impor algumas regras comuns de civilização: não uma homogeneização cultural – as diversidades são sempre riqueza - mas uma plataforma universal de poucos e inderrogáveis princípios. Mas se você não os respeitar, você está fora. Inderrogável significa isso.
O próprio Infantino havia falado sobre isso, citando inclusive Nelson Mandela, no início de 2022 em Davos: no discurso mais belo e ambicioso de seu mandato, havia evocado o poder do futebol para mudar o mundo. É uma pena que o que não aconteceu no Catar de 2010 a hoje, desde a atribuição da Copa do Mundo à sua realização, revele a inconsistência de uma arquitetura apenas sonhada: o Catar mudou o futebol - pensem na revolução dos calendários - muito mais do quanto o futebol tenha mudado o Catar. E se a providência de transferir a Copa para uma época menos tórrida satisfaz as exigências de quem joga e de quem assiste, a mesma atenção não foi prestada à saúde de quem construiu fisicamente os estádios e as outras infraestruturas necessárias ao torneio, e não pôde fazê-lo evitando os meses mais quentes. É difícil estabelecer o número preciso de mortes no trabalho, mas certamente não são as três reconhecidas pelas autoridades do Catar; a estimativa de milhares feita pela Human Rights Watch é mais realista porque inclui as chamadas "mortes sem explicação", quando, ao contrário, os turnos de trabalho extenuantes naquelas temperaturas de verão explicam tudo. Várias vítimas entre os migrantes que correram para o Catar em busca de salário, principalmente do Nepal e da Índia, e por isso tratados como servos da gleba: voltamos aos direitos, neste caso dos trabalhadores, e à vigilância sobre sua correta aplicação que a Fifa deveria ter exigido. Tinha a arma na mão para fazer isso, a Copa do Mundo, e deixou escapar. Quando faltam anos para o torneio, quem o organiza teme perdê-lo; quando está a meses de distância, é a Fifa – com seus patrocinadores e seus direitos televisivos – que torce para que tudo dê certo. Quando faltam dias, por favor, concentrem-se na bola.
Faremos isso, como é justo que aconteça em um mundo que acaba de passar por dois anos de uma pandemia assassina - nem todos a esqueceram, mesmo que às vezes assim pareça - e desde fevereiro estamos lidando com uma guerra na Europa que nos obriga a analisar os estilhaços dos mísseis para entender se o conflito atômico já esteja às portas. É a situação em que alguém diz "tudo bem, todo dia traz seu problema, mas pelo menos agora vou dar uma pausa para assistir a um bom jogo". Seria certo poder fazê-lo sem sentimento de culpa, pelo menos isso, e em vez disso, uma sensação de compromissos em baixa e pactos inconfessáveis continua envolvendo a Copa do Mundo quatro anos depois de outra edição que nada ensinou, aquela da Rússia, justamente excluída dado que a guerra na Europa foi desencadeada por ela.
Os limites do sportwashing são evidentes porque a estrada nunca é de mão dupla: grandes eventos abrem o mundo para ditaduras, mais ou menos soft, mas não conseguem condicioná-las. No máximo, acontece o contrário, magistralmente descrito por Houellebecq em Submissão: as pequenas vantagens materiais - a poligamia no caso do professor protagonista do romance - prevalecem sobre as grandes questões de princípio. Não há torcedor que nos últimos anos não tenha desejado a compra de seu clube por um fundo soberano árabe ou por um oligarca russo, porque do PSG ao Chelsea, do Manchester City ao mais recentemente Newcastle, a quantidade de dinheiro bombeado no mercado mudou o destino dessas equipes. E quando aconteceu que algum ente regulador - por exemplo a Premier League - quisesse ver com mais clareza determinadas aquisições, as pessoas desfilaram furiosas pelas ruas: cada um com seu campeão, não quero saber como vocês o pagam. No Paris jogam os líderes do Brasil (Neymar), Argentina (Messi) e França (Mbappé), para citar os três principais favoritos da Copa: um truste impensável no esporte profissional, mas quando Mbappé estava prestes a se transferir para o Real Madrid, Macron interveio para segurá-lo. Em alguns aspectos, uma ingerência semelhante à atribuída a Sarkozy para orientar na época a Copa do Mundo para o Catar. Pobre futebol, tão forte que pode ditar a lei, mas ainda assim usado por todos para os próprios interesses.
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Catar 2022, a Copa dos direitos negados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU